Por que se importar com a cultura?

Foto: Mídia Ninja
Foto: Mídia Ninja

Os últimos meses não tem sido nada fáceis para quem trabalha com artes no Brasil. Diante de uma crise econômica e política sem precedentes na história recente do país, com orçamentos para a Saúde e a Educação congelados, para muitos parece piada de mau gosto artistas reunindo-se para defender pautas relacionadas ao financiamento público de projetos culturais.

Como bem pontua o texto de Wagner Moura veiculado recentemente, a arte parece incomodar aos donos do poder. Exemplos na história não faltam. Recentemente, porém, a perseguição aos artistas tem encontrado uma nova forma: oriundos da visão de mundo da ortodoxia neoliberal, argumentos economicistas reduzem toda uma pluralidade de relações ao redor das artes à questão meramente monetária. Argumentos que concebem o financiamento estatal da cultura como um gasto ilegítimo de dinheiro – para não dizer imoral.

Existe, porém, toda uma série de elementos envolvidos no fazer artístico que excede o plano econômico. Ou seja, algo de incomensurável (intangível??) ao olhar objetivo daqueles que compreendem o mundo prioritariamente através de planilhas de gastos e rendimentos. Visões questionadoras e críticas do mundo; um olhar outro sobre a realidade; uma reflexão poética acerca da existência e dos sentidos (ou da falta de); outras formas de conceber a relação entre corpo, pensamento e criação; a possibilidade de proporcionar encontros inadvertidos em um mundo cuja rotina faz de tudo para individualizar e virtualizar a vida; a imaginação radical acerca de outros possíveis…

Todos esses elementos, entre muitos outros, podem ser considerados como estruturantes do fazer artístico atual. Estes valores modificam-se historicamente: termos como a representação e a busca pelo belo estão mais para a história da arte, enquanto hoje os debates encontram-se mais centrados nas possibilidades de agência da arte, experimentação, sentidos múltiplos, questões de gênero, de lugar de fala, de narrativas acerca da violência, de processos horizontais…  Além de serem temas e práticas de absoluta relevância para a sociedade, acreditamos que valha a pena explorar uma reflexão acerca da economia da cultura – cientes do risco que é entrar na seara econômica e cair em um economicismo radical, já que ele desconsidera todos os valores elencados acima.

De maneira alguma pretendemos exaurir os enormes debates acerca do tema, nem tampouco nos colocarmos na posição de representantes de um determinado grupo. Este artigo é meramente opinativo, e tenta ajudar, ainda que minimamente, na conscientização da importância do debate acerca da política cultural (e da política na cultura) no país.

Produção artística e circulação

Tomemos como exemplo um projeto artístico simples, que tenha um orçamento de R$40.000,00 para criação de um espetáculo solo ao longo de seis meses, e dez apresentações no final.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que existe toda uma circulação direta de dinheiro para além do artista proponente: produtor(a), musicista, técnico(a) de som, técnico(a) de luz, espaço para ensaio, contador(a), designer, impressão em gráfica, assessoria de imprensa, anúncios em jornais e revistas, locação de aparelho de som e de luz, registro fotográfico e videográfico. Poderíamos também considerar como beneficiários indiretos deste montante concedido ao projeto artístico outras tantas pessoas envolvidas: distribuição de ingressos, pessoas que trabalham na manutenção dos espaços artísticos, e todo o comércio ao redor, como bares e restaurantes que dependem do público frequentador de teatros, museus, e outras atividades culturais.

Qualquer leitor minimamente inteirado dos valores pagos para servidores públicos como juízes, ou cargos políticos do legislativo e executivo já deve ter entendido aonde queremos chegar: o valor gasto em seis meses em um projeto artístico envolvendo no mínimo e diretamente uma dezena de pessoas é equivalente aquele pago a um único juiz, ou membro do legislativo e executivo por mês. Vale notar que os R$40.000,00 do solo que tomamos como exemplo são distribuídos entre muitas outras pessoas para além do artista que postulou para o edital, enquanto juízes e políticos concentram esta quantia (quando não maior), apenas para si próprios – além dos inúmeros benefícios garantidos por leis aprovadas por eles próprios.

Isso quer dizer que um projeto artístico é barato. De tal modo, que deveríamos estar, na realidade, pleiteando melhores condições de trabalho com mais verbas para artistas brasileiros/as. E não cortando os parcos recursos destinados pela união, estados e municípios para tais práticas.

