“Pra que tanto rancor, dentro do peito/Se temos a mesma cor, viemos do mesmo gueto? Fúrias e glórias marcam nossas vidas/O futuro a quem pertence?/Amanhã só mais um dia/Diz que é da paz, mas o espírito está em guerra/ Nas redes sociais em capslock você berra”.
É com essa pegada que começa Só mais um dia, a primeira música do novo EP do rapper mineiro Flávio Renegado, Relatos de um Conflito Particular. Feita em parceria com o poeta Makely K, Só mais um dia discorre sobre o pecado da ira apoiada em uma batida forte e guitarras distorcidas. Abordar os pecados capitais restantes é a proposta que Renegado encara nas outras seis faixas do EP.
A intensidade nos versos e na música é semelhante com a dedicação de Renegado trabalha para colocar o novo trabalho, lançado na última sexta-feira, nas ruas. Antes de bater um papo de quase uma hora com a Brasileiros, ele encarou no celular outra entrevista de mais de uma hora, após um longo dia de trabalho em São Paulo. “Eu sou sonhador o tempo inteiro, eu só cheguei aqui porque eu sonhei, né? Só que a grande parada do sonho é a disposição para levantar e fazer ele virar realidade”, conta.
Na conversa com a gente, muita música (os bastidores no novo EP, influências, a cena de hip hop mineira) , mas também política e a história da sua participação polêmica no Criança Esperança deste ano – os versos “Insultos mil: tição, macaco, criolo, complete a lista/Enquanto a KKK bate panela na paulista” provocaram reações diversas na web.
Leia o melhor da conversa:
Brasileiros – Como nasceu a ideia de abordar os pecados capitais no EP?
Flávio Renegado – Um dia a Danuza, minha empresária, virou para mim e falou: “Ah, por que você não inventa o oitavo pecado?”. Pô… Eu arrastei isso por uns quatro anos, pensando por onde caminhar para criar esse oitavo pecado e veio a conclusão de que o mundo já tá doido demais, para que inventar mais um pecado? Então fiz a minha leitura do que são os sete pecados. Acho que foi um objeto de estudo muito legal mesmo, de aprofundar a nossa relação com os pecados.
Você se baseou mais em uma pesquisa sobre cada pecado ou em experiências pessoais?
Li bastante, refleti da minha própria experiência com as pessoas que estão no meu círculo de convivência. E é muito doido, até pelo processo histórico que a gente tem aí com a população negra, porque a questão dos pecados sempre foi uma visão muito católica. “Ah, o pecado é para recriminar os seus atos, atitudes”. E com essa coisa de frequentar outros espaços, outras religiões, outras classes sociais, outros níveis de relacionamento, a gente vê que essa relação com os pecados é muito escravocrata também, né? Tem um pouco de repressão, “você não pode, não deve”. Se você desejar melhorar de vida você tá pecando… Vem essa loucura. E eu faço essa reflexão de que não dá, de que a gente precisa sair do lugar comum o tempo inteiro para gente poder avançar e sacudir essa poeira aí, né?
Você acha que para equilibrar o jogo é preciso pecar um pouco…
Você não peca normalmente? Então, você vai pro céu? Existe céu também? Essa releção vai muito nessa. Para pagar os pecados, você paga aqui na terra, você é julgado, vai preso, fica lá encarcerado e tal. Por que para esperar a benção divina você tem que esperar morrer? Muito doida essa relação e eu acho que o que a gente tem o tempo inteiro é essa balança da desigualdade acontecendo.
Dos setes pecados, com qual você tem algum problema específico?
Eu não tenho problema com pecado nenhum. (risos) Muito pelo contrário. Acho que o grande recado que esse disco passa é de entender que a gente precisa ter é equilíbrio. Equilíbrio com a gente, com o próximo, com a sociedade, acho que é isso que a gente tem que buscar. A gente vive em constante desiquilíbrio, a população negra é 52% da população do Brasil e ainda continua marginalizada, continua no gueto, continua sem acesso. Quando a gente começa a ter acesso a lugares de conhecimento, lugares que possibilitam equilíbrio – a universidade, um cargo mais legal dentro de uma empresa – a sociedade não recebe isso bem, recebe ainda com desigualdade. A grande mensagem desse disco é isso: vamos buscar esse equilíbrio? Acho que é por aí.
