Sangue em Belém

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Foto: Luiza Sigulem

A prosa é eletrizante, os bandidos são muitos e as vítimas se acumulam. Os poucos heróis correm desencantados, tateando em meio a um cenário de devastação moral, quando não adotam os mesmos procedimentos dos criminosos. Nesse universo de miséria social, impunidade e vingança, reina a lei do pega pra capar. Há cenas extremas, com torturas, estupros, mutilações, desespero. Assim é Pssica, mais novo livro do jornalista, dramaturgo (escreve e dirige para o Grupo Cuíra há 20 anos), poeta, radialista, publicitário e romancista tardio Edyr Augusto. Figura de proa na literatura do Norte, conquistou também muitos leitores e admiradores no outro hemisfério, particularmente na França, onde recebeu o prêmio Caméléon.

Desde o primeiro romance, Os Éguas, Edyr notabilizou-se pelas frases curtas e precisas, sem adornos desnecessários, diálogos misturados à narrativa, dispensando aspas e travessões, e o uso peculiar da fala local, com suas gírias e termos emprestadas aos povos indígenas da região. O cenário é sempre Belém, onde mora, e adjacências, o que incluiu, no caso de Pssica, a Guiana. Seu realismo duro é baseado em parte nas sangrentas notícias de jornal da capital paraense. Aos 61 anos, mora no centro, cercado de craqueiros, prostitutas e mendigos, personagens que acabam entrando em seus livros.

Brasileiros – Como você se tornou escritor? Lembra das primeiras coisas que escreveu?

Edyr Augusto – Minha família tem vários escritores. A literatura sempre foi presente na minha casa. A música, também. Aos 17 anos, tive, com meu irmão mais novo, a ideia de escrever uma ópera rock. Ia se chamar O Bôto Andrógino. No meio do caminho, ele resolveu fazer pintura e eu continuei. Estreei como autor teatral um ou dois anos depois com Foi Bôto Sinhá. Não parei mais. Perdi a inibição. Tenho mais de 20 peças escritas, nos mais variados gêneros. Lancei os primeiros livros de poesia com 26 anos, influenciado pela poesia marginal de Chacal, Leminski e outros. São pequenas cenas, quase sempre com humor, fechos inesperados. Meus amigos gostam, mas penso que os especialistas, não. Talvez porque não obedeça nenhuma forma tradicional de rimas, número de versos, enfim. No fundo, talvez tudo seja a mesma coisa. Lembro de um poema: “Eu não bebo, não fumo, não preciso de nada. Basta uma lufada de vento, qualquer bundinha que passa, eu me embriago de vida, tonteio, soluço, lamento e lembro da minha fada”. Lancei livros com crônicas leves, sobre acontecimentos da cidade. Toda minha obra fala de Belém, minha cidade. Meu primeiro romance veio depois dos 40 anos.

De onde surgiu esse interesse pela narrativa policial? Da literatura, da sua vivência, ou de ambas?

Sou um leitor voraz. Gosto muito de literatura policial, desde os clássicos, como Poe, Hammet, Cain e Agatha Christie, até os mais recentes, como James Ellroy e Bret Easton Ellis. No Brasil, Rubem Fonseca e os escritos fortes de Marcelo Mirisola, Marcelino Freire e Ronaldo Bressane. Também sou voraz nas notícias. Leio vários jornais diariamente. Os de Belém têm cadernos policiais extremamente sangrentos, sugerindo, por vezes, temas interessantes a serem mostrados em ficção. Tudo isso me influencia. Um amigo, recentemente aposentado, foi da polícia. Linha de frente. Conversamos ao longo desses anos todos e muita coisa está nos livros. As dúvidas. A chegada de novos delegados, bacharéis em Direito, juntando-se à velha guarda e o atrito entre essas turmas. A pobreza de recursos para investigar. O rol de amizades do qual se valem na hora de obter respostas mais rápidas dos técnicos. Tudo influencia. Esses programas sensacionalistas mostrando os bandidos, geralmente pobres diabos, esfomeados, violentos e os olhares que dão. Essa vivência está nos livros.

