Uma pata entre Garnisés

Foto: Pablo de Sousa Fotografia
Foto: Pablo de Sousa Fotografia

“A gente trabalha como uma pata: bota um ovo grande e não faz estardalhaço, num mundo de muito garnisé.” Essa é apenas uma das várias metáforas que pontuam as conversas de Ogari Pacheco, criador e presidente do Laboratório Cristália. Mas é talvez a que melhor ilustre seu estilo à frente do laboratório conhecido por ser o mais inovador do Brasil. Pacheco não gosta de barulho. Só muito recentemente adotou o estilo low profile. Antes era “no profile”. Tem sido assim há 42 anos. Esse paulistano criado no interior, silencioso como um mineiro – ou uma pata –, tem relegado seus feitos à discrição, enquanto muitos cacarejam pequenas realizações.

O laboratório nasceu de uma louca ousadia. Recém-formado, depois da residência no Hospital das Clínicas de São Paulo, Pacheco foi clinicar em Itapira, no interior paulista. A clínica que dividia com um colega foi batizada de Cristália – e ainda funciona. Ao mesmo tempo, passou a trabalhar em um hospital psiquiátrico. Com divergências em relação à direção, ele e outros médicos deixaram o emprego. Os colegas o chamaram para assumir o comando de outro hospital do mesmo gênero. Achavam que ele levava jeito para o negócio. Aceitou reticente. Com o tempo, propôs que passassem a fabricar os medicamentos utilizados. Os remédios representavam 6% do custo hospitalar.

Quase foi internado ali mesmo, mas conseguiu convencer os sócios. O pequeno laboratório produzia muito além do volume absorvido pelo hospital. Era preciso vender o excedente. Foi contratado um experiente representante de vendas, e os resultados começaram a aparecer depressa, mas o rapaz morreu em um acidente de carro. O próprio doutor Pacheco assumiu a função. Começou a participar de licitações públicas. Mesmo sem experiência, alcançou volume de vendas que justificasse a escala industrial e acabou sendo obrigado a produzir cada vez mais.

Pacheco imprimiu seu estilo ao negócio. E seu estilo é fazer diferente da maioria. Foi assim que o laboratório passou a atacar segmentos não ocupados. Com faturamento de R$ 1,4 bilhão em 2013 (16,5% maior que no ano anterior), quatro laboratórios (dois em São Paulo e dois em Itapira), 2.500 funcionários e 74 patentes registradas, o Cristália produz metade dos insumos que usa, enquanto o restante da indústria estabelecida no Brasil importa 90% das necessidades.

Primeiro laboratório nacional certificado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para produzir insumos farmacêuticos a partir da biotecnologia, o Cristália exporta para mais de 30 países e está em vias de obter a certificação da agência reguladora dos Estados Unidos – o que deve abrir os mercados americano e europeu. É o principal fornecedor de anestésico hospitalar do País e fabrica remédios para o tratamento de AIDS e câncer. Possui parcerias com outros laboratórios e participa de consórcios para atender programas oficiais específicos. Integra a Orygen Biotecnologia, sociedade com Biolab e Eurofarma, criada para produzir medicamentos biossimilares, e o Supera, também com a Eurofarma.

De fala pausada, prudente e eivada de neologismos, quatro filhos, 76 anos, o doutor Pacheco sai de casa todos os dias pouco depois das seis da manhã. Divide seu expediente entre o conjunto de laboratórios em Itapira e a sede da empresa, no Morumbi, zona sul da capital paulista. Frequentemente viaja pelo Brasil, mas se esforça para dormir todas as noites em casa, em Campinas. Fã de esportes, em especial do futebol, que jogava de cinco a seis vezes por semana na juventude, dorme por volta das 22 horas, menos quando o Corinthians joga à noite. Acompanha as partidas do clube com fervor, a menos que um desastre se insinue. “Se me der um desprazer de levar 7 a 1, desligo a TV antes…”

Pacheco recebeu a reportagem da Brasileiros em seu escritório do Morumbi, para a entrevista, na qual contornou perguntas sobre detalhes do negócio e esquivou-se com elegância de falar dos concorrentes e dos problemas da economia brasileira.

