Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), diz que está em curso no País uma tentativa de retrocesso sem precedentes na história recente. Uma agenda de direita ganha força, enquanto o PT perde a hegemonia da esquerda sem que haja ainda uma alternativa a ele. Para Boulos, a esquerda tem de reconquistar a conexão com sua base social na periferia – espaço de diálogo e construção que, de outra maneira, passou a ser ocupado pelas igrejas evangélicas. Boulos aposta na reação popular às medidas de austeridade governo Michel Temer para unificar as mobilizações da esquerda: “Será um momento decisivo para fortalecer esse campo político”.
Revista Brasileiros – O PT sofreu um enorme revés nessas eleições municipais. A Câmara aprovou a PL do pré-sal, a votação da PEC 241 em andamento. O que está em curso no País?
Guilherme Boulos – Nós temos hoje a tentativa de impor um retrocesso brutal e talvez sem precedentes na história recente. O golpe não consistiu apenas em colocar um presidente que não foi eleito no poder, mas em aplicar um programa que não foi eleito pelo povo e não seria. A PEC 241 talvez seja o maior golpe à Constituição de 1988, àquilo que ela tem de positivo, que é a rede de proteção social. Em 30 anos, é a medida mais dolorosa ao povo brasileiro porque significa congelar os investimentos públicos por 20 anos, é constitucionalizar a política de austeridade. Junto com isso, reforma trabalhista, reforma da Previdência, entrega do pré-sal, ou seja, uma pauta extramente regressiva, antipopular e antinacional em curso no País. Isso expressa um avanço da direita e da elite brasileira, que, com o enfraquecimento dos governos petistas e da esquerda, viram uma janela de oportunidades para impor um programa que faça o andar de baixo pagar a conta da crise. É um programa que há muito tempo eles queriam, mas não tinham condição nem correlação de forças para implementar até então.
O enfraquecimento da esquerda se deve a quê? Você consegue enxergar uma reação popular ao que está acontecendo no País?
Não há um motivo só. O PT foi hegemônico na esquerda brasileira nos últimos 35 anos. Cumpriu um papel de guarda-chuva, unificou os movimentos sociais e uma série de setores do pensamento progressista do País. Mas os governos do PT tomaram opções extremamente equivocadas, por mais que deva-se reconhecer que houve avanços, com políticas sociais, aumento do salário mínimo e da renda dos trabalhadores, que incomodaram a Casa Grande. Ao mesmo tempo, houve uma política de pacto, na qual se aliou com setores da direita mais conservadora e deixou na gaveta uma série de medidas que são o programa histórico da esquerda no País: reformas tributária, agrária, urbana, política, dívida pública, democratização dos meios de comunicação. Esses temas não foram pautados pelos governos petistas, não houve uma aposta na mobilização popular, ao contrário, se optou por um modelo de governabilidade baseado estritamente no Parlamento e com isso ficou refém das forças mais conservadoras, que têm maioria. Isso colocou travas extremamente fortes e limites para os governos Lula e Dilma.
Além disso, a opção da Dilma, assim que se elege em 2014, em aplicar o programa do adversário e fazer um ajuste fiscal duro que a leva a perder o diálogo e apoio da base social que a elegeu. Isso dá condições para o golpe, porque cria uma base social que apoia o golpe ou no mínimo não defende o seu governo. E por último o massacre e linchamento a que o PT tem sido submetido nos últimos dois anos, tanto midiático como político-parlamentar, que culmina no processo de impeachment e judicial, com a Lava Jato atuando de forma exclusivista.
Esse revés do PT nas eleições é da esquerda como um todo? A esquerda perdeu a classe trabalhadora?
O PT perdeu a capacidade de unificar a esquerda brasileira, não tem mais condições de ser a força hegemônica há algum tempo, essas eleições revelam também isso. É evidente que o enfraquecimento do PT foi seguido por um avanço da direita. Quem ocupou o lugar de voto do PT de maneira geral foi o voto conservador, com duas ressalvas: o crescimento digno de nota do PSOL, que vai ao segundo turno em duas capitais, Rio de Janeiro e Belém e cresce como força alternativa de esquerda, ainda que não se coloque com condições de ocupar o papel ocupado pelo PT. O outro fator é o aumento consistente embora gradual de abstenções, nulos e brancos, ou seja, de uma insatisfação geral com o sistema político, que se expressa numa negação do voto e da política.
