A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de afastar o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), respondeu a uma demanda generalizada na sociedade. Pesquisa Datafolha divulgada no mês passado apontou que 77% dos brasileiros defendiam a cassação do peemedebista. Mas a decisão do ministro apresenta dois problemas: de um lado, demorou demais para ser tomada e, de outro, apresenta um fundamento legal bastante questionável.
Como disse o ministro da Justiça, Eugênio Aragão, a decisão “chegou tarde”, já que a solicitação da Procuradoria-Geral da República foi feita em 16 de dezembro do ano passado: “O impeachment não teria começado se o STF tivesse feito isso antes”. Outros especialistas em direito compartilham da mesma opinião. Segundo o advogado Cezar Bitencourt, doutor em direito penal pela Universidade de Sevilha, a medida “demorou demais”. Flávio Pansieri, especialista em direito constitucional, observa que tamanha espera é incompatível com a natureza mesma da medida: “Uma medida de afastamento liminar tem que ter um cunho de perigo de algo a ser realizado. Um perigo que percorre cinco meses não é tão iminente”. O jurista Oscar Vilhena Vieira manifesta a mesma estranheza: por que esta decisão demorou cinco meses?
A demora não é o único problema da medida: seu embasamento também é duvidoso. Sua natureza polêmica ficou claro no voto do ministro: “Decide-se aqui uma situação extraordinária, excepcional […]. Mesmo que não haja previsão específica, com assento constitucional, a respeito do afastamento, pela jurisdição criminal, de parlamentares do exercício de seu mandato, ou a imposição de afastamento do presidente da Câmara dos Deputados quando o seu ocupante venha a ser processado criminalmente, está demonstrado que, no caso, ambas se fazem claramente devidas”.
Fernando Neisser, presidente da Comissão de Estudos em Direito Político do Instituto dos Advogados de São Paulo, manifestou sérias dúvidas sobre a decisão: “Os parlamentares têm um regimento próprio, que não me parece autorizar que o STF tenha esse grau de inserção dentro do Parlamento. Esse afastamento temporário, com base em uma regra do Código de Processo Penal, parece exceder o que o STF pode fazer”.
O problema, afirma Neisser, é que o Supremo “tem o direito de errar por último”. Como é o intérprete e guardião da Constituição, se a corte decide que pode afastar o presidente da Câmara dos Deputados, não existe nenhum tribunal acima dele ao qual se possa recorrer: “O STF tem esse poder de fato”.
Para o advogado Alberto Toron, doutor em direito penal, a Constituição não prevê a suspensão do chefe de um outro Poder ou do detentor de um mandato eletivo: não há previsão constitucional para uma decisão deste tipo, mesmo que ela seja tomada pelo plenário do tribunal.
As mesmas dúvidas sobre a legitimidade da decisão foram formuladas pela professora Eloísa Machado, da Fundação Getúlio Vargas. Ela declarou ao jornal Folha de S.Paulo que “a Constituição não prevê a suspensão do exercício do mandato de deputado. A Constituição dispõe que o parlamentar só pode ser preso em flagrante de um crime inafiançável. Mesmo preso, a Câmara deveria analisar se mantém a prisão”. O próprio senador Delcídio do Amaral não perdeu seu mandato quando foi preso.
Nesse sentido, a ação proposta pela Rede Sustentabilidade, que defendia o afastamento de Cunha com base no artigo 86 da Constituição, parece ter um fundamento mais sólido. Como sustenta o parágrafo 1º do artigo 86, “o presidente da República será suspenso de suas atribuições nas infrações penais comuns, caso o STF tenha recebido alguma denúncia ou queixa crime contra ele”.
Como Cunha já responde por corrupção passiva e lavagem de dinheiro em processo penal no STF, ele deveria ser afastado do cargo de acordo com o princípio constitucional da isonomia: se o presidente da República não pode permanecer no cargo por responder a processo no Supremo, isso se aplica também a quem faz parte da linha sucessória.
“A Constituição não transige com o exercício da função de presidente da República por quem responda a processo criminal. Sendo essa uma exigência inerente ao regime desse cargo singularíssimo, parece evidente que ela deve também se estender a todos aqueles que, por força da própria Lei Maior, possam ser chamados a ocupá-lo”, sustenta a ação. Mas, como o STF não se pronunciou sobre a arguição, a questão acabou ficando sem resposta.
Muitos especialistas, porém, apoiam enfaticamente a decisão do STF. O jurista Dalmo Dallari diz que a medida é perfeitamente legal: “É uma prerrogativa do tribunal. É competência do tribunal a guarda da Constituição”.
O advogado Arthur Rollo, doutor pela PUC-SP, também defendeu a intervenção do STF. Ele argumenta que “o afastamento do chefe de um Poder é uma medida extrema”, mas se sustenta com base no Código de Processo Penal, que prevê a suspensão do exercício de função pública quando quando houver uso do cargo para a prática de infrações penais: “Eduardo Cunha foi afastado porque está interferindo, na condição de presidente da Câmara e também na de deputado federal, nas investigações do Supremo e também no processo de cassação de seu mandato, que tramita no Conselho de Ética da Câmara. Já é o processo mais longo que se tem notícia”.
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