Lula antes do poder e do massacre

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Então presidente do Sindicato dos Mertalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula é condenado a prisão pela greve, em 1981 - Foto: Silvio Ferreira
Então presidente do Sindicato dos Mertalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula é condenado a prisão pela greve, em 1980 – Foto: Silvio Ferreira

Lula é o anjo caído da política brasileira. De presidente mais popular desde Getúlio Vargas, condutor carismático de oito anos de prosperidade, aplaudido dentro e fora do Brasil, virou um homem que pode ser preso a qualquer momento, caçado por procuradores e manchetes com uma ferocidade que não se via desde Carlos Lacerda e da República do Galeão, nos anos 1950.

O único líder popular de que o Brasil dispõe, capaz de levar multidões à rua e por isso apto a fazer-se ouvir na algaravia de Brasília, vai sendo sangrado e quebrado todos os dias, impiedosamente, porque teria permitido que empreiteiras fizessem de graça obras em dois imóveis que pertenceriam (o famoso sítio de Atibaia) ou viriam pertencer a ele (o notório apartamento do Guarujá). Até agora, depois de uma devassa, é disso, objetivamente, que se acusa Lula.

Num país em que políticos fazem fortuna no interior do Estado desde as capitanias hereditárias, em que incontáveis gerações de algumas famílias se sucedem no Congresso e no Executivo, mamando e enriquecendo respeitavelmente no trato com o erário, Lula vai sendo publicamente esquartejado por algo que pode ser considerado uma ninharia.

Seus acusadores na imprensa e no Judiciário convivem afavelmente com políticos que roubaram e desmandaram muito mais, que ainda roubam e desmandam muito mais, em benefício de si mesmo, de seus filhos e suas filhas. Mas Lula não tem esse direito. Ele não nasceu patrício e nem teve tempo de tornar-se um deles. Assim como mobiliza votos e lealdades, ele atrai ódio de classe, invejas pessoais e ressentimentos políticos. Por seus pecados e por suas virtudes, tem de ser destruído. Não pode estar em pé em 2018, quando o calendário eleitoral prevê eleições presidenciais.

Os tucanos, que têm amigos poderosos na imprensa e no mercado, mas não têm votos, precisam de Lula e do PT fora do páreo. Como uma UDN moderninha, o PSDB não suportava mais ter a inteligência e o dinheiro do País a seu lado e, ainda assim, perder as eleições presidenciais ano após ano, quatro vezes seguida, para gente que mal sabe falar. Havia que fazer alguma coisa para removê-los do poder e se fabricou oportuna e rapidamente um impeachment. Agora, é hora de terminar o serviço, impedindo Lula de concorrer. De preferência, preso.

No momento em que o futuro de Lula está sendo decidido, chegam às livrarias e ao teatro duas obras que tratam sobre ele num episódio anterior da história, quando ele se tornou um personagem decisivo da história do Brasil.

A Ditadura Acabada, de Elio Gaspari – Editora Intrínseca, 447 páginas –, é o volume final de uma série de livros imponentes sobre a ditadura. Desta vez, Gaspari visita as greves do ABC nos anos de 1978, 1979 e 1980, para explicar o papel do movimento operário na queda do regime militar instalado em 1964. As greves são apenas um aspecto da agonia do regime que o livro retrata, mas tiveram enorme importância no que viria depois. Naquele movimento nasceu o PT – primeiro partido de esquerda brasileiro criado por operários — e a liderança nacional de Lula, que se projetou discursando com voz rouca, inteligência e erros de português no estádio de Vila Euclides.

O Pão e a Pedra, peça da Companhia do Latão que está em cartaz no Teatro da USP, em São Paulo, trata especificamente da greve de 1979. Lula não aparece no palco e seu nome é mencionado apenas uma vez, mas sua presença paira explicitamente sobre a trama. Ele é “o cara” a quem os operários seguem, admiram e de quem, posteriormente, desconfiam. A Companhia do Latão faz teatro político ao modo de Bertolt Brecht e isso pressupõe simpatia irrestrita pela classe operária e alguma desconfiança de líderes que sejam menos do que revolucionários – assim como de revolucionários que sejam menos do que líderes operários.