O Fernando Haddad perdeu para o João Dória inclusive na periferia, onde o PT sempre dominou. Como a esquerda pode reconquistar o seu eleitorado?
Podemos dizer que o PT perdeu o voto da classe trabalhadora em uma série de cidades, inclusive São Paulo. Isso tem a ver com perda de credibilidade, limites que os governos petistas apresentaram, particularmente de ações na periferia, e tem a ver obviamente com o linchamento do PT, que pega a sociedade como um todo, inclusive a classe trabalhadora. Eu acho que o desafio da esquerda nesse momento é de retomar sua conexão com a base social histórica dos movimentos sociais e desse campo político. O trabalho de base, jogado em segundo plano, deixou de ser feito com o preço de uma burocratização de setores importantes do movimento social, sindical e da esquerda. Ele tem que voltar à ordem do dia. A esquerda tem que retomar a sua capacidade de dialogar com o povo, convencer o povo, estar junto ao povo. Nas últimas duas décadas, o espaço que a esquerda tinha na periferia, de diálogo e construção, foi sendo preenchido pelas igrejas evangélicas. Fazem isso obviamente de uma maneira muito diferente. O preço que se paga agora com a perda do voto de periferia é fruto de uma opção política anterior, de desconexão com a base social, de não apostar na mobilização social e na organização dos movimentos sociais.
Você enxerga o surgimento de uma nova liderança na esquerda? Como fortalecer a esquerda nesse momento?
Tem iniciativas sendo construídas. No movimento social você tem a construção das frentes. Eu faço parte da Frente Povo Sem Medo, tem a Frente Brasil Popular, tem espaços que estão sendo construídos para unificar o campo do movimento social e oferecer respostas e resistência particularmente aos ataques que têm vindo. Sim, se encerra um ciclo na esquerda brasileira, na qual o PT foi o elemento hegemônico, ainda não temos uma alternativa construída, mas temos embriões que caminham nesse sentido, tanto no movimento social e popular, quanto em novos movimentos que surgem com dinamismo, das ocupações pelo direito à cidade, escolas, de cultura, urbanos. No próprio campo político-partidário nesse momento tem uma discussão ativa sobre os rumos da esquerda. A minha avaliação é que desse caldo podem e devem surgir novas alternativas. Mas essas alternativas precisam vir conectadas ao movimento de base. Evidentemente que o enfrentamento às medidas do governo Temer vai ter um papel decisivo nisso porque, na medida em que cai a ficha para uma parte do povo, que começa a perceber o que de fato está em jogo com o ataque avassalador aos direitos, isso pode massificar a resistência e a reação e a força de mobilização.
A reação ao governo Temer tende a crescer então?
Não vejo outro cenário possível. Congelar 20 anos gastos com saúde e educação, uma reforma da Previdência devastadora, uma reforma trabalhista que destrói a CLT, se isso não gerar reação social no Brasil, não sei mais o que pode gerar.
Quais os impactos da Operação Lava Jato? Muitos juristas apontam abusos na operação, você enxerga uma afronta ao Estado de Direito?
Acho que a Lava Jato segue rumos bastante preocupantes, que podem caracterizar no País uma lógica de Estado de exceção. A investigação de corrupção deve ser feita, é papel do Judiciário, do MPF, que os corruptos sejam investigados e punidos. Agora, não se pode usar a legitimidade do enfrentamento à corrupção para atacar garantias constitucionais, como ela frequentemente tem feito, para fazer vazamentos seletivos à imprensa, eleger alvos político-partidários e preservar outros. A Lava Jato tem atuado de maneira escandalosa nesse sentido. O indiciamento do Lula baseado em meras convicções, confrontado com Cunha solto, Aécio citado inúmeras vezes e não sendo indiciado, com a cúpula do PMDB com gravações mostrando a relação do impeachment com a tentativa de obstruir a Lava Jato livre leve solta. Isso elimina totalmente a credibilidade de quem conduz a Lava Jato. A seletividade judicial e policial do Estado não foi inventada pela Lava Jato, que sempre aconteceu nos guetos, becos e vielas da periferia contra o povo negro, pobre. Mas isso era feito até então sem os holofotes. A Lava Jato legitima essa prática de seletividade e de ataque ao próprio direito de defesa. A decisão do STF de permitir prisões após condenação em segunda instância fortalece uma lógica prisional, ignora o fracasso do sistema prisional e vai de encontro com uma tendência de redução de direitos de defesa.
Leia o especial: Lava Jato, a Derrota do PT e o Futuro da Esquerda
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