Brasileiros – O Cristália é muito conhecido por ser inovador, característica rara entre os laboratórios farmacêuticos do Brasil. Por que inovar em um mercado que o normal é copiar?
Ogari Pacheco: É uma questão de filosofia. Eu estabeleceria uma comparação, uma metáfora muito conhecida, a da couve e o carvalho. Escolhemos plantar carvalho. Quem vê agora o Cristália obtendo resultado com vários produtos inovadores sem muito estardalhaço, desconhece que trabalhamos há cerca de 30 anos no campo da farmoquímica e 15 no da biotecnologia. Os frutos estão surgindo agora de algo que foi semeado há muito tempo.

Por que essa escolha?
Não era muito difícil concluir que produzir genéricos, por exemplo, seria muito mais simples e rentável. Porém, que isso ia levar todo mundo para o mesmo caminho e acabar em uma disputa canibalesca, como está ocorrendo agora… Não tenho nada contra a produção de genéricos. Mas é difícil defendê-la. Qualquer um pode fazer. Nós escolhemos produzir aquilo que era mais difícil, exatamente para ser menos atacável, menos canibalizável. O País importa princípios ativos barbaramente. O déficit da balança comercial em farmoquímicos e medicamentos é de US$ 13 bilhões. O Brasil não faz nem 10% do que consome, e o que faz é insumo corriqueiro. Escolhemos tentar produzir Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), produzir princípios ativos não disponíveis facilmente no mercado há 30 anos. Tivemos de formar mão de obra para produzir as matérias-primas. Com isso, hoje a gente consegue ter um grupo de produtos exclusivos ou semiexclusivos, que são menos facilmente canibalizados.

Mas o Cristália também produz genéricos…
Genéricos, para nós, é ponta de linha. Como trabalho com fornecimento de medicamentos a hospitais, o hospital precisa de determinado produto para complementar anestesia. A gente produz como complemento, como parte do pacote.

Esse caminho que o Cristália escolheu lhe permite concorrer com grandes laboratórios internacionais?
Cometemos uma sucessão de erros. Por sorte, cometemos erros. Quando bolamos o laboratório, foi para baixar o custo operacional dos hospitais. Não tínhamos experiência em fabricar medicamentos. Fizemos um laboratoriozinho pequeno. O primeiro erro foi que esse laboratório produzia muito mais do que os hospitais consumiam. Fiquei com um pepino na mão. Tinha um excedente de produção e tinha de vender. Só que a gente não sabia vender. Passamos a participar de licitações públicas, que era o caminho mais fácil de colocar o produto, uma vez que não tínhamos a máquina comercial. E cometemos alguns outros erros. Quando a gente ia participar de uma licitação, vamos supor, de cem unidades, um número hipotético, era lógico racionar que eu devia cotar mais do que cem, porque não iria ganhar tudo. Catávamos 150. Ganhávamos 130, mas tínhamos capacidade para produzir apenas cem. Erro de cálculo. Tinha de comprar equipamento para fazer o que faltava. No ano seguinte, cotava mais e ganhava mais. Em oito anos, éramos um dos maiores fornecedores de licitação, pela sucessão de erros…

Por que se inova tão pouco no Brasil?
Porque é muito mais fácil copiar, além de ser rentável. É a lei do mínimo esforço. Para que vou batalhar e ficar inventando moda se tenho rentabilidade interessante copiando o que existe? Simples assim.

