Prende primeiro, pergunta depois

Foto: Heinrich Aikawa/Instituto Lula
Foto: Heinrich Aikawa/Instituto Lula

A três dias da manifestação contra o governo Dilma Rousseff, marcada para o dia 13, o movimento pró-impeachment ganha fôlego. Os promotores Cássio Conserino, José Carlos Blat e Fernando Henrique Araújo pediram a prisão preventiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na denúncia relativa ao triplex 164-A, do Condomínio Solaris, na Praia das Astúrias, no Guarujá. 

No documento, os promotores acusam Lula de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. Marisa Letícia, sua mulher, um dos filhos do casal, Fábio Luís Lula da Silva, e outras treze pessoas também foram acusadas no mesmo caso.

A denúncia será analisada em primeira instância pela juíza Maria Priscilla Ernandes Veiga Oliveira, da 4ª Vara Criminal de São Paulo, que pode acatá-la ou não. Não há prazo para a Justiça decidir sobre o caso. Os autos da investigação têm cerca de 7500 páginas.

Em sua próxima edição, a Revista Brasileiros traz uma reportagem sobre prisões preventivas, assinada pela jornalista Luiza Villaméa.  Leia abaixo:

O protagonismo do juiz Sergio Moro
, que lidera a Operação Lava Jato, é tamanho que virou neologismo. Nos corredores de tribunais e nas bancas de advocacia, o termo “morolização” vem sendo usado para definir o atual momento da Justiça no Brasil. O detalhe instigante é que o termo pode ser usado para expressar situações antagônicas. Para muitos, Moro representa a reserva moral do País. Morolizar seria, portanto, ampliar sua área de influência, aplicar seu exemplo em diferentes âmbitos da sociedade. Para outros, Moro não é um modelo a ser seguido, porque ele abusaria de determinados recursos legais em sua cruzada contra a corrupção. Morolizar, nesse caso, seria forçar a barra para alcançar um determinado alvo. Ninguém, no entanto, critica os métodos do juiz sem antes fazer uma ressalta quanto ao mérito de combater a corrupção.

Os que atuam em parceria com o juiz estão, é claro, afinadíssimos com sua conduta e trabalham para consolidá-la. Não por acaso, o procurador da República Deltan Dallagnol citou Moro ao lançar um movimento para coletar assinaturas e apoio a um pacote de projetos de lei de combate à corrupção. “Se você, assim como eu, entende que está na hora de termos uma nova história, participe da campanha 10 Medidas contra a Corrupção. O juiz Sergio Moro, os delegados, já assinaram. Assine você também e colha assinaturas”, gravou Dallagnol em vídeo. Ele também circulou por todo o País, fazendo palestras, inclusive em igrejas evangélicas. Sete meses depois, na última semana de fevereiro, a meta de coletar 1,5 milhão de assinaturas estava superada, com as propostas prestes a serem encaminhadas ao Congresso Nacional, como projeto de lei de iniciativa popular.

A medida 9 do pacote preparado pelos procuradores prevê a hipótese de prisão preventiva para evitar o sumiço de dinheiro obtido por meio de corrupção. Seria uma prisão extraordinária para “permitir a identificação e a localização ou assegurar a devolução do produto e proveito do crime ou seu equivalente, ou para evitar que sejam utilizados para financiar a fuga ou a defesa do investigado ou acusado”. A prisão preventiva é justamente um dos pontos nevrálgicos da Operação Lava Jato, ao lado de um provável cerceamento à defesa, na medida em que muitas vezes os advogados não têm acesso aos dados da investigação. Indignados com a situação, 105 advogados chegaram a divulgar um manifesto acusando a força-tarefa da Operação Lava Jato de violar garantias fundamentais dos acusados de participar do esquema de corrupção da Petrobras.

Entre os acusados, como se sabe, está uma parte do poder político e econômico do País. Para o jurista Luiz Flávio Gomes, o juiz Moro revela uma impressionante coragem ao enfrentar e enquadrar essa elite. “Existe mesmo um grupo de poderosos que sempre roubou o Brasil e sempre ficou impune”, afirma Gomes, que é doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri. “O juiz Moro está quebrando uma lógica de 512 anos de história do Brasil. Digo 512 porque o rompimento com a lógica tradicional se deu em 2013, com o mensalão. Moro está dando continuidade àquele movimento. Os poderosos não contavam com isso. Daí nasceu a expressão ‘Morolização da Justiça’.”