Seu estilo faz pensar no Cidade de Deus, do Paulo Lins. Tem a ver?

Meu primeiro romance, Os Éguas, saiu um ano depois do Cidade de Deus, do meu amigo Paulo Lins. A narrativa crua, dura, real que ele faz, me ajudou a formatar meu estilo. A verdade é que Paulo Lins parte daquilo que é absolutamente real para contar e revelar uma situação que a muitos é desconhecida, enquanto que minha obra é ficcional, aqui e ali registrando problemas existentes em minha região.

Há uma diferença entre Moscow, que traz um certo lirismo e a subjetividade “não confiável” da primeira pessoa, e os romances com o delegado Gil, radicalmente objetivos. Como se deu essa passagem?

Moscow surgiu em um momento no qual escrevia, por puro exercício, dois romances ao mesmo tempo, alternando o dia de trabalhar em um e outro. A ilha de Mosqueiro, que os jovens chamam de Moscow, é paradisíaca e em um final de semana foi ao noticiário policial por conta de uma turma de garotos que cometeu vários delitos. Veio a ideia de romper, estilhaçar a visão do paraíso da ilha, que ao longo do tempo, realmente, perdeu essa condição, sendo local, hoje, de preocupação para as autoridades. Resolvi fazer um exercício na primeira pessoa, como você diz, com “subjetividade não confiável”. Ali o estilo, ensaiado em Os Éguas, se firmou. E sim, usei de certo lirismo para, em meio àquela violência toda, mostrar dúvidas amorosas de um adolescente. Nos outros livros, penso que não houve espaço para isso. Não houve tempo. Há uma urgência grande neles. São adultos reagindo a golpes do destino violentíssimos, fazendo com que saiam de seu conforto e ajam.
Há momentos tão condensados em Pssica, além da não diferenciação entre diálogo e narração, que confesso ter relido vários parágrafos para ter certeza de onde estava “pisando”.
Nas cenas mais densas, faço blocos onde a leitura é rápida, o cérebro trabalhando para organizar as falas, o repertório de imagens do leitor provocado. Gosto de pensar que sou lido por jovens e a velocidade com que apreendem aqueles pixels com mil possibilidades em games. Quero deixar o leitor ofegante, como se estivesse a dois metros da cena, escondido, assistindo e, ao final do bloco, inspire profundamente. E o texto é absolutamente conciso, essencial, para que o leitor complete as lacunas, faça sua história. Meus livros são falsamente finos. São concisos, intensos, com muita emoção e poucas perguntas.

Outro aspecto bem interessante desse e de seus outros livros é o registro da fala local. O efeito é tanto de um realismo extremo quanto de uma musicalidade nova, vibrante. Você lê em voz alta o que escreve, testa os efeitos da sonoridade?

A fala local surge em momentos de absoluta necessidade. Não sou um escritor regionalista, que inclua nos livros açaí, tacacá e pato no tucupi. Mas as pessoas falam. Usam exclamações, praguejam e nisso vêm palavras do nheengatu, língua dos índios, presentes no nosso cotidiano. E naturalmente, vêm com toda uma melodia local. Não, não leio em voz alta, mas enquanto escrevo é como se assistisse a um filme e aumento a velocidade da escrita para ter um resultado natural das cores locais que me cercam no dia a dia. Escrevo e ouço, vejo, sinto.

Como é escrever de Belém, uma das cidades mais belas do País e “personagem” central em seus livros?