No disco você buscou parceiros diferentes para cada letra, como foi esse processo?
Até pela trama desse disco, a gente fez essa brincadeira. São sete pecados, vamos chamar as pessoas para pecarem juntos. Então fiquei rastreando qual característica cada parceiro tinha ali para determinada música. Por exemplo, Makely, fez comigo Só Mais Um Dia que é a ira. E ele é um poeta sensacional que ao mesmo tempo tem essa coisa raivosa, feroz na caneta. No primeiro momento, eu já sabia que ele tinha que compor comigo aquela música e a gente foi muito no instinto.
É o primeiro trabalho em que você conta com a parceira da Som Livre, que vai cuidar da distribuição. O que muda para um artista independente isso?
Vejo exatamente como parceria. Nós estamos a sete anos construindo esse trabalho, sete anos de ralação. A gente não tem essa expectativa de que a gravadora vai mudar nossa vida e pá, a gente vê que nós temos mais um parceiro para continuar nessa batalha com a gente. A estrutura do mercado não é a mesma de antigamente, a gente não pode achar que a vida vai mudar – é mais um parceiro, mais um braço.
E o clipe de Só mais um dia gravado em em 360º, o primeiro vídeo brasileiro com o recurso lançado no Facebook? Foi uma ação conjunta ou uma coincidência?
Foi uma coincidência, o clipe já estava pronto. Na verdade, a parada do 360º nasceu comigo no estúdio fazendo a pré-produção do disco, gravando, ensaiando quando recebi um vídeo em realidade virtual. Achei aquilo legal pra caramba e quando o disco ficou pronto resolvemos chamar o Erich Baptista, diretor do meu primeiro clipe, e já na reunião eu mostrei para ele e ele falou: “Que coisa louca, nunca vi isso não”. E eu falei: “Vamos fazer um clipe com essa parada?”. “Vamos!”. E aí, ele foi a luta, achou equipe e no meio caminho a Bjork lançou um clipe com a mesma ideia, quer dizer, a gente tava no fluxo dessa energia. É muito doido isso.
Você é fã de tecnologia?
Eu sou um cara que tento acompanhar o movimento tecnológico, não chego a ser um nerd, não fico fritando, entrando em blog de tecnologia todo dia. Mas sou um cara que me interesso bastante por tecnologia, novidade, principalmente quando é no meio da produção da música. Eu tento acompanhar o movimento. Como eu sou da geração Y, eu tento me adaptar.
Queria que você contasse um pouco sobre a cena de rap em BH. Se fala muito na cena de SP e RJ, como é por lá?
A cena de BH é uma das cenas mais estruturadas para o circuito do rap no Brasil, eu acho que é uma das melhores. Temos espaços legais, público legal, tudo acontece de uma forma muito bacana. Hoje a gente tem o Duelo de MC’s que acontece lá e é um dos maiores duelos do país mesmo, tanto que ele o único que tem um circuito nacional e a final é em BH. E ali a gente vê novos protagonistas da cena surgirem. Mas com minha carreira, a Danusa (empresária) é empreendedora no sentindo de ousar e eu sou maluco também, fomos arriscar, abrir fronteiras, desbravar novas perspectivas. Já circulamos quatro continentes, rodamos o Brasil inteiro, só falta a África.
Mas você não perde sua relação com a comunidade, certo? Você tem uma preocupação em garantir que seu trabalho esteja acessível para todos. Inclusive, está levando a experiência de realidade virtual do clipe para exibições em Heliópolis, Morro do Alemão.
A coisa que eu aprendi na minha vida é que o que transforma de verdade a vida de alguém é o acesso. Se você não tiver acesso, você não vai saber que existe, que é bom. Se o cara não tiver acesso a cursar uma universidade, o cara não vai sair do lugar que ele tá, se não tiver acesso a uma nova cultura, a um novo prato, um novo filme, uma nova música, o cara vai continuar preso no que é padrão para ele. E acho que vindo de onde eu venho e ter a origem que meu trabalho tem, eu não posso pensar em uma ferramenta de alta tecnologia e esquecer que o cara que é meu vizinho tem que ter acesso a isso também. Como eu vou proporcionar para o cara no gueto poder desfrutar dessa tecnologia? O óculos para experimentar a realidade virtual custa 2 mil reais. Como eu vou fazer pra aquele cara tenha acesso a isso?
