Além do Câmbio

Otaviano Canuto. Foto: Banco Mundial
Otaviano Canuto. Foto: Banco Mundial

A trajetória internacional do economista sergipano Otaviano Canuto começou em janeiro de 2004. Professor licenciado da Faculdade de Economia e Administração da USP e secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda de Antonio Palocci, foi nomeado representante do Brasil no Banco Mundial, baseado em Washington.

Em 2007, Canuto foi convidado para ser vice-presidente para Países de outro braço financeiro da Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em janeiro de 2009, assumiu uma vice-presidência do Banco Mundial, no staff da instituição, não para representar o Brasil.

Na entrevista a seguir, feita durante uma corrida de táxi entre a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e um restaurante na Zona Oeste paulistana, onde Canuto encontraria amigos para um happy hour, o economista falou dos contornos de uma política industrial para o País, tema de um seminário da Escola de Economia da FGV.

Distante daqueles que apontam a valorização do câmbio como o principal elemento a ser corrigido para recuperar a competitividade industrial, Canuto concentra suas sugestões em uma agenda que reduza o Custo Brasil, facilite a vida das empresas, elimine burocracias desnecessárias, enfim, amplie a eficiência da estrutura econômica brasileira.

Além de melhorar o ambiente de negócios no País, o economista defende uma revisão dos gastos públicos, também no sentido de cortar itens desnecessários. “Apenas aquilo que servir para reduzir a pobreza deve ser guardado. E que se faça o mesmo com os recursos para a provisão pública de infraestrutura. Daí ponha o foco naqueles itens que não se encaixam aí, e seja transparente, na expectativa de que a própria sociedade entenda e facilite a remoção desses gastos.”

Brasileiros – Como o senhor vê o atual debate sobre uma política industrial para o País?
Otaviano Canuto: Hoje, há um debate facilitado pelo fato de que existe uma disposição de estabelecer um marco comum de referências. Com isso, não quero dizer que haja concordância nas respostas às questões formuladas, mas que há predisposição mútua, de ambos os lados, de aceitar uma definição, em primeiro lugar, sobre se é importante ou não haver indústria no País. E também se vale ou não tentar fazer alguma coisa para deter o processo que aparece estatisticamente como de desindustrialização. E, depois, ter também um marco comum de referências para discutir o que fazer e como fazer. De novo, não quero dizer que tenho a resposta, mas ao invés da recusa de conversar e de cotejar os argumentos, é fantástico ver as pessoas aceitando demarcar os argumentos e oferecer as suas respostas. Isso beneficia a todo mundo. As duas partes enriquecem os seus argumentos, sua própria análise, o que torna mais fácil a opção política, fora do contexto dos economistas, quaisquer que sejam as opções. Outro ponto é que é literalmente impossível, ou pelo menos é difícil, estabelecer qualquer tipo de evidência sistemática que permita a um dos lados dizer “olha, eu provo aqui que você está errado e estou certo”. Portanto, inevitavelmente o debate é um jogo de tentar ganhar corações e mentes, argumentando da melhor forma possível.

Quais os principais fatores que explicam a paradeira recente da economia brasileira, particularmente da indústria?
Há principalmente duas coisas, os fatores mais estáveis, estruturais, que já vinham afetando fortemente a indústria de maneira negativa. Mas a trajetória de evolução da indústria no PIB não precisaria ser tão negativa quanto tem sido, se não fossem esses fatores estruturais. Entre eles incluo o péssimo estado da infraestrutura, um processo de 20 ou 30 anos, só que a precariedade da infraestrutura tornou-se mais aguda na medida em que a economia cresceu, o consumo cresceu, por conta do sucesso na inclusão social e do dinamismo da economia no milênio anterior, algo que foi muito bom. Esse é o fator estrutural. Da mesma maneira e em seguida, explicarei porque eles afetam particularmente a indústria, os desperdícios associados ao péssimo ambiente de negócios que a gente tem, isso também têm prejudicado. Convém lembrar que a indústria é intensiva em transações, dentro de si, do que, por exemplo, a agricultura, então a indústria sofre proporcionalmente mais o fato de termos insegurança jurídica, problemas logísticos, não apenas no que diz respeito a translado, mas às autorizações de comércio, exportação e importação. Pois bem, também a qualidade dos serviços públicos que são insumo para a indústria, caso fosse melhor esse ambiente, ela seria mais competitiva. Se ordenarmos as diversas atividades econômicas, de acordo com uma escala crescente de dependência em relação à posição da taxa de câmbio real vis-à-vis salários reais, por exemplo, e vis-à-vis outros custos, os setores mais próximos dos recursos naturais serão relativamente menos afetados, sofrem menos, não têm a sua existência colocada em risco por causa da taxa de câmbio. Eles ganharão mais se a taxa de câmbio real estiver desvalorizada, mas caso esteja um pouco valorizada não morrem, apenas ganharão menos.