Ao mesmo tempo que enaltece a coragem, o jurista lembra que a atuação de Moro é marcada por excessos: “Em alguns momentos, Moro viola a Constituição. Há situações em que ele extrapola, particularmente na decretação de prisões preventivas. Pela Constituição brasileira, a prisão preventiva deve ser decretada em casos excepcionalíssimos, quando o acusado tenta obstruir provas ou está querendo fugir da Justiça”, lembra Gomes. Outra justificativa legal é impedir que o investigado continue a praticar crimes. “Moro está aplicando a prisão preventiva sem uma fundamentação jurídica convincente. Tanto que o Supremo Tribunal Federal já reformou 11 sentenças dele.”

Em relação à prisão preventiva, Moro atua em sintonia com a maioria dos juízes do País, que usam e abusam do recurso. Dos 607,7 mil presos do sistema carcerário brasileiro, 41% são provisórios. É o que constatou recente levantamento do coletivo de organizações Rede Justiça Criminal. No caso da Lava Jato, há um agravante, de acordo com o jurista: “Os defensores argumentam que a prisão vem sendo usada como uma forma de coação. O dia que um advogado provar isso, anula tudo. Então, existe esse risco. O jogo da Lava Jato não acabou.”

Na verdade, no começo da Lava Jato, ainda em 2014, o procurador da República Manoel Pastana defendeu em quatro pareceres a prisão preventiva como instrumento para induzir a delação premiada. Em um deles, Pastana argumentou que o encarceramento, além de impedir que o investigado destrua provas, “envolve a possibilidade de a segregação influenciá-lo na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos”. A afirmação provocou reação tão contundente entre os defensores dos acusados que nenhum integrante da força-tarefa voltou a repeti-la em público. O criminalista Alberto Zacharias Toron, que à época defendia Ricardo Pessoa, o dono da UTC, continua denunciando o abuso: “Vejo com muito ceticismo as prisões preventivas que foram decretadas. Elas representam uma antecipação de punição, sem julgamento. Há também o propósito, sem disfarce, de provocar delações”.

Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na época do mensalão, o advogado Ophir Cavalcante destaca que o enfrentamento da corrupção exercido pela Lava Jato é louvável, mas também estranha que tantos acusados sejam presos antes do julgamento. “O Judiciário está avançando no combate à corrupção, mas isso deve ser feito com parcimônia, com base na lei, sobretudo com base na Constituição”, diz Cavalcante. “No Mensalão houve condenações e não foi necessário esse número de prisões preventivas.” A principal controvérsia do julgamento citado pelo ex-presidente da OAB foi a adoção da teoria do domínio do fato, que se destina a enquadrar a pessoa que não está presente na cena do crime, mas tem o controle da ação.

A teoria do domínio do fato foi desenvolvida pelo jurista alemão Claus Roxin, em tentativa de influenciar o julgamento de crimes cometidos durante o nazismo. Isso porque a jurisprudência da Alemanha não considerava como autor quem ocupava posto-chave na hierarquia e ordenava a execução de um crime. A teoria de Roxin só passou a ser empregada muito tempo depois, quando foram julgados os atiradores do Muro de Berlim, aquele que separava as duas Alemanhas nos tempos da Guerra Fria. Na época, também foram acusados os integrantes do Conselho Nacional de Segurança da extinta Alemanha Oriental, que deram a ordem de atirar contra as pessoas que tentavam fugir para a Alemanha Ocidental.

Aplicada ao mensalão, a teoria ganhou interpretação ainda mais incisiva: se uma pessoa ocupa um posto-chave, significa que ela tem de saber da existência de um esquema criminoso. Houve, na prática, uma flexibilização das provas. O caso da Lava Jato é diferente. Não há um embasamento teórico específico. Aparentemente, está valendo a máxima “prende primeiro, pergunta depois”. Isso ficou evidente na prisão do marqueteiro João Santana e sua mulher, a publicitária Mônica Moura. Sem entrar no mérito da investigação, cabe lembrar que uma semana antes de embarcar na República Dominicana para ser preso na chegada ao Brasil, Santana se colocou à disposição do juiz para depor. Poucos dias antes, seus advogados tiveram negado o acesso aos autos da investigação. E souberam disso por meio de um despacho no qual o juiz justifica o sigilo com ironia: “Como diz o ditado, dinheiro tem coração de coelho e patas de lebre.” Poucos dias depois, houve troca de comando no Ministério da Justiça. Saiu José Eduardo Cardozo, que era muito criticado pelo PT, e entrou Wellington César, aliado do ministro Jaques Wagner (Casa Civil).