Para além da circulação de dinheiro (elemento por si fundamental, já que todo/a artista precisa comer, pagar aluguel, sustentar filhos etc.), o fazer artístico, e vale dizer que a arte brasileira é internacionalmente reconhecida em todos os segmentos como de altíssima qualidade, apresenta uma série de outras benesses para a sociedade como um todo: oferecimento de uma programação cultural gratuita e de interesse público; socialização de jovens em projetos culturais e educacionais; oferta de serviços para bairros, que normalmente acompanham o processo de criação, como aulas de dança, capoeira, de yoga, tai-chi-chuan; outras formas de compreensão da realidade e de posicionamento crítico para além daquilo apresentado na escola e nos meios de comunicação; entre tantos outros que excedem o campo econômico.

O que parece estar em jogo hoje, com os cortes e mudanças radicais em editais que vem sendo incessantemente debatidos pela classe artística, é um projeto político para acabar com todos esses valores que permeiam as práticas culturais em toda sua diversidade, e os encontros e críticas por elas proporcionados.

O corte da cultura

Assim, diante da atual situação de cortes, reduções, cancelamento de editais e sucateamento do Ministério da Cultura (vejam bem, temos um Ministro da Cultura que não acredita que deva existir algo como…. um Ministério da Cultura), cabe refletirmos acerca do que isso significa para artistas, para toda a estrutura econômica ao redor das artes, e para a sociedade como um todo.

Em primeiríssimo lugar, são os/as artistas mais pobres, que não vem de famílias ricas, que mais sofrem as consequências desses cortes. E já sabemos que no Brasil punir os pobres significa punir majoritariamente a negros e indígenas. De tal modo que teremos uma produção artística mais elitista do que já é, mais branca do que já é, mais masculina (e machista?) do que já é; menos diversa, menos inclusiva. E seguramente pior. Muitos/as artistas terão que encontrar ainda mais empregos extras (não se iludam, hoje, nós que trabalhamos no meio cultural, já temos empregos extras ”normais” que ajudam a pagar nossas contas), muitas vezes inviabilizando dedicação a projetos culturais autônomos.

Em segundo lugar, artistas e produtores culturais com possibilidades vão concorrer a editais no exterior, o que significa algo paralelo ao que é considerado no meio educacional como migração de cérebros: todos os itens que elencamos acima (incomensuráveis a um pensamento economicista) vão ser proporcionados em países como Estados Unidos, Alemanha, Áustria, Portugal, França, e não para a sociedade brasileira.

Além disso, a cadeia de produção, geração de empregos, e circulação de valores acontecerá em outros países. Todos os empregos de produtor(a), musicista, técnico(a) de som, técnico(a) de luz, espaço para ensaio, contador(a), designer, impressão em gráfica, assessoria de imprensa, anúncios em jornais e revistas, registro fotográfico e videográfico serão gerados fora do país, e não auxiliarão na movimentação da economia brasileira. São os que moram nestes países que poderão desfrutar gratuitamente de um bom espetáculo, e que sairão inquietos, pensativos ou reflexivos a partir de uma obra, ou espetáculo, e que terão oficinas e debates para participar.

Ah, nesse panorama, não poderíamos deixar de mencionar os ataques contra a Lei Rouanet. A classe artística foi a primeira a criticar a concentração dos editais nas mãos de superprodutoras que recebem valores astronômicos para projetos comerciais que o público, além de tudo, ainda paga. Tomemos como exemplo ”Shrek: O Musical”, que recebeu mais de 17 milhões de reais via Lei Rouanet, e cobrava ingressos no valor de R$180,00 (lembrem dos R$40.000,00 para todo o processo de criação do solo que tomamos como exemplo, por seis meses, envolvendo uma dezena de pessoas diretamente, e com apresentações gratuitas).

Para além da Lei Rouanet (e este assunto é longo), poderíamos estar debatendo no Congresso e na esfera pública como permitir que a referida lei, e outras formas de financiamento público, atendam aqueles que mais necessitam dessa verba: artistas que trabalham em projetos independentes, pequenos e sem potencialidade de lucro; artistas das periferias das cidades brasileiras; projetos sem valor comercial; editais específicos para minorias étnico-raciais; editais específicos para mulheres; editais acerca de questões de gênero; expansão de projetos culturais em pequenas cidades nas quais a oferta cultural oficial é pequena.

Poderíamos estar debatendo não. Devemos. Devemos re-colocar essas questões no centro do debate, acerca da importância da cultura e das artes para a sociedade brasileira – como tem sido levantado nos últimos vinte anos. Artistas não são vagabundos/as que não trabalham. Merecem respeito e o direito de pautar o debate público acerca dos temas e financiamentos que lhes dizem respeito.

 


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