Tempos de samba e chumbo

Atrás da mesa, da esquerda para a direita: Everson Martins, Gerson da Banda, Fabiana Cozza, Adolfo Moura e Nino Miau. À frente,  no mesmo sentido, Victor Mendes e Gero Camilo. Os atores e os músicos fizeram uma imersão na história de Cartola e do samba, abordando-a de forma política e social. Foto: Roberto Setton
Os atores e os músicos fizeram uma imersão na história de Cartola e do samba, abordando-a de forma política e social. Foto: Roberto Setton

Abóbora ou jiló podiam acompanhar a saborosa carne frita que Dona Zica preparava. Com seu talento indiscutível para cozinhar, seu sonho era abrir um restaurante. Após algum esforço, a sobreloja do imóvel 53 na rua da Carioca fez do seu desejo realidade, transformando-se no Zicartola.

O nome era um acrônimo de Zica e de seu companheiro, o sambista Cartola. Não à toa, no rodapé do cardápio estava grafada a frase “Samba mesmo é no Zicartola”. É nesse ambiente que se passa a peça Razão Social, com direção e texto de Gero Camilo e Victor Mendes. A estreia está marcada para o dia 18 de novembro, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo.

O recorte temporal leva o espectador a um momento específico: a madrugada de 31 de março para 1° de abril de 1964, quando se dá o golpe civil-militar. Assim que tomam o poder, os militares invadem e incendeiam a sede nacional da UNE, além de começar um fuzilamento dentro do prédio, localizado na Praia do Flamengo. Amante do samba e frequentador assíduo do Zicartola, o estudante Jucelino (Mendes) corre para lá. No meio dos quase quatro quilômetros que separavam a UNE de seu destino, ele esbarra em Sabino (Camilo), um operário que voltava do serviço.

Assustado com a situação desesperadora do garoto, Sabino decide fugir com ele, sem saber exatamente o que acontecia. Chegando ao restaurante, causam espanto em Cartola (Adolfo Moura) e Zica (a cantora Fabiana Cozza). Os dois acolhem os refugiados, e logo o espaço vira um centro de reuniões sobre a repressão, como realmente foi o Zicartola em 1964. Os músicos Everson Martins, Gerson da Banda e Nino Miau também acompanham o elenco, tocando ao vivo durante o espetáculo.

Segundo Mendes, a peça surgiu no momento em que revelou a Gero sua vontade de fazer uma homenagem ao samba. Juntando seu conhecimento sobre o assunto com o de Gero sobre política, decidiram trazer exatamente esse episódio para o palco. A vontade de retratar não apenas a parte ensolarada da música, mas também as sombras lançadas pela ditadura foi o que os orientou na construção do texto.

Naquele momento, Cartola, carioca nascido no Catete, ainda não tinha gravado ele mesmo uma música sua, por mais que seus sambas tivessem feito sucesso com outros cantores. Fato é que esses últimos eram brancos e as gravadoras achavam que um negro não atrairia os ouvintes. Por isso, há uma cena em que Cartola se nega a continuar ouvindo suas canções. Sua posição explicita como o campo cultural foi importante para a luta antirracista. O samba e a black music de Tim Maia, Toni Tornado e outros foram meios fundamentais de entoar mensagens contra a política de segregação racial, tornando-se símbolos de resistência. Adolfo Moura, ator gaúcho que está na pele de Cartola, lembra bem desse momento da história do País. Filho de militar, conseguiu compreender a totalidade do medo que as pessoas sentiam do regime e se vale da memória dessa angústia em sua atuação.

Além da vontade de trabalhar com Gero, Fabiana Cozza confessa que seu entusiasmo para participar da peça – depois de anos sem subir aos palcos como atriz – se deu ao perceber a atualidade do texto, embora retrate um cenário de mais de meio século. O momento conturbado da política e a situação dos estudantes ocupando escolas e lutando por seus direitos também são apontados por Gero e Victor durante entrevista para a CULTURA!Brasileiros. “O que eu pesquisava sobre o momento histórico do Brasil em 64 foi se assemelhando muito com o que estamos vivendo no País hoje. O que eu imaginava que poderia ser datado já não era mais datado e estava colado à situação real do Brasil agora. Então a peça é mais do que pungente”, apontou Gero ao revelar que antes tinha receio de que o texto pudesse parecer panfletário e limitado à época da ditadura militar.

Razão Social, título que brinca com o registro de pessoa jurídica do Zicartola e com sua importância política e social na época, teve temporada de 18 de novembro a 18 de dezembro. Agora volta em seis novas apresentações, em 13, 14, 15, 20, 21 e 22 de janeiro O preço dos ingressos varia: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia) e R$ 9 (credencial plena).


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