E como você descobriu a versão barata do óculos de realidade virtual?
O Google desenvolveu o Google Cardboard. Esse óculos já é inspirado nessa possibilidade dessa nova tecnologia. Quando a gente começou a sacar o 360º, a gente foi atrás para poder entender mesmo a tecnologia e todas as ferramentes para gente poder criar o acesso a ela. Foi daí essa empreitada de fazer os óculos. Você pode ver o clipe sem o recurso, mas com o celular e o óculos a sensação de realidade é muito maior, uma nova experiência.
Você falou de acessibilidade e a história da sua família é um pouco complicada. Qual foram suas principais dificuldades?
Na verdade, essa parada foi meio inconsciente, essa sacada. Pô, minha mãe foi mãe solteira, empregada doméstica, faxineira, criou eu e minha irmã e sempre foi uma parada muito só nós. Em um primeiro momento, eu nem encarei a música como uma possibilidade de vida, ela veio como uma alternativa de vida, na verdade. E com o tempo a vida foi me permitindo achar parceiros e construir uma relação que foi me levando para outro lugar, até entender que o acesso é o que estava me movendo naquele momento. É a vida. A gente é um copo vazio, né? A gente o tempo inteiro tem que estar aberto a deixar ser preenchido e esvaziado de novo, a sabedoria é uma construção.
Quando você começou a rimar?
Cara, adolescente, moleque. Comecei a cantar rap mesmo com 14, 15 anos em 93, 94, por ali. Mas profissionalmente mesmo foi a partir do meu primeiro disco, que é quando eu comecei a viver disso, pagar minhas contas.
E o que sons você ouvia antes de começar a rimar?
O primeiro grande ícone da música para mim foi James Brown. Eu lembro porque quando era moleque tinha um patrão da quebrada que morava perto da minha casa, o cara era um super-herói para gente, todo pá, e o cara ficava ouvindo James Brown, tinha a coleção completa. Eu passava ali moleque e ficava ouvindo aquele somzão, um altura feroz, pensando: “Esse som é muito doido”. Uma vez sentei do lado do portão e fiquei ouvindo, eu não entendia nada que o cara falava, mas aquele som mexia comigo. Tanto que um dia ele me viu sentado e me convidou para entrar. E era uma casa super cuidadoso com os discos, gravava em fita cassete e envelopava para guardar o LP. Foi meu primeiro contato com música, fora o que minha mãe ouvia em casa, Tim Maia, Djavan,
E de rap?
Racionais com o Raio X do Brasil. Conheci no gueto, que é o mais legal, alguém bota um som alto e você escuta sem querer. Achei muito louco, o cara falando aquelas coisas que tinham a ver com o cotidiano.
Casava com a realidade de BH?
Gueto é gueto em qualquer lugar. Você vai em um gueto no Brasil, vai em um na África, é gueto. O sistema é o mesmo. Em Cuba é parecidíssimo com o Brasil, é muito igual. O que é dito aqui São Paulo é se vívido em outros lugares. A questão da opressão da polícia, a questão de desigualdade social, a questão da cor de quem tá no gueto. Isso não é uma parada exclusiva de São Paulo, é universal.
Quais grupos se destacavam em BH naquela época?
A gente tinha o Black Soul, que foi um grupo forte no fim dos anos 80, começo dos 90. Retrato Radical. Fora os b-boys, grafiteiros, DJs, produtores. A cultura hip hop como um todo sempre foi muito forte em BH.
E a história do verso que gerou polêmica no Criança Esperança (“a KKK bate panela na paulista”)? Quais são os bastidores dessa história?
Eu fui convidado para fazer o Criança Esperança, me falaram que eu ia cantar, me deram o tema de Imagine e pediram para eu escrever algo que dialogasse com a música. Cheguei lá no dia, fiz um ensaio e toquei. Foi muito respeitoso, não teve nada de retaliação, ninguém pediu para trocar, fiz o meu som.
E o que você achou da repercussão?
