Em um dia, retrocedemos 31 anos. De repente, estávamos novamente na posse de José Sarney, mas sem Ulisses Guimarães para freá-lo. Livre para ser o que é, Michel Temer cercou-se rapidamente do que há de pior na política brasileira. A turma do boi, a turma da Bíblia, a turma da bala. Na cena da posse, que parecia um quadro falsificado de Rembrandt, a modernidade ficou de fora. Em vez de jovens, negros, mulheres e grupos homossexuais, ouviu-se o apelo positivista por Ordem e Progresso.
O discurso de Temer deve ter enchido de ânimo os corações que depositaram na derrubada de Dilma a esperança de ter no Brasil um “bom governo”. O interino prometeu reconciliar, privatizar, seguir com a Lava Jato e melhorar os programas sociais. Falou em reformar a Previdência e garantir direitos. Soou razoável, equânime, equilibrado. Teve palavras deferentes até para a presidente Dilma, a quem traiu da forma mais abjeta. Um ancião engasgado cavalgando mesóclises.
Apenas que as suas palavras não têm relação com a realidade do governo. Se a Lava Jato seguir implacável, pode levar ao Supremo vários ministros de Temer – alguns muito próximos a ele e muito citados em Curitiba, como Romero Jucá e Geddel Vieira. A presença desses velhos praticantes no primeiro escalão do temerato sugere que a retidão não será prioridade de governo.
A promessa de cuidar de Saúde, Educação e Segurança como “competências naturais” do Estado (o resto talvez possa ser privatizado) nasce estragada pela figura dos novos ministros.
Alexandre de Moraes, da Justiça, dirigiu em São Paulo, com apoio de Geraldo Alckmin, uma polícia que mata jovens negros da periferia de forma sistemática e que reprime adolescentes com violência, mas não consegue deter o avanço do crime organizado, talvez o problema mais grave do Brasil. Em 2015, o jornal O Estado de S.Paulo revelou que Moraes atuou como advogado de uma cooperativa de transporte investigada como braço econômico do PCC. Sabe-se que em 2014 ele advogou por Eduardo Cunha num processo de falsificação de documentos. Um homem complicado.
O novo ministro da Educação e Cultura, Mendonça Filho, não tem formação ou experiência em nenhuma das duas áreas. Seu vínculo mais conhecido com a educação foi criado pela tentativa de seu partido, o DEM, de derrubar a política de cotas no Supremo Tribunal Federal. O novo ministro diz agora que é a favor das “cotas sociais”. Ainda parece inconformado com as cotas raciais, que nos últimos três anos levaram 150 mil jovens negros à universidade, pela primeira vez na história do Brasil.
Ricardo Barros, que ficou com a Saúde, é um engenheiro que se notabilizou na política por duas façanhas. Quando secretário de governo no Paraná, foi pego num telefonema esquisito em que parecia orientar um subordinado a ajeitar uma licitação. Afastou-se da função. Como deputado federal, propôs um corte de R$ 10 bilhões no Bolsa Família, para ajustar o orçamento da União. Enorme sensibilidade social. Sua primeira entrevista no cargo foi para dizer que vai rever o Mais Médicos, programa criado por Dilma que pôs 18 mil profissionais de saúde nos vilarejos do Brasil profundo e na periferia das grandes cidades. Para que, né?
Parece óbvio que Temer vai governar com e para os deputados reacionários que o “elegeram” na votação do impeachment. Isso significa o governo mais conservador, mais à direita e mais antipopular instalado no Brasil desde 1964. Mas não só.
Significa, também, que o Estado brasileiro estará sujeito a uma guerra de interesses paroquiais constante e implacável, incompatível com a condução do governo. Quem achava que Dilma havia leiloado sua administração ainda não viu a quimera que Temer tem a oferecer como governabilidade.
Sem votos, sem legitimidade, inteiramente refém da mídia, do mercado e do baixo clero parlamentar, o interino governará como suplicante, entregando e recebendo favores todos os dias do seu indesejado interregno.
Se desse arranjo insustentável resultar uma administração estável, o Brasil terá se convertido em caso único – um país que no século 21 concordou pacificamente em ser arrastado de volta ao século 19, quando as massas não tinham voto, voz ou direitos, e viviam vidas miseráveis em prol dos 20% no topo da pirâmide. Felizes, queridos?
*Ivan Martins é jornalista, escritor e colunista do site da revista Época
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