Tradição e ruptura

Foto: Auro Lescher e FMagalhães
Foto: Auro Lescher e FMagalhães

Sabemos da biologia que a evolução das espécies acontece precisamente pela dualidade sempre tensa entre tradição e ruptura. A mutação genética num ser vivo produz algo diferente do roteiro original que ele trás em seu genoma. Surge abruptamente uma novidade. Se a novidade mostra-se melhor adaptada às circunstâncias do ambiente, ela tende a se manter, passando a fazer parte da nova tradição desse ser vivo que continua em evolução, transmitindo-a para seus descendentes. Ou, pelo avesso, quando um projeto de vida perde seu poder de adaptação, ele tende à extinção.

Outro dia surpreendi-me com um pensamento novo: se considerarmos o tempo geológico, para que possa existir tamanha exuberância de tipos de vida no planeta – a planária, o mosquito, a paineira, o sapo, o vírus, o homem, a mulher, a girafa -, a velocidade desse conflito, entre o que está estabelecido e o que é diferente, tem que ser frenética.

A vida é voraz e veloz.

Além do mais, tem aquele tal do imprevisível, do incogitado, para o meu gosto, o melhor da festa.

Como terá sido o primeiro encontro entre dois átomos de hidrogênio com um outro de oxigênio? Dois elementos de naturezas diversas que formam um terceiro absolutamente novo. H2O, uma molécula-crisálida. Ela mata a nossa sede, condensa em orvalho o fulgor da manhã ou em lágrimas a nostalgia da história. O solvente universal, muito mais que um simples abraço entre três átomos

Para o indivíduo que vive a transformação (sobretudo quando se pode ter consciência dela, no caso de um ser humano) sempre será um drama, porque nos angustiamos com aquilo que não conhecemos. E a alma, esse conto de fadas (sempre Leminski), é pródiga em criar subterfúgios, labirintos e, algumas vezes, verdadeiros bunkers para nos poupar de assuntos e emoções espinhosas.

Simples assim. Se há salvação, ela virá da nossa capacidade de consciência e do inusitado.

Esta crônica deve ter mais a fisionomia de uma reflexão filosófica existencial do que religiosa. Então, salvação aqui, está sendo usada como referência ao risco que a humanidade corre de se extinguir, canibalisticamente. A animalidade que nos constitui, de um lado, e a robótica que avança solta, de outro, poderão alienar a potência do humano a ponto de fazerem do Antropoceno (a Era Geológica mais recente), uma experiência ousada que apareceu na Terra mas que não foi sustentável. Acabou.

Também nunca se espere de um texto meu, a decisão final sobre qualquer coisa. Então, para uma visão mais generosa e igualmente possível, também devemos considerar a afirmação do Valter Hugo Mãe, poeta e escritor português, segundo a qual a história da humanidade ainda não teria nem começado.

Ainda hoje o animal ganha do humano. Mas haveria alguma chance para o inverso.

Dou o meu pitaco. Acho que o que definirá nosso destino será a capacidade que esse grande coletivo de sete bilhões de pessoas tem de encarar, ralar, enfiar linguagem e consciência naquilo que é mais importante e também urgente. Há uma sensível dissonância entre os acontecimentos da vida, salpicados de rupturas, e as instituições e sistemas que conservam as tradições.

Entre a crise do golpe ou o golpe da crise fico com mais medo do segundo. Se estamos numa grave crise, o pior golpe seria não identificarmos do que precisamente se trata. Ainda que não saibamos quais novidades ou rupturas estão por vir, já sabemos algumas coisas importantes sobre ela. A escola não educa, a propaganda é o negócio da alma, o lucro financeiro ainda é mais importante que o lucro humano e planetário,  sem falar na velha política, ora a política…

Não podemos nos golpear, enquanto espécie e indivíduos. O buraco de ozônio é mais embaixo e há algo de podre em vastos Reinos.

Que venha a metamorfose!

* Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenador do Projeto Quixote e psicoterapeuta e fellow da Ashoka Rede de Empreendedores Sociais


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