Há alguns anos Belém não está tão bonita. Ao longo dos anos foi invadida por uma multidão atraída pelos grandes projetos, as riquezas das minas, pensando encontrar a fortuna. A grande maioria nem chegou perto disso e acabou formando um cinturão de extrema pobreza, em torno da cidade. A incompetência das autoridades, sem nenhum plano para lidar com isso, a falta de Educação e Cultura, transformou a cidade em uma das mais violentas do mundo, segundo pesquisas. Quanto a usá-la como cenário, é uma ideia boa. Como leitor, acostumei-me a imaginar as cidades descritas nos livros. Busco proporcionar a mesma experiência para quem lê meus romances. Belém é uma novidade. Para os leitores locais, a oportunidade de se encontrar na história. Para os de fora, um novo cenário.

E como é a cena literária local?

Mesmo sem nenhuma política cultural para a literatura, estadual ou municipal, há pequenas editoras e escritores que lançam livros em esforço pessoal. Há pelo menos duas livrarias de cadeia nacional, que não prestigiam os locais, restritos a pequenas lojas onde conseguem expor seus trabalhos. Para combater isso, um grupo do qual faço parte, em parceria com a Fox Livros e editora Empíreo, realizará em outubro, pela segunda vez, a Feira Literária do Pará, FLiPa. Além de expor os livros, lançará o primeiro romance de Flávio Oliveira e relançará Belém, Belém, de Alfredo Oliveira, importante título, esgotado. Mesmo contra todas as adversidades, há cena literária local.

Você tem alguma rotina para escrever?

Meu dia é sempre muito cheio, mas a ideia de mais um livro vai se formando lentamente até o dia em que inicio. Para meu trabalho mais recente, Pssica, reservei duas horas do dia, sem nenhuma interrupção. E no resto do tempo, mesmo com outras atividades, vinham novas ideias. No dia seguinte, fazia um esqueleto e escrevia mais um capítulo. Até a decisão de começar a escrever, faço mil adiamentos, talvez por preguiça, mas, uma vez iniciado, creio não haver melhor momento para um escritor. Felicidade, alegria, energia, tudo se mistura enquanto crio uma história. A profissão de jornalista me faz estar sempre diante de um teclado, de maneira que sou muito rápido em decisões e em escrita. Pouco retorno para corrigir, embora, às vezes, pintem descobertas e seja necessário voltar e jogar pistas do que acontecerá à frente.

Como vê seu sucesso na França?

O sucesso na França me deixou assustado. Já tinha lançado um livro na Inglaterra, mercê de entendimentos de representantes de minha editora na Feira Mundial do Livro de Frankfurt. Mas, dessa vez, contei com Diniz Galhos, excelente tradutor, mais Estelle e Claire, donas da Asphalte Editions. Os franceses adoram ler. Na Feira de Paris, na área infantil, milhares de crianças liam sem parar. Quem dera isso aqui. Tenho estado várias vezes lá, nos últimos anos. Tenho três livros lançados e agora saíram os dois primeiros, também, no formato livro de bolso. Franceses gostam de literatura policial, que chamam “Polar”. Estive em março em Lyon, no famoso “Quais de Polar”, um dos maiores eventos do país em literatura policial. É gratificante saber que tenho admiradores na França. Talvez seja mais conhecido lá do que em meu próprio país.

Não há interesse em filmar seus livros?

Já estou acostumado a receber comentários do tipo “é um roteiro de cinema pronto para ser filmado”. Até agora, sei de um grupo de roteiristas paraenses pensando alguma coisa sobre Os Éguas, enquanto um produtor carioca tenta editais para o Selva Concreta. De efetivo, ainda, nada. Penso que será bem interessante ver algum dos livros no cinema, mas gosto mesmo é de literatura.

O que está escrevendo agora?

Acabei de escrever uma peça teatral em que, a partir da leitura do livro Pilatos e Jesus, de Giorgio Agambem, e de outros como Os Dez Mandamentos + 1, de Luiz Pondé, resolvi discutir religião sob uma visão contemporânea. Os ensaios já começaram no Grupo Cuíra, do qual faço parte. Adiante, tenho outro espetáculo para escrever, chamado Auto do Coração e no ano que vem talvez inicie outro romance.


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