Perdidos na selva

O ator Vinicius Meloni em cena de Na Selva das Cidades - Em Obras, da Companha Mundana, na represa Guarairanga, em São Paulo. Foto: Renato Mangolin
O ator Vinicius Meloni em cena de Na Selva das Cidades – Em Obras, da companha Mundana, na represa Guarairanga, em São Paulo. Foto: Renato Mangolin

Em um domingo de fevereiro, a companhia Mundana apresentou sua versão para Na Selva das Cidades, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), na comunidade do Coliseu, favela na zona sul de São Paulo. Longe de uma sala de teatro convencional, os dez atores do grupo já esperavam situações que desestabilizassem a proposta cênica. Mas o ruído passou do ponto.

Naquela sessão ao menos, houve tantos tipos de interferência que não é exagero dizer que o roteiro perdeu o rumo. O elenco parecia especialmente desnorteado com o comportamento das crianças. Uma das atrizes insistia por silêncio. A dez metros do espetáculo, uma roda de samba e um culto evangélico, simultaneamente, foram ganhando volume.
Sobrou pouco de Brecht. Ainda assim, não é possível dizer que o espetáculo naufragou por completo, porque é na experiência que a Mundana procura hoje seus resultados e desafios.

O projeto #Mundanaocupasp – na Selva das Cidades – em Obras foi em parte criado na rua, com ensaios ao ar livre e a partir da ideia de que o espaço urbano pode contaminar a cena. A direção é de Cibele Forjaz. O grupo foi formado por atores que já integraram o Teatro da Vertigem, a Cia. Livre ou o Teatro Oficina, ao lado do diretor José Celso.
Houve uma temporada da peça no Sesc Pompeia no ano passado. Mas ela voltou a cumprir um roteiro de ocupações não convencionais onde o Coliseu se encaixou. Estão programadas, entre outras, sessões na Favela do Escorpião, em Aricanduva (18 e 19 de março), no clube Caribe, no Baixo Augusta (15 e 16 de abril) e no Teatro Oficina (dez sessões em julho), sempre em São Paulo.

O ator Aury Porto, um dos fundadores da Mundana, conta que a ideia é criar um sistema de trocas, associando os cenários que Brecht aponta em seu texto aos elementos presentes nas ocupações. “A peça é absorvida pelo lugar. Não há, sobre ela, o controle que temos quando estamos em um lugar tecnicamente equipado”, diz. Durante entrevista à CULTURA!Brasileiros, revela que suas costas estão machucadas por causa da cena de uma queda – na favela do Coliseu, o intérprete não conseguiu evitar pedras e pregos espalhados pelo chão.

O texto original tem como protagonista um vendedor aparentemente comum, George Garga (interpretado por Lee Taylor), que o empresário Shlink (Porto) tenta corromper em um jogo de apostas. O embate entre eles se desenrola por meses, arrastando inclusive amigos e familiares, especialmente os de Garga, corrompidos pela possibilidade de enriquecer. Os cenários da peça são diversos. Há cortiços, clubes, uma madeireira, as ruas de uma metrópole americana em expansão. A diversidade de uma “selva” explica a composição do circuito de ocupações da Mundana, com a inclusão de favelas, shoppings, casas noturnas.

As plateias também mudam conforme o espetáculo segue em sua trajetória, conformada em mais de dois anos de experimentos. “Fizemos uma apresentação no Yacht Club de Santo Amaro, por exemplo, e estava lá a filha de um empresário importante. Os espectadores, naquela ocasião, não colocaram a vida deles na roda, como aconteceu na favela. Mas o teste é sempre esse: até onde a peça consegue sobreviver em determinada situação”, diz Porto.

Na experiência que o grupo fez na região da Luz, muito próximo à chamada cracolândia, onde há consumo e tráfico de crack, “os espectadores prestavam atenção à peça por no máximo dez minutos, apreendiam apenas fragmentos do trabalho”, conta ele.

