As divergências entre correntes marxistas e anarquistas se desenvolvem praticamente desde a cristalização dessas tendências do socialismo há cerca de um século e meio. Já as convergências entre defensores da bandeira vermelha e da bandeira negra acabaram por ser minimizadas diante da importância atribuída aos embates, acabando por entrar no enorme porão dos fatos esquecidos da história. É para levantar as (possíveis) convergências entre anarquistas e marxistas da segunda metade do século XIX até os dias de hoje que Michael Löwy e Olivier Besancenot brandiram suas penas em Afinidades Revolucionária – Nossas Estrelas Vermelhas e Negras. Por uma Solidariedade entre Marxistas e Libertários, recém-publicado pela Editora Unesp.
Além de um prefácio e uma conclusão, o texto está dividido em quatro capítulos, os quais possuem suas próprias subdivisões. A escrita, contam-nos os autores no prefácio, foi dividida entre ambos, com a exceção de dois textos pessoais: uma “carta” a Louise Michel, do punho de Besancenot, e uma descrição biográfica de Benjamin Péret, de Löwy. Ainda que os capítulos possuam lógica interna, o livro não tem propriamente um fio condutor cronológico ou teórico. Apresenta-se muito mais como uma constelação de eventos e personagens que demonstram momentos e possibilidades de convergência entre as estrelas vermelha e negra.
O primeiro capítulo, “Convergências solidárias”, está dividido em duas partes: a narração de seis eventos históricos em que se pode notar alguma convergência entre marxistas e anarquistas e o retrato de sete figuras que poderiam ser apropriadas pelas duas famílias revolucionárias. Este primeiro capítulo, disposto em sequência cronológica, dá-nos as bases históricas para pensarmos o sentido em que se pode dar um trabalho comum entre anarquistas e marxistas.
O primeiro evento narrado, a I Internacional e a Comuna de Paris, é de importância fundamental: trata-se de um momento em que houve trabalho conjunto entre correntes diversas do movimento operário na primeira associação internacional dos trabalhadores, cuja fundação completou 150 anos em 2014, e na primeira experiência de poder popular. Os demais eventos históricos narrados lembram ainda outros momentos que podem ser interpretados como convergências entre libertários e marxistas. Os autores passam pelo episódio dos mártires de Chicago, de 1886, evento que dá origem à celebração do 1º de Maio como dia da trabalhadora e do trabalhador; pela evolução do sindicalismo revolucionário e a declaração da Carta de Amiens, em 1906, momento importante pela proclamação intransigente da autorrepresentação da classe operária; pela revolução espanhola, intitulada revolução “vermelha e negra”; pelo Maio de 68, com a atuação tanto de Cohn-Bendit quanto de Daniel Bensaïd; e finalmente pelo período atual reconhecido como “do Altermundialismo aos Indignados”. Este último conjunto de fatos narrados põe em relevo que a atuação conjunta entre marxistas e anarquistas não se trata apenas de uma proposta para o futuro, mas de um fenômeno observável em alguns dos importantes movimentos das primeiras décadas do século XXI: das grandes manifestações de Seattle ao Reclaim The Streets londrino; dos Indignados espanhóis ao Movimento Passe Livre brasileiro.
Passando dos fatos históricos aos indivíduos, Besancenot e Löwy levantam trajetórias que demonstram possíveis confluências entre a atuação de marxistas e anarquistas. Destacam-se aqui dois textos em primeira pessoa assinados pessoalmente pelo respectivo autor: uma “carta” dirigida por Olivier Besancenot à grande figura da Comuna de Paris, Louise Michel; e um texto biográfico do surrealista Benjamin Péret, de autoria de Michael Löwy. De não menos importância são as demais figuras mencionadas, como a marxista Rosa Luxemburgo e a anarquista Emma Goldmann; além de Pierre Monatte, Buenaventura Durruti e o mais conhecido pelos militantes da última geração, o Subcomandante Marcos.
O segundo capítulo, “Convergências e conflitos”, é talvez o que levante os pontos mais polêmicos, deixando os autores mais vulneráveis à crítica vinda tanto de anarquistas quanto de marxistas. O capítulo trata das diferentes interpretações quanto à atuação de bolcheviques e anarquistas na revolução russa e, como continuação desta, nos episódios de Kronstadt e da Makhnovichtchina. No que tange às interpretações sobre a repressão bolchevique aos marinheiros de Kronstadt e à Makhnovichtchina, Besancenot e Löwy se apoiam também em alguns relatos que destoam das interpretações canônicas marxista e libertária, em especial em Victor Serge.
O título do terceiro capítulo, “Alguns pensadores marxistas libertários”, denuncia a interpretação que os autores do livro propõem sobre as obras e trajetórias de três importantes figuras: Walter Benjamin, André Breton e Daniel Guérin. Cada um a seu modo, os três intelectuais expressaram a confluência vermelha e negra, conforme a opinião de Löwy e Besancenot. Considerado ato de absoluta atualidade por Besancenot e Löwy, Guérin postulou a necessidade de que o marxismo tomasse “um banho de anarquismo”, do qual sairia certamente regenerado.
