Governo Temer é expressão do ‘baixo clero’ da Câmara

Trabalhadoras rurais acompanham votação de projeto na Cãmara -  Antônio Cruz/ABr
Trabalhadoras rurais acompanham votação de projeto na Câmara dos Deputados – Antônio Cruz/ABr

Composto por deputados de 12 partidos, o “centrão” constitui hoje a principal base de sustentação do governo Michel Temer no Congresso Nacional. O bloco começou a surgir durante a campanha do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para presidir a Câmara, em 2015. O peemedebista foi eleito com 267 votos, contra 136 de Arlindo Chinaglia (PT-SP), candidato da presidenta Dilma Rousseff, e 100 votos de Júlio Delgado (PSB-MG), lançado pela oposição liderada pelo PSDB.

A divisão da Câmara em três blocos persiste até hoje: PT, PDT e PC do B (89 deputados) agora estão na oposição, enquanto PSDB, DEM e PPS passaram a integrar o governo. Juntas, porém, essas legendas reúnem apenas 87 deputados, que, somados à bancada do PMDB (66), são incapazes de dar ao governo Temer a maioria na Câmara. Outras pequenas legendas, como o PSB e PV, integram o ministério, mas suas bancadas se dizem independentes. Por isso Temer depende tanto dos 225 deputados do centrão.

A força do bloco ficou clara quando o presidente interino tentou nomear o deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ) como líder do governo na Câmara, com o apoio do PSDB e do PPS. O centrão reagiu, e Temer recuou, indicando o candidato preferido do Centrão: André Moura (PSC-SE), um dos principais aliados de Eduardo Cunha na Casa.

De onde vem a força do centrão? Para o ex-presidente do PSB Roberto Amaral, o bloco constitui a expressão do chamado “baixo clero”, formado pelos deputados de menor expressão, que em geral viviam à sombra dos líderes políticos regionais. De tempos em tempos o “baixo clero” se rebela contra as cúpulas partidárias. Isso já aconteceu no final da ditadura, quando o então deputado Paulo Maluf (SP) reuniu os descontentes com os oligarcas do PDS (Antonio Carlos Magalhães, Marco Maciel, José Sarney) e conseguiu ser indicado candidato do regime à Presidência. Mas não conseguiu evitar que todos esses líderes acabassem apoiando o candidato do PMDB, Tancredo Neves.

Esse centrão voltou a se manifestar com força em 2005, pouco antes da eclosão do escândalo do mensalão. Em fevereiro da aquele ano, o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) foi eleito presidente da Câmara com 300 votos contra 195 do candidato do governo, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP). O governo Lula tentou compor com Severino, prometendo cargos na Petrobras. Severino exigiu “aquela diretoria que fura poço e acha petróleo. É essa que eu quero“. Mas Severino renunciou pouco tempo depois, acusado de cobrar uma mensalidade de R$ 10 mil do dono do restaurante da Câmara para não fechar o estabelecimento. O governo conseguiu então retomar o controle da Câmara: em setembro, elegeu o deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP) com 258 votos contra 243 do candidato da oposição, José Thomaz Nonô (PFL-AL).

Eduardo Cunha teve sucesso onde Maluf e Severino fracassaram: o centrão finalmente chegou ao poder. O cientista político Roberto Amaral, que já presidiu o PSB (Partido Socialista Brasileiro), diz que o governo Temer não tem em Cunha apenas um aliado na Câmara: a rigor, Temer é o representante do centrão no Palácio do Planalto. “O centrão é o baixo clero que chegou ao poder. É a vitória da mediocridade. É o que há de pior em todos os partidos. O sistema partidário, aliás, faliu. Essas bancadas da Bala, do Boi, da Bíblia, dos Bancos, mandam mais que todos os partidos. Os partidos se converteram apenas em suportes institucionais para eleger deputados. Ninguém tinha visto, até a votação do dia 17 de abril [da admissibilidade do impeachment na Câmara], quem de fato compunha a Câmara: a votação mostrou quem está nos governando”.

Segundo Amaral, o centrão é “um sintoma do fracasso da democracia representativa no Brasil. O eleitor não é representado pelo representante: o deputado eleito se tornou autônomo. O projeto dele é pagar as dívidas de campanha nos seus dois primeiros anos de mandato, e depois fazer o fundo para pagar a sua reeleição”. Daí a necessidade de arrancar cargos na administração e de aprovar emendas ao Orçamento destinando verbas aos seus redutos eleitorais. Tudo isso, segundo Amaral, “deriva da violência do poder econômico. Os empresários investem, e não doam recursos para a campanha. Investem para depois receber. Isso levou à deterioração do Legislativo”.

