Wilson das Neves, um dos maiores bateristas do Brasil, chega aos 80 anos

O baterista carioca Wilson das Neves. Foto: Luiza Sigulem
O baterista carioca Wilson das Neves. Foto: Luiza Sigulem

Nesta terça-feira (14), o baterista, cantor e compositor carioca Wilson das Neves completa 80 anos. Com 62 anos de carreira profissional, ele é um dos instrumentistas mais requisitados do País. Já participou de mais de 600 registros em estúdio, lançou álbuns instrumentais autorais que são cultuados por ouvintes de todo mundo e, há mais de 30 anos, reina absoluto no comando das baquetas da banda que acompanha Chico Buarque. Em 1996, quando lançou o álbum O Som Sagrado de Wilson das Neves, revelou-se também cantor e compositor de fina elegância.

Nos palcos, a celebração aos 80 anos ocorreu em São Paulo no último fim de semana. De sexta-feira (10) a domingo (12), das Neves apresentou-se no Sesc Vila Mariana acompanhado de Elza Soares (com quem dividiu o clássico álbum de 1968 Elza Soares / Baterista Wilson das Neves), Luiz Melodia, Paulo César Pinheiro, Maíra Freitas, Cláudio Jorge e Emicida.  

Em março de 2009, o baterista foi tema de perfil publicado na edição 20 de Brasileiros. Para celebrar os 80 anos do músico, revelamos a seguir, na íntegra, a entrevista que originou a reportagem.  

Leia também três matérias da coluna Quintessência, duas dedicadas a importantes álbuns de nossa música popular que contaram com a participação do músico e a última sobre seu terceiro álbum solo.

Os Ipanemas – Os Ipanemas (1964)
Moacir Santos –  Coisas (1965)   
       
Wilson das Neves – Samba Tropi… Até Aí Morreu Neves (1970)

Brasileiros – Na internet, a maioria dos textos sobre sua trajetória musical afirma que você começou a tocar bateria aos 14 anos. Foram estudos teóricos ou um aprendizado autodidata?
Wilson das Neves – Não. Eu não comecei a estudar aos 14 anos. Nessa idade eu ia muito ao candomblé, porque desde muito garoto eu era fascinado pelo som dos tambores. Minha família é toda candomblecista. Na verdade, comecei a estudar o instrumento aos 18 anos, em 1954, quando entrei para o Exército.

Algum familiar influenciou seu interesse por música?
Sempre gostei de música, porque eu tinha uma tia que dava festas em casa quase toda semana e por qualquer motivo. Aniversário do cachorro, ela dava festa. A casa dela vivia sempre cheia de gente e a música era um elemento que não podia faltar. Havia muitos discos de big-bands de jazz que tocavam nas festas dela e eu ficava prestando atenção a tudo. Rolavam também regionais de choro e grandes orquestras nacionais. Um ambiente que muito me estimulou e tudo teve início quando que eu conheci um baterista que começou a tocar nessas festas, chamado Edgard Nunes Rocca, mas conhecido por todos como Bituca.

Bituca foi seu professor?
Eu estava com 18 anos, já estava no Exército, e decidi ajudá-lo nos bailes porque eu não tinha dinheiro pra entrar. Enquanto ele tocava, eu ficava por ali, dançando. Depois, no final do baile, eu o ajudava a levar o instrumento de volta, até que um dia ele perguntou se eu não gostava de bateria, disse que sim e ele aconselhou: “Mas, então por que você não estuda o instrumento?!”Eu não tinha referência alguma, mas ele me levou a uma escola e comecei a ter aulas. Depois disso, ia ao baile com ele e já não dançava mais. Ficava ali, de olhos e ouvidos atentos a ele, aprendendo. Depois de um ano, o Bituca saiu da banda. Fiquei no lugar dele e estou até hoje tocando por aí.