Sua resposta dá a entender que essa é uma característica do seu setor, mas a indústria brasileira como um todo é muito pouco inovadora e em alguns segmentos nem sequer copia. Existe explicação para isso? Em que o Cristália pode servir de exemplo para outros setores que também poderiam inovar?
Eu posso responder no campo farmacêutico, que cresceu, e cresceu muito, estimulado pela lei dos genéricos. Até então, copiava-se e vendia-se por meio de uma política comercial agressiva, forma eufêmica de dizer “empurroterapia”. Com o advento da lei dos genéricos, foi preciso copiar tecnicamente bem. Os genéricos têm uma formulação boa. O brasileiro sabe fazer bem a imensa maioria dos produtos disponíveis no mundo e os copia bem. O homem inova, inventa, desde que desceu das árvores. Quando aprendeu a trabalhar com fogo, quando desenvolveu a flecha, o arco, a roda, estava inventando. Invenção é coisa de todo dia. Só que de vez em quando o mundo é varrido por modismos. Agora, inovação é o tema, como se não existisse. Existiu sempre. O que foi a caldeira se não o que possibilitou à locomotiva andar? Inovação pura. O que Santos Dumont fez com o Demoiselle? Decorreram menos de cem anos entre o Demoiselle e a chegada à Lua, um ritmo alucinante de inovação. Portanto, ocorre isso no dia a dia. Agora, por trás da inovação, há o estímulo. E ele tem muito de econômico. Se o indivíduo ganha tudo facilmente, ele tem pouco estímulo para produzir coisas novas. Isso vale para o indivíduo, para a empresa, para o País. A Arábia Saudita está em cima de um oceano de petróleo. Tem dinheiro para caramba. Não obstante, o desenvolvimento tecnológico, industrial, é pequeno.

Quem cuida dos estímulos no Cristália para mantê-lo no caminho da inovação?
Podia, eufemicamente, dizer: “O conselho decide, é política do conselho”. É de fato política do conselho, mas se eu disser que não interfiro, estaria mentindo. Com certeza, estou envolvido na decisão.

O laboratório investe quanto em inovação? Antigamente, era um percentual do faturamento. Continua assim?
O percentual caiu, porque aumentou o faturamento. Invisto na medida da necessidade. Hoje, por exemplo, gira em torno de 6%. Já foi mais. Com o crescimento do faturamento, caiu um pouco o percentual, mas, nominalmente, o volume é maior. Não tenho a menor intenção de pretender ditar regra nem dizer qual o caminho. Estou dizendo o que faço. Consegui convencer os acionistas a distribuir apenas 10% do lucro. É suficiente para todo mundo viver bem. Os 90% ficam retidos para investir no desenvolvimento da empresa e de projetos. Por isso, o Cristália é uma empresa capitalizada. Muitas pessoas me perguntam: “Você não está interessado em fazer um IPO (Oferta Inicial de Ações, na sigla em inglês)?”. Quando for necessário pegar dinheiro no mercado, acho que o IPO é um bom caminho. Mas até agora não tem sido necessário. Somos uma empresa capitalizada em busca de projetos, e não uma empresa com ideias em busca de dinheiro.

A empresa pode continuar a crescer no ritmo atual?
Nosso projeto é acelerar o crescimento, de forma bem equacionada. Não precisamos fazer loucuras. Está indo muito bem, obrigado.

Qual é o foco desse crescimento?
Temos suporte em um tripé. Primeiro Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P&D&I), para desenvolvimento de novas moléculas, novas fórmulas. Na farmoquímica e na biotecnologia, para produzir os insumos necessários à produção. De um lado, produzo os insumos que preciso. De outro, com esses insumos, desenvolvo os produtos que vão impulsionar a empresa e vão se transformar em medicamentos na prateleira da farmácia. Com uma vantagem: a farmoquímica e a biotecnologia trabalham dirigidamente. Tentam desenvolver o que eu preciso. Não é moto próprio. Se tiver uma ideia muito boa, por que não? Mas a prioridade é o que necessitamos.

Qual tem sido a taxa de êxito?
O índice é muito bom. Não posso me queixar de forma alguma. Claro que quem trabalha com pesquisa tem de saber que algumas coisas não vão dar certo. Nós não somos deuses. Mas o índice de sucesso tem sido bastante aceitável.