Já os produtos manufaturados…
No outro extremo dessa curva, dessa linha, estarão os produtos chamados de nontradables (não comercializáveis, ou seja, cujos similares, por qualquer motivo, não podem ser importados de outro país), que, até por definição, não serão afetados pela evolução da taxa de câmbio. Enquanto isso, nas faixas do meio, onde há uma sensibilidade maior ao câmbio e ao custo de produção, é onde se encontra a indústria. Mas, para além do câmbio, a mera existência desse custo associado à péssima infraestrutura, relacionado também ao ambiente de negócios, inclusive a carga horária para cumprir a tributação. São alguns dos componentes que aparecem no Custo Brasil, para não falar no nosso padrão de tributação, carregado de impostos indiretos, o que afeta principalmente quem tem muitas transações. Então, esses fatores fazem com que o câmbio real, vis-à-vis os salários reais, necessários para sustentar uma parcela grande da indústria seja bem alto. Então, toda vez que as coisas pioram, em qualquer um desses fatores, a indústria é a primeira a ser afetada. Pois bem, aí vem a pergunta: Ok, mas isso poderia ser compensado por câmbio real desvalorizado? Sim, agora o câmbio real desvalorizado, não podemos nos esquecer, tem impacto distributivo, sobre os salários reais. Se os salários nominais compensarem todo o efeito de uma desvalorização cambial, ao menos grande parcela dele, o preço dos produtos nontradables subirá fortemente em relação aos comercializáveis. E os não comercializáveis são insumo, os aluguéis ficam caros, e também são insumos para os produtos industriais. A mão de obra fica mais cara, tudo o que é nontradable é afetado. Há limites para o ambiente de negócios e a carência de infraestrutura ser compensada pelo câmbio. Pois bem, como eu estava dizendo, muitos desses problemas se tornaram piores por conta da pressão sobre a infraestrutura escassa, que aumentou à medida que o tamanho da economia cresceu. Esse problema foi naturalmente ficando pior com o crescimento, tornando a conjuntura ainda mais constrangedora para a indústria. Além disso, por boas razões, a trajetória de salários reais tende a ser de elevação. E tem sido acima do aumento do ritmo da produtividade. Os produtos não comercializáveis podem usar o mark up para recuperar as suas margens de lucro. Os comercializáveis baseados em recursos naturais não terão um grave problema porque os seus preços internacionais estavam em processo de melhora. Mas o setor industrial ficou imprensado, ele não pode repassar os seus custos para os preços, e tem perdido competitividade. Todos esses fatores se agravam a partir de 2009 porque a margem de resistência do parque industrial estava sendo encontrada na abdicação de várias linhas de produção, de várias etapas da cadeia produtiva, o que se expressa no índice de importação crescente. O mercado corrente para as atividades existentes e sobreviventes, no entanto, continuava a crescer, enquanto o PIB seguia crescendo a 4% ao ano. Quando vem a percepção de que o consumo não iria mais continuar em alta porque há limites, caso do endividamento das famílias, ou porque o desemprego caiu a um nível tal que a partir daí a dinâmica dos salários reais já estava naturalmente sobrepujando, indo ainda além da dinâmica anterior… Então esses problemas estruturais se agravam. Diante disso, o setor manufatureiro para de investir.

Qual o tamanho do ajuste a ser feito para retomar uma trajetória sustentável? O que seria pertinente fazer, não necessariamente a partir de 2015, mas desde agora?
É necessário abrir uma agenda tripartite, seguindo justamente os três tipos de fatores estruturais que eu mencionei. Bom, antes de tudo, perseverar e avançar na linha que o governo passou a seguir, no que diz respeito à participação do setor privado na infraestrutura. Não apenas a capacidade de financiamento de infraestrutura do setor público hoje está pequena, em relação às necessidades, como não tem grandes margens para mudanças bruscas. Além disso, a participação do setor privado não é apenas no financiamento, mas é que, imagino eu, para cada tipo de infraestrutura, decompondo em etapas os serviços de infraestrutura correspondentes, em algumas delas, o setor público tem mais competência para realizar, enquanto que em outras, particularmente na gestão e implementação de projetos de infraestrutura em detalhes, o setor privado tem mais capacidade. Então, a maneira de levantar os investimentos em infraestrutura capaz de gerar mais resultados a curto e médio prazos seria seguir essa divisão do trabalho, o que impõe o fortalecimento da credibilidade em relação a não haver mudanças nas regras. Além de avanços como a Lei dos Portos, que foi algo fantástico. Mas veja a demora até se chegar a essa reforma, os grupos de interesses, enfim… É um fator estrutural da infraestrutura. Outro é o do ambiente de negócios, como eu já mencionei. Olhar em detalhes os componentes desse ambiente de negócios vai permitir ao País localizar regras, regulamentações que não agregam valor e que estão lá porque alguém colocou em algum momento, por algum interesse e elas existem.