Nesse período ainda havia muita resistência à utilização da bateria no samba? 
Não, naquela época a bateria já era bem aceita e difundida. A resistência tinha ficado pra trás. Acontece que a bateria não é um instrumento criado para tocar samba, ela foi criada para tocar a música norte-americana. Já na década de 1940, o instrumento chegou fortemente ao Brasil e começamos a fazer nossa tradição. Nesse período, embora anônimos, já havia grandes bateristas. Músicos que liam e escreviam música.

Algum grande baterista deste período que você destacaria e que, hoje, não é lembrado? 
Difícil citar nomes sem ser injusto. Mesmo porque nossa memória é curta. Naquela época, não se dava crédito aos músicos e não se registrava nada. Músico profissional era anônimo. Na grande indústria, quem começou a colocar os nomes dos músicos nos créditos dos discos foi a Elis Regina. Isso, na virada para os anos 1970, quando toquei com ela. Antes dela, ninguém dava muita atenção. Crédito mesmo só para o compositor e olhe lá. Nem o maestro que arranjou o disco era respeitado.

Você fez parte de uma geração de grandes bateristas, como Milton Banana, Edison Machado, Airto Moreira e o Dom Um Romão. Todos com um estilo personalíssimo, ligado à cadência da bossa nova. Na bateria, a “batida diferente”da bossa foi mero casamento do samba com o jazz?
Para mim, bossa é samba e samba é um ritmo muito complexo. Se você observar bem, ninguém toca samba igual a ninguém, mas tudo deriva dele e tanto faz se é bossa nova ou se é samba. Deem o nome que quiserem dar. Para mim, a bossa é uma variação do samba e cada um a toca do seu jeito. Claro, houve na bateria tocada por aqui muita influência da música americana. O instrumento não foi criado para tocar samba e os métodos de aprendizado acessíveis no País eram todos americanos. Para fazermos um método de samba para bateria no Brasil tivemos de enfrentar dificuldades, como investir nas primeiras partituras. 

Em São Paulo, o baterista exercita a faceta de cantor e compositor. Foto: Luiza Sigulem
Em São Paulo, o baterista exercita a faceta de cantor e compositor. Foto: Luiza Sigulem


No início de carreira, nos anos 1950, você tocou na Orquestra Ubirajara Silva e chegou a integrar a filarmônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Como se deu essa ligação? 

O que me levou à música clássica foi a curiosidade da descoberta e o fascínio do aprendizado. Minha intenção não era dizer “vou tocar no Teatro Municipal”. Queria vivenciar o universo da música erudita, mas continuava indo ao candomblé e gostava de música popular. Se você for ver bem, em uma sinfônica, nas horas vagas, quase todos os instrumentistas, dos metais, das cordas, do sopro, trabalham com música popular. Minha intenção era aprender com propriedade e acho que aprendi. Toquei em importantes espetáculos, como Mefistófoles e Aida. Era como estar no Céu, no Olimpo, mas, pouco depois, abandonei esse ambiente, porque não me pagavam direito e eu precisava tocar em outros lugares para poder viver de música.

O período que sucede a explosão da bossa revelou grandes instrumentistas brasileiros. Percebe-se nos créditos de álbuns que boa parte desses músicos trafegava pelas mesmas gravações. Como era esse ambiente? Havia competição entre vocês?
Não. Ao menos eu acredito que não havia competição. As gravadoras chamavam os músicos que podiam resolver o problema. Não se chamava por simpatia, pelo nome ou pela cor. Nada disso. Era essencialmente a questão do músico que resolve, entende? Os arranjadores tinham uma relação de músicos com quem podiam contar, e a gente acabava se encontrando nos estúdios com frequência. Com a afinidade, começaram a surgir os trios e os quartetos desse ambiente da bossa. Por um breve período, valorizou-se a música instrumental, que não era prestigiada por aqui. Até hoje, no Brasil, é muito complicado fazer música instrumental. As pessoas não ouvem, não têm conhecimento. 