Adquirir outros laboratórios faz parte da estratégia de crescimento?
Eu não fecho olhos à oportunidade e não faço loucuras. Às vezes me oferecem, já me ofereceram, empresas que não eram suficientemente atrativas. E já houve empresas que nos interessaram e nós adquirimos… O processo de negociação está sempre aberto.

O Cristália já participa do mercado internacional, está em mais de 30 países e tem a perspectiva de obter a certificação para o mercado americano. Isso vai mudar a escala de participação do laboratório no exterior?
Temos buscado certa modificação no sistema de atuar. Vender medicamentos, e vendemos em vários países, é interessante, mas mais interessante é se a gente conseguir vender inteligência, tecnologia, e isso estamos agora começando a fazer. É dessa maneira que a gente pretende estender nossa atuação. Isso multiplica a participação.

Em que tipo de medicamento?
Antirretrovirais foi a primeira incursão. A segunda é de citostáticos, medicamentos para câncer.

Em que países?
Como são negócios em andamento, prefiro declinar posteriormente.

O senhor pensa em acessar o mercado da Europa, Estados Unidos e Japão?
Existem negociações em andamento.

Isso tem prazo para ocorrer?
Isso não é como gravidez, que tem data definida para nascer. É quase como semear: dependendo das condições climáticas, pode brotar antes ou depois. Mas eu me refiro à Europa. Japão não. Não surgiram oportunidades ainda.

A eventual entrada nesses mercados muda a escala? O laboratório começa a se tornar um competidor global?
Costumo raciocinar step by step. Costumo sonhar, sim, mas com os pés no chão. Não faço parte do time que come mortadela e arrota peru. Isso você encontra muito por aí…

Em sua filosofia de passo a passo também se inclui a profissionalização da gestão que o senhor vem implementando?
Nesse caso, sim, o parto tem data marcada. Eu tenho de aproveitar as condições físicas que ainda tenho para concluir o processo de profissionalização da empresa. Portanto, tenho alguns anos…

Quantos anos?
Com certeza não chega a cinco anos.

O Brasil é um país tradicionalmente de empresas familiares. Por que profissionalizar uma companhia tão marcada com a sua personalidade?
Primeiro, porque não sou eterno. E segundo porque não sou eterno.

Só por isso?
Acho um motivo razoável. Não é? Clone só existe na biotech.

A profissionalização já trouxe algum resultado visível para a empresa?
Opa! Muitos. Ela está muito melhor com minha atuação reduzida. Eles estão conseguindo melhorar muito.

O senhor é um médico que se transformou em gestor. Como foi esse aprendizado?
Na realidade, fiz Medicina, mais especificamente cirurgia, aprendi a operar. Fui para o interior para montar uma clínica. Poucos anos depois, fui convidado para fazer parte de um grupo para montar um hospital de psiquiatria. Não entendo nada de psiquiatria. Não havia porque eu entrar. Eles insistiram: “Você tem jeito para o negócio”. Jeito para o negócio eu nem sabia o que vinha a ser. O fato era que eu devia ter mesmo jeito para o negócio, porque o hospital deu certo, acabou virando laboratório. Fui aprendendo…

Olhando como gestor, como o senhor enxerga a economia brasileira.
(Longa pausa) O País tem enormes possibilidades, enorme potencial e tem carecido de uma gestão adequada. Não quero polemizar nem ofender ninguém, mas o Brasil merecia uma gestão melhor. Com uma gestão adequada, meu Deus do céu! As possibilidades são imensas. Porém, hoje, você está me perguntando sobre a economia atual, e eu tenho de responder sobre o mundo em que vivemos, não com o que sonhamos. E no mundo em que vivemos, vamos nos desenvolver mais lentamente do que poderíamos, por várias razões. Até porque a economia mundial está um tanto quanto lentificada. Mas sou um otimista incorrigível. Acho que vai dar certo. Mas vai demorar…


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.