Na opinião do advogado Pedro Serrano, doutor em Direito do Estado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP, ofensas graves aos direitos fundamentais dos acusados vêm sendo praticadas no Brasil e, fora dos círculos jurídicos, poucos se dão conta disso. Um dos pontos, segundo Serrano, é a confusão que se estabelece entre defender o direito de um investigado e defender a conduta dele. “Esse é o maior problema. Quando defende o direito de defesa de uma pessoa, o advogado está defendendo também a humanidade”, afirma Serrano, que atua como defensor da empresa Odebrecht, não de seus executivos. “A Lava Jato prosseguiu com a tradição nefasta do Brasil de abusar da prisão preventiva. Só inovou porque prende cautelarmente para provocar confissão. Aprisiona a pessoa ilegalmente e, para obter a liberdade, ela faz qualquer coisa. Depois de uma semana em uma cadeia brasileira, qualquer ser humano topa falar qualquer coisa.”

Além de cercear a defesa, essa situação pode interferir na qualidade da investigação, na medida em que, pressionado, o investigado tende a falar o que o investigador deseja ouvir. Serrano acredita que a meta de várias investigações em curso no País é alcançar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o PT: “Sou a favor de que Lula seja investigado. Se há suspeita, tem que ser investigado. Mas sou contra que não se investiguem os outros campos políticos, como tem sido feito no Brasil. Que se investiguem também todas as denúncias que vêm sendo feitas contra Aécio Neves, contra Fernando Henrique Cardoso”. Autor do livro A Justiça na Sociedade do Espetáculo, o advogado destaca ainda que, a seu ver, há uma relação indevida entre a grande mídia e o sistema de investigação penal no Brasil: “A mídia estimula o juiz a prender. Ele prende de forma indevida e está feita a festa. Humilha-se a pessoa. Coloca-se no papel de bandido alguém que está sendo preso indevidamente”.

Por trás das cenas midiáticas estaria um interesse escuso: propiciar o linchamento social do segmento político contra o qual a mídia litiga. Nos meios jurídicos, estima-se que o problema deve se agravar devido à recente decisão do Supremo Tribunal Federal de permitir a prisão do réu depois da condenação em segunda instância, antes mesmo de ele recorrer a um tribunal superior. Criminalistas e juristas argumentam que a decisão contraria o princípio constitucional da presunção de inocência, que garante a liberdade do acusado até o esgotamento de todos os recursos.

A decisão do Supremo, expressa durante julgamento de habeas corpus de um homem acusado de roubo, foi comemorada pelo juiz Moro. Em entrevista aos repórteres Ricardo Brandt e Fausto Macedo, de O Estado de S.Paulo, Moro afirmou que o maior impacto da decisão será sobre agentes de organizações criminosas e responsáveis por crimes de colarinho-branco. Como possuem elevado poder aquisitivo, eles contratam bons advogados e têm maior acesso aos tribunais superiores. Perguntado se o novo entendimento do Supremo era uma vitória da Lava Jato, Moro desconversou: “Não sei ainda se ela teve alguma influência no precedente. Minha percepção pessoal é a de que, há alguns anos, o Supremo sinalizava para a mudança do entendimento anterior. Mas se ela teve alguma influência na formação do precedente, vejo isso apenas como um efeito colateral muito positivo”.

Se o Supremo tiver de fato sido influenciado pela atuação do juiz ao deixar de garantir a liberdade do acusado até o esgotamento de todos os recursos, é o caso de se constatar a prevalência do termo morolização no sentido de reserva moral.

De qualquer maneira, houve um amesquinhamento dos direitos fundamentais. Para Serrano, que acaba de defender uma tese de pós-doutorado sobre como a jurisdição na América Latina tem se transformado em fontes de exceção, a decisão do Supremo fez acender o sinal de alerta: “O perigo de a farda ser substituída pela toga está presente na América Latina”. Por enquanto, os casos que Serrano analisou são os de Honduras e do Paraguai. Em Honduras, o presidente Manuel Zelaya foi derrubado por uma ordem de prisão provisória, da Suprema Corte. No Paraguai, o presidente Fernando Lugo caiu por decisão do Parlamento, confirmada pela Suprema Corte. No Brasil, pelo menos por enquanto, a democracia está consolidada o suficiente para afastar a possibilidade de o atual ciclo democrático ser interrompido pelo Judiciário.

 


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