E encarece a produção…
Elas não apenas viram fonte de custo para a produção industrial, mas também são um desperdício de recursos humanos e materiais, do ponto de vista da economia como um todo. Imagine o benefício se houvesse menos gente talentosa como a que acaba sendo empregada nessas tarefas, com atividades de enxugar gelo ou como fazer planejamento tributário, lidar com processos judiciais. Do ponto de vista macro, é um desperdício. Então, se conseguirmos reduzir isso, a produtividade total dos fatores aumenta porque as pessoas irão ter tempo para fazer outras coisas mais úteis. Essas duas frentes se combinam muito porque certamente investimentos privados, não apenas de infraestrutura, vão ser facilitados com a melhora do ambiente de negócios. Uma terceira frente, óbvia para o meu juízo, é que é chegado o momento de fazer um pente fino também na qualidade e no destino do gasto público.

Em que sentido?
Democraticamente, a sociedade definiu o papel do nosso Estado como arrecadador e provedor de recursos, portanto não fortuitamente, tem a dimensão que tem. Porque se 35% do PIB (aproximadamente o tamanho da carga tributária no País) é gerado a partir do Estado, a qualidade disso importa e muito. Há duas coisas que poderiam ser feitas em relação à melhora do resultado desses 35% do PIB. Um deles, dos mais óbvios por sinal, é que creio que ainda há margem para o aumento da eficiência dos gastos. Não estou falando aqui de nenhuma bandeira política. Se a transparência no processo de compras for levada a níveis infra, em projetos menores, não apenas em grandes obras, certamente o custo da provisão de bens e serviços para o setor público cairá. Além da qualidade da governança, e o risco de desvio de recursos, que diminui. O potencial de uso das telecomunicações, como meio de empoderar os cidadãos, ajudando na qualidade dos serviços públicos, por exemplo, observando, repassando informações, se manifestando quando os professores não aparecem, quando médicos não aparecem, e assim por diante…

Não parece complicado fazer isso.
E não é. Aliás, hoje o Quênia já faz isso. A revolução dos meios de comunicação tornou possível, todo mundo tem celular, você está no mundo e sabe que a qualidade de vida do seu filho dependerá da qualidade da escola. O pai e a mãe são os primeiros interessados, isso para dar um exemplo de como se pode utilizar a tecnologia para melhorar a qualidade da governança. Aí, alguém poderá dizer que a margem para esse tipo de ação é pequena… Não sei, mas um outro exercício complementar e simultâneo que deve ser feito, é abrir cada uma das caixinhas, ver o que realmente serve para beneficiar os mais pobres, para reduzir a pobreza. Aquilo que servir para esse fim deverá ser guardado. Faça-se o mesmo com os recursos para a provisão pública de infraestrutura. Daí ponha o foco naqueles itens que não se encaixam aí, seja transparente, na expectativa de que a própria sociedade entenda, e facilite a remoção. Não me peça muitos exemplos, pois aí eu estaria sendo leviano, mas as pessoas falam, por exemplo, que é difícil compreender como se gasta tanto com seguro-desemprego, em um momento em que o País está com um desemprego tão baixo, algo que está relacionado a alguns tipos de pensões, etc. O resultado final desses dois movimentos, em relação ao gasto público, vai criar espaço, quer seja para reformas, como a tributária, com o governo federal tendo descoberto a fonte possível de recursos com as quais ele poderá ajudar os Estados. Os processos para o pagamento do PIS/Cofins e do ICMS, se fossem simplificados, reduziriam brutalmente aquela carga horária, que é um ônus para as empresas com a arrecadação de impostos. Mas, para isso, é preciso o governo federal estar capacitado para aceitar uma perda na arrecadação tributária, pois ele terá de abrir mão de um certo montante de recursos.

Há o risco de isso aumentar o déficit?
Para fazer isso, sem colocar em xeque a estabilidade fiscal, um trabalho paralelo precisará ser feito do lado dos gastos. Ou se a opção for outra, que esse espaço fiscal encontrado seja direcionado, quer seja para a redução da pobreza, quer seja para investimentos em infraestrutura. Essas três linhas lidam justamente com esses fatores que afetam os setores produtivos que se encontram no meio da minha escala de vulnerabilidade em relação ao câmbio real. Quanto mais se conseguir avançar nisso, menor será a preocupação com essa desvalorização real do câmbio, relativamente aos itens de custo, inclusive os salários. Para não falar da agenda óbvia de longo prazo que é a educação, tão óbvia que a gente nem precisa ficar mencionando, inclusive a fantástica ideia que é o Pronatec, ao tentar fazer algo mais imediato para suprir as deficiências que se vê na provisão de mão de obra qualificada em certas áreas, que me parece ser a agenda mais promissora para a indústria.


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