Em 50 anos de carreira, você teve a honra de participar de uma infinidade de álbuns que são considerados obras-primas, como o LP Coisas, do maestro Moacir Santos. Houve algum trabalho que te surpreendeu, com um resultado final maior do que a expectativa?
Olha, eu gravei com mais de 600 artistas, gosto de tudo que fiz e faria tudo de novo. Quando eu sento no meu instrumento, eu não sento para brincar, não. Sento para fazer direito – ou pelo menos tento. Lógico que tem coisas especiais. Imagine você como eu fiquei quando o meu professor de Harmonia, Moacir Santos, me convidou para gravar com ele. Fiquei, como diria o Chico Anísio “com o peito em festa e o coração à gargalhar”.

Muitos músicos brasileiros de sua geração fizeram carreira no exterior. Permanecer no Brasil foi uma escolha pessoal? 
Eu nunca tive a intenção de morar fora daqui. Opção minha. Acho que minha terra é aqui. É aqui que eu vou fazer tudo que eu tenho que fazer. Vou lá, toco, gravo. Já fui, várias vezes, para fora do País. Já acompanhei vários artistas, mas meu lugar é aqui. Trabalhando com o Chico, há 25 anos, rodei o mundo. Aliás, essa semana ele me ligou para me cumprimentar, porque fui bisavô. Tenho agora um bisneto, Joãozinho, filho da Graça. Tá lá me dando o maior prazer e tenho que agradecer a minha neta, por me fazer bisavô vivo, porque bisavô morto não adianta nada!

Depois que você deixa o ambiente da bossa nova quando inicia sua carreira solo, com o álbum Juventude 2000 (1968), seu som vai se fundindo com o funk, com o soul e o jazz latino. Como foi essa mudança?
Foi papo meu e do Geraldo Vespar (o produtor, violonista e arranjador cearense), que fez os arranjos do primeiro disco: “Ah, vamos fazer uma coisa assim mais ousada, com intenção de atingir a garotada?”. O nome do disco, Juventude 2000, já sugere isso. Mas devo dizer que gosto de tudo, que gosto mesmo é de música. Não gosto de barulho, nem esse negócio de: “Saiu um som!”. Qualquer instrumento bem tocado me faz bem. Tem gente que não gosta de Astor Piazzolla  e, para mim, gente assim, não gosta de nada. Eu gosto de tango, como qualquer outro ritmo. Música boa é universal.

A partir dos anos 1980, você volta a assumir o papel do homem de estúdio. O período foi marcado pela explosão do rock e um recuo do samba e da MPB. A escolha de voltar a tocar como músico de apoio tem a ver com isso? 
Quando você gosta do que faz, não vê problema em nada. Como diz o Nelson Sargento: “O samba agoniza, mas não morre!”. Ele cai um bocadinho e se levanta – quando é bom samba, claro, porque, no meio de tanta coisa que se grava também tem muita sandice. Assim como tinha bossa sandice, hoje tem olodum sandice, pagode sandice e axé sandice. Tem os bons e os sofríveis.

Desde 1996, você resolveu tornar público seus dotes de cantor e compositor. Essa vocação era segredo antigos? 
Eu já tinha gravado sete, oito álbuns instrumentais e fui convidado para gravar mais um. Disse que não queria. O Esdras, produtor, insistiu e disse a ele: “Fiz tantos discos assim… Vou ter que ficar convidando colega para colaborar e a gente sabe que instrumental não dá dinheiro. Se for para gravar um novo disco, quero gravar minhas músicas”. Eu tinha muitas composições, mas nunca tive a ousadia de gravar, nem de mostrar para ninguém.

E você compõe desde quando?
Comecei a compor nos anos 1970. Quando resolvi gravar meus sambas, minha ideia não era cantar. Minha intenção era montar um conjunto e convidar intérpretes, cantores e cantoras. Quando Esdras pediu: “Traz tuas músicas pra gente ouvir”, ele ouviu umas cinco, seis e logo falou: “Muito bom, vamos gravar!”. Eu disse: “Vamos. Mas quem é que vai cantar?”. Ele respondeu: “Do jeito que você está cantando aí, canta você mesmo, Wilson”. Foi aí que virei cantor. Não foi nada programado, não tive a intenção. Aliás, a única coisa programada na minha vida é ser feliz.


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