Finalizando o livro, o quarto capítulo, “Questões políticas”, busca fazer propostas de leituras e releituras sobre sete temas de constante divergência entre marxistas e libertários. Os temas vão da relação entre “indivíduo e coletivo” à relação entre “sindicato e partido”; de “autonomia e federalismo” a “democracia direta e democracia representativa”; além de “planificação democrática e autogestão”, “ecossocialismo e ecologia libertária” e a questão: “fazer a revolução sem tomar o poder?”. Este último capítulo é o mais diretamente propositivo do livro, discutindo em grande medida alguns aspectos do debate sobre formas de organização bastante presente nos meios da esquerda militante. Característica marcante é a proposição de Besancenot e Löwy da necessidade de uma democracia radical e pluralista, proposição que perpassa diversos aspectos da discussão organizativa. Aqui não se percebe intenção em criar meios- termos ou conciliações do inconciliável, mas sim, adentrando algumas das principais polêmicas – teóricas, filosóficas e político-organizativas – que dividiram a militância e a intelectualidade marxista e anarquista, pôr em relevo as interpretações mais adequadas de ambos os lados.
Por fim, a conclusão do livro está atada a uma palavra de ordem concreta: “Por um marxismo libertário”. Este não deve ser visto, segundo os autores, como um conjunto doutrinário ou um corpus teórico fechado: não há um único marxismo libertário, mas uma miríade de tentativas de juntar os pontos das duas grandes tradições revolucionárias.
Os autores buscam ainda deixar claro seu ponto de partida: são, por formação, marxistas. Na proposta apresentada por Olivier Besancenot e Michael Löwy de um “marxismo libertário”, em que se beba igualmente nas fontes marxista e anarquista, a relação entre substantivo e adjetivo e a trajetória prévia dos autores nos demonstram de onde ela parte e em que sentido se guia. Olivier Besancenot militou na Liga Comunista Revolucionária no início dos anos 1990, tendo sido candidato à presidência da República francesa pelo partido trotskista em 2002 e 2007. Em 2009, participou da fundação do Novo Partido Anticapitalista, integrando sua direção. Já o sociólogo brasileiro radicado na França Michael Löwy dispensa maiores apresentações, importando sobretudo notar que ao longo de sua trajetória agregou as notórias influências de Leon Trotsky, Rosa Luxemburgo e Georg Lukács, além de, como se pode notar passando os olhos por sua vasta obra, nutrir grande interesse pelo surrealismo de André Breton, pelo pensamento de Che Guevara, pela relação entre o romantismo e o pensamento revolucionário e diversos outros temas. Referências diversas que aparecem em Afinidades revolucionárias.[1] Assim, é bastante claro que a proposta de um “marxismo libertário” – e não de um “anarquismo marxista” – parte das penas de dois marxistas de tendências revolucionárias. O que, é claro, não deve restringir a possibilidade de que anarquistas venham a aderir a perspectivas semelhantes. Os próprios autores apontam na conclusão alguns grupos de militantes e intelectuais de tendência anarquista diretamente interessados na démarche do marxismo libertário, como alguns membros de Alternative libertaire, por exemplo.
As perspectivas propostas por Olivier Besancenot e Michael Löwy neste livro militante são de especial interesse para o atual cenário das lutas sociais no Brasil e no mundo. Como se pode notar pela leitura, a proposta não configura apenas uma ideia original que se poderia pôr em prática no futuro: ela emana da observação do movimento social das classes trabalhadoras em diversos momentos nos últimos 150 anos e, em especial, nas lutas das primeiras décadas do século XXI. É bastante óbvio, por outro lado, que a proposição é corajosa, já que não está imune a ataques de marxistas e anarquistas que não aceitem pensar e repensar suas convicções e práticas. Se for esta a recepção, tanto pior para o movimento social. De qualquer forma, é com grande felicidade que se recebe a tradução do livro para a língua portuguesa realizada por João Alexandre Peschanski e Nair Fonseca e publicada pela editora da Unesp. Podemos nutrir a esperança de que no futuro o livro-resposta do anarquista francês René Berthier, Affinités non Électives[2], que encetou um interessante debate, seja igualmente traduzido no Brasil. E que se façam os votos para que as bandeiras e o futuro sejam vermelhos e negros.
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da USP
[1] Sobre a trajetória de Michael Löwy ver a entrevista concedida pelo sociólogo a Ana Vládia Cruz e Yuri Martins Fontes e publicada no número 8, de dezembro de 2013, da revista Mouro.
[1] René Berthier, Affinités non Électives : A Propos du Livre d’Olivier Besancenot et Michaël Löwy, Pour un Dialogue sans Langue de Bois entre Libertaires et Marxistes. s/l: Éditions du monde libertaire/Les éditions libertaires, 2015.
Resenha do livro de Olivier Besancenot e Michael Löwy, Afinidades Revolucionárias. Nossas Estrelas Vermelhas e Negras. Por uma Solidariedade entre Marxistas e Libertários, trad. de João Alexandre Peschanski e Nair Fonseca, São Paulo: Editora Unesp, 2016
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