Acompanhei, vi. A primeira coisa: eu fico muito triste quando a gente fala que a KKK tá batendo panela na Paulista e as pessoas se reconhecerem nisso, fico muito triste de verdade. Isso mostra que tem um retrocesso social acontecendo aí. Mais triste eu fico de ver como as pessoas estão rasas, a pessoa ouve uma parada fica puto e já vai falar. O cara se deu o trabalho de entrar na rede e pesquisar o meu trabalho, o trabalho que eu tenho na minha comunidade? Então, desculpa. Não citei o nome de ninguém, não falei que era todo mundo que bate panela na Paulista é KKK, eu falei que a KKK também estava lá. Eu vi cara com a camisa poder branco batendo panela lá, não tô inventando, não sou maluco. Eu jogo uma carapuça e as pessoas acham ruim, pô… Eu sou um cronista, o rap é uma crônica da nossa sociedade, eu não invento fatos, eu compartilho fatos. Se as pessoas se incomodam com isso, isso é um problema das pessoas e da sociedade. Se a pobreza te incomoda, lute contra a pobreza, não queira empurra para debaixo do tapete. É como falei no inicio do papo, somos 52% da população. Te incomoda hoje a filha da emprega estudar com seu filho? Isso é um problema seu. É uma parada que você tem que resolver dentro de você. O tempo tá mudando, a gente tem que tá atento ao que tá acontecendo. É meio absurdo a gente não estar preparado para isso. Pô, não teve nenhuma reparação de danos com essa população, quando o pobre e o preto começa ter acesso, uma possibilidade, eu acho ruim? Todo mundo tem direito de reivindicar, tá ligado? O que não dá é aceitar homofobia, aceitar racismo. Não posso achar normal 15 pessoas serem assassinadas em Osasco. Se fossem 15 pessoas mortas na Vila Madalena, ninguém ia achar normal. Qual é a cor de quem tá morrendo? Qual é a cor de quem tá matando?
Como é a questão da repressão policial em Minas?
O perfil é um pouco diferente, mas a polícia é truculenta também. Resquícios da ditadura, mano.
Você já sofreu com algum tipo de abuso?
Já, principalmente na adolescência, né? Tive bastante. Hoje em dia a música me permite viver outros horizontes, mas é complexo.
E como é entender essa complexidade na adolescência, o racismo, por exemplo. Como você entendia na época?
Eu entendia que a minha cor era não grata e que nem em todos os lugares eu tinha a mesma possibilidade de acesso. Agora o tempo, estudar, transitar, me permitiu entender qual era esse processo histórico que eu estava vivendo ali e como me organizar para combater esse processo histórico também. É muito doido isso e eu acho legal a forma como a galera vai entendendo isso e vai criando novos formatos para combater. Quando eu vejo uma molecada se organizar e fazer um rolê no shopping e aquilo causar… Não foi nada violento, era apenas uma galera se apropriando de um espaço público. Isso incomoda. Qual o problema de fato? O cara correr no shopping? Quando você tá atrasado, você não corre? Ou é a cor de quem tá correndo? O que incomoda? Qual o grande fator dessa equação?
Acho que hoje o rap no Brasil tá desenvolvendo um papel importante, principalmente os trabalhos mais recentes. Ele tá virando um processo de posicionamento. Mais do que só falar o que tá acontecendo, tá virando uma parada de posicionamento racial, político e social.
É um momento crucial para isso? Um momento que temos pessoas pedindo por retrocessos, por exemplo.
Eu acho que sim. Primeira coisa: o rap cresceu. Antes era o gueto falando para o gueto, nós quebramos essa fronteira. Hoje o rap está nas rádios, tá nas gravadoras, tá na vida da sociedade brasileira. O que eu acho mais brilhante nisso tudo é que o rap mesmo crescendo, alcançando esse novo estágio, ele não está se despolitizando, ele continua no avanço político. Você vê que os grandes personagens nessa trama estão mais politizados do que nunca. Olha o último disco dos Racionais, Cores e Valores, o nome já antecede o que vem, o discurso. Vários discos, o Batuk Freak da Karol Conka, o disco do Emicida. São posicionamentos da cultura afro brasileira moderna. É um novo momento, mas estamos mantendo vivas as raízes do rap, diferente do que aconteceu na América do Norte.
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Ouça o EP na íntegra:
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