O Lula que emerge dessas duas narrativas – uma artística, outra histórica – não envergonha o homem que luta por sua liberdade no presente. Uma ajuda a entender e complementa a outra.

Na peça, a greve de 1979 é apresentada do ponto de vista de homens e mulheres na linha de montagem. Os operários param as máquinas organizados pelo sindicato, o movimento é declarado ilegal e o sindicato sofre intervenção. O País estava sob uma ditadura, afinal. Lula desaparece por dois dias e, na volta, pede que a categoria volte ao trabalho com um reajuste pífio – oferecendo uma trégua de 45 dias para a negociação. No palco, a força e a união dos operários é tão óbvia que a proposta de Lula toma ares de perfídia. O livro corrige essa perspectiva.

Gaspari mostra que Lula, no décimo dia da greve, sentindo a intransigência das empresas e a pressão do governo, chegara a um acordo que julgava possível com os patrões. Mas, na hora da assembleia, percebendo o espírito de luta dos peões, voltou atrás e pôs em votação a continuação da greve – embora advertindo para os riscos. Era o décimo dia do movimento. No dia seguinte, o sindicato sofreu intervenção, e Lula “se escondeu na casa de parentes”. O governador de São Paulo pedia sua prisão ao governo federal e o comandante militar de São Paulo dava entrevistas sobre a ameaça comunista internacional.

O elenco da Companhia do Latão transforma esse momento no ápice dramático da peça. A polícia está na rua, batendo e reprimindo, mas os operários, valentemente, tomam o prédio do sindicato na marra. A diretoria do sindicato pede que o devolvam. O líder está desaparecido. A igreja acolhe os rebeldes. É um momento de enorme tensão e total desinformação – sobre a qual Gaspari joga alguma luz.

Com Lula escondido, o governo pede aos empresários que selem um acordo com ele, em troca do fim da intervenção sindical. Marca-se um encontro secreto entre ele e o dono das indústrias Bardella. Lula pede um uísque, conversam por três horas e risca-se um acordo em quatro folhas de bloco. O resultado é ruim para os trabalhadores, mas a alternativa não parecia melhor. No fim da reunião, Bardella pede um autógrafo de Lula para seu filho, Claudinho. A situação beira o surreal. No dia seguinte, em Vila Euclides, Lula diz aos trabalhadores que devem voltar ao trabalho. Eles voltam, termina o capítulo do livro e a peça prossegue, lindamente – discutindo a frustração e alienação das vidas construídas ao redor das linhas de montagem.

Cada um tirará suas próprias conclusões diante dessas duas visões. Uma trata das emoções, dos fatos, das expectativas e dos sonhos. Nos faz rir e chorar. O livro lida com a realidade, ou pelo menos com um aspecto dela. As versões que apresentam sobre Lula não são contraditórias entre si. 

Do ponto de vista dos operários radicalizados, um líder sindical que feche um acordo ruim merece ser questionado. Do ponto de vista da história, um líder operário que organize, deflagre e tente prosseguir uma greve nas circunstâncias políticas de 1979 pode ser visto como herói. No ano seguinte, os metalúrgicos do ABC foram à greve de novo. O Exército ocupou a rodovia dos Imigrantes, mandou os helicópteros fazerem rasantes sobre Vila Euclides e o sindicato foi posto sobre intervenção duradoura. Lula ficou um mês na cadeia, saiu e fundou o PT. Não houve greve em 1981, nota Gaspari.

Perto do que acontece hoje, esses foram tempos gloriosos para Lula. Antes das conquistas e dos erros de quem chegou ao poder. O homem como tal parece ter permanecido o mesmo nestes quase 40 anos. Carismático, capaz de conversar com todos, indiferente aos apelos revolucionários da esquerda, de convívio fácil com os empresários, preocupado sobretudo em melhorar a situação econômica dos seus. O líder metalúrgico de 1979 e o presidente até 2010 continuam a mesma pessoa. O País mudou. No novo Brasil, certas coisas de que Lula é acusado são intoleráveis – para ele, embora continuem toleráveis para pessoas de boas famílias.

*Ivan Martins é jornalista, escritor e colunista do site da revista Época


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