Existem também outras causas. Sistemas eleitorais baseados na representação proporcional favorecem a multiplicação de partidos. No caso brasileiro, essa propensão é agravada pela permissão de coligações nas eleições ao Legislativo, pelo repasse obrigatório de recursos do Fundo Partidário e pela presença das pequenas legendas no horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão. Todos esses fatores favorecem a criação e a sobrevivência das pequenas legendas. E, quanto maior a fragmentação da Câmara, maior o estímulo à formação de blocos suprapartidários.  

O sistema partidário brasileiro hoje é um dos mais fragmentados do mundo: 27 siglas estão representadas na Câmara dos Deputados. Desde a redemocratização do País, em 1985, a Câmara nunca havia chegado a esse estado de divisão. No início de 1987, as cinco maiores legendas ainda controlavam 92,8% da Câmara. Durante a Constituinte e a crise do governo José Sarney, essa maioria se dissolveu. Em 1991, na posse da nova Câmara, as cinco maiores siglas reuniam apenas 63,2% dos deputados.

A fragmentação continuou aumentando até a aprovação do impeachment de Fernando Collor (62,2%), em 1992, mas logo em seguida começou a refluir. Em 1995, os cinco principais partidos passaram a concentrar 70,2% dos deputados, porcentagem que cresceu para 79,6%, em 1999. O domínio das grandes legendas se enfraqueceu um pouco durante a Era Lula (66,9%, em 2003, e 66,3%, em 2007).

Em 2011, no início do governo Dilma Rousseff, os cinco maiores partidos tinham apenas 59,5% dos deputados. Essa porcentagem caiu para 51,1% em 2015. Tamanha fragmentação não só dificultou a formação de um governo de coalizão, mas favoreceu naturalmente a emergência de bancadas suprapartidárias. Das 27 legendas presentes na Câmara, 13 possuem no máximo oito deputados. Todas enfrentam dificuldades para encaminhar os pedidos de seus parlamentares. Cinco delas decidiram aderir ao centrão.

A cientista política Maria do Socorro Braga, da UFSCar, acredita que “o centrão está relacionado às bancadas suprapartidárias, do Boi, da Bala e da Bíblia. Existe uma união entre os três setores. Eles são bem diferentes do centrão que atuou na Assembleia Constituinte [de 1987-1988]. O bloco atual tem menor influência dos partidos tradicionais, é formado por partidos médios, como PSC, PRB. São partidos que são contrários à agenda de ampliação de direitos políticos e civis de minorias, são contra o aborto, contra medidas em defesa dos direitos humanos. Esse centrão abraça uma agenda contrária a esses direitos. É uma agenda mais conservadora”.

Toda essa frente suprapartidária foi aglutinada por Eduardo Cunha. Na opinião do cientista político Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, “Cunha pretendia ser candidato a presidente da República. O centrão está articulado em torno desse projeto de poder”. As acusações de corrupção contra o deputado, contudo, eliminaram essa possibilidade: “Talvez Cunha quisesse algo maior, mas hoje ele não tem condições [de disputar a Presidência da República]”, observa Maria do Socorro Braga: “Quando eles lançaram o Pastor Everaldo, em 2014, eles já pensavam em algo maior. É um projeto de poder”.

Para ela, o bloco é o principal responsável pelo impeachment de Dilma: “O presidencialismo no Brasil depende dessa coalizão de partidos. Quando o Cunha sai da base, ele leva o baixo clero junto. O Legislativo passou a barrar todos os projetos do Executivo”.

A professora da UFSCar adverte que a base de Temer terá de enfrentar esse mesmo problema: “Não há um programa que uma essas legendas. Não há uma questão programática”. Por essa razão, “tudo que o mexer com grandes parcelas da população, sobretudo num ano eleitoral, vai fragmentar essa coalizão”. Daí a dificuldade em aprovar medidas como a reforma da Previdência ou a redução de recursos para os setores de saúde e educação: “Hoje é muito fácil ficar na oposição, porque os parlamentares estão sendo cobrados. A impopularidade do governo está crescendo”.

A crise política deve continuar: “À medida que o governo editar medidas amargas, as divisões na base aliada vão aparecer”, conclui Braga.


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