Outra cena de Na Selva das Cidades - Em Obras. Desta vez, no Yatch Club de Santo Amaro. Foto: Renato Mangolin/Divulgação
Outra cena de Na Selva das Cidades – Em Obras. Desta vez, no Yatch Club de Santo Amaro. Foto: Renato Mangolin/Divulgação

Para ele, o caráter nômade do espetáculo vai revelando as formas como a peça pode ser compreendida, a depender da formação da plateia. Ele diz que sentiu, na sessão apresentada na favela, que a compreensão de algumas situações, ao mesmo tempo que parecia pouco elaborada, era imediata. “Há uma cena em que um personagem tenta comprar a opinião do outro, e isso pegou forte para aquela plateia”, diz. “Brecht aqui se torna uma ponte para que eu possa conhecer esses diferentes públicos e para que eles também possam nos conhecer melhor; à parte os detalhes do texto, para mim é importante saber que estamos fazendo teatro nessas situações e nesse tempo.”  

Há uma frustração no meio do caminho: “Muita gente sabe o que está em jogo nesse texto, mas não entende precisamente o lugar em que Brecht quer chegar. Às vezes tenho a impressão de que a disputa entre os dois personagens é assimilada como uma luta de MMA; o importante é saber quem vai sair vencedor dali”. Também surpreendeu o ator a percepção de que as crianças são educadas “para adorar dinheiro”. Há uma cena em que notas falsas se espalham por toda a cena. “Depois, elas ficam guardando aquela nota com muito amor.”

Durante a conversa com Porto, surge uma questão que parece central: de que adianta propor um trabalho cuja vocação é manter-se em constante mudança, se o espectador vai acompanhar apenas uma sessão e não o trabalho em progresso. A documentação do processo torna-se aqui, portanto, não apenas um apêndice, mas uma parte significativa da obra.
O registro em vídeo está sendo feito por Éder Santos Júnior e Yghor Boy.

A companhia também lançou recentemente um livro, Imersão Selva, cuja leitura revela a complexa logística por trás da produção do espetáculo. Por meio do livro, ficamos sabendo que as decisões sobre as imersões (nas diversas locações onde a peça foi concebida) e sobre as caminhadas pela cidade foram partilhadas por todo o grupo. A responsabilidade pela realização dos ensaios passava de mão em mão, ora com dois, ora com três líderes.

As negociações fazem parte de toda a trajetória. Há, por exemplo, um texto de 2015, intitulado “Carta à Diretora”, em que a atriz Carol Badra relata a intenção de ocupar a mansão de Edemar Cid Ferreira na zona sul de São Paulo. O imóvel foi confiscado pela Justiça após o ex-banqueiro ser condenado pela falência fraudulenta do Banco Santos.

O texto de Badra fala sobre um diálogo com Cid Ferreira: “Realmente ele foi muito amistoso e se mostrou interessado. Quis ler a peça e falou que teria assunto para mais de três horas (…) Antes de falar com ele, consultei meus colegas organizadores (…) Eles acharam que eu não deveria falar, mas disseram para que eu sentisse o clima. Na conversa, senti que seria melhor abrir o jogo e não o trair. Contei que iríamos visitar a casa e ele achou legal, mas perguntou se o juiz havia concedido licença. Menti, disse que sim”. Depois, o texto informa que a visita à casa foi impedida por um juiz.

Entre propostas de rituais dionisíacos e a experimentação da arte marcial Kempô, também há relatos de diversas atividades exóticas ao universo do grupo, como um jantar no Jockey Club, em que dois atores cumpriram funções da equipe do restaurante da casa: Lee Taylor serviu seus colegas como garçom e Abigail Tatit interpretou uma hostess: “Fui pegar umas dicas com uma hostess de como deveria agir. Ela me contou que quando chegam os clientes você dirige a palavra sempre à mulher, para não dar margem para ciúme”, descreve Tatit.

O livro também tem fotografias e trechos do texto original de Brecht. Para quem se interessar pelas ocupações do grupo, a programação está em www.mundanacompanhia.com.
  
 
Serviço – Ocupação 8 | Na Selva das Cidades
18 e 17 de março de 2017
Rua Henrique Perdigão, 127 (muro azul), Favela do Escorpião (Jardim Ipanema) São Paulo – SP
11 3021-9297
Acesse o site da companhia para mais informações.


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