Quatro ligações interromperam o encontro da reportagem de Brasileiros com o advogado Marcílio Duarte Lima, de 74 anos, em seu confortável apartamento na zona sul de São Paulo. Cada uma delas vinha acompanhada por um pedido para desligar o gravador, que materializava a nossa conversa sobre a dinâmica da política brasileira. “Esse cara que acabou de me ligar tem um potencial extraordinário e não sabe”, comenta, após uma das chamadas. “Já foi deputado, tem nome forte, mas não prestou atenção nas coordenadas que dei a ele”, continua, antes de acabar uma taça de vinho. O suposto parlamentar, assim como todas as outras chamadas, procurava em Marcílio um serviço que talvez só ele tenha condições de fazer no “mercado”: registrar partidos políticos no Tribunal Superior Eleitoral.
O último foi o Solidariedade, em setembro de 2013, como forma de pagar um favor ao deputado federal Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força. O registro foi conquistado em um prazo recorde de oito meses, período em que Marcílio rodou o Brasil montando diretórios estaduais, coletando assinaturas de apoiadores e entregando certificados de filiados aos cartórios eleitorais. Um ano depois, na primeira eleição de sua história, a legenda conseguiu 18 cadeiras na Câmara dos Deputados – a décima bancada da Casa. Para o advogado, o trabalho rendeu um emprego na administração partidária, posição que ele, após quase 30 anos na vida política, abriu mão.
“Tenho dificuldades para falar com o eleitor do partido. Às vezes vou lá e me chamam: ‘Marcílio, tal, fala alguma coisa’. E eu fico pensando: ‘O que eu posso falar para esses caras? Nada!’. Não tem conteúdo, não tem miolo, não tem essência, não tem linha ideológica”, reclama.
Além do Solidariedade, Marcílio esteve envolvido com a criação de outros seis partidos. Alguns por dinheiro, outros por amizade, outros por ideologia e ainda outros por desejo pessoal. Seu primeiro trabalho foi no Partido Trabalhista Renovador (PTR), do Rio de Janeiro (que mais tarde se tornaria o PRTB, de Levi Fidélix), onde colocou dinheiro do próprio bolso para registrá-lo e chegou a agredir o dono da legenda, Juca Colagrossi, depois que ele, com o registro do TSE em mãos, deu a presidência nacional a outro diretor.
Em seguida vieram o Partido Geral dos Trabalhadores (PGT) – também um favor, este para o ex-deputado Francisco Canindé Pegado -, o Partido Trabalhista Nacional (PTN), o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (PRONA), o Partido Social Liberal (PSL) e o Partido Social Trabalhista (PST), fundado em 1988 pela vontade de Marcílio em ter uma legenda para administrar sozinho. “Fiz todos esses partidos entre 1994 e 1995, quando eu estava no auge da carreira”, comemora.
Entre ligações de políticos, taças de vinho e recordações do seu mandato como vereador em Mairinque, no interior de São Paulo, entre 2000 e 2004, Marcílio compartilhou suas experiências do poder com Brasileiros.
INTERESSE POR POLÍTICA
Não queria nem saber de política quando vim para São Paulo. Tinha um tio que era deputado estadual no Rio de Janeiro e eu nunca visitei o gabinete dele. Achava que aquilo não era coisa para mim. Tinha apenas a referência de alguns familiares que serviam ao exército. No episódio de 1964 achava que as Forças Armadas estavam certas, mas tinha a noção de que eu sequer podia me meter nessas coisas. Meus tios, primos, cunhados estavam envolvidos do pé à cabeça nessa preocupação em não deixar que o Brasil descambasse num regime que não pudesse ser controlado.
PARTIDOS
Em meados de 1980, acho que por volta de 1984, eu ouvia muito falar da figura de Jânio Quadros, porque eu acompanhei mais ou menos a história dele. Queria saber por que ele renunciou, por que ele não foi um bom presidente, por que ele não foi nada do que esperavam. Comecei a procurar coisas políticas atrás de informações do Jânio quando encontrei a história da formação do Partido Liberal, que estava ligada ao Álvaro Valle. O Álvaro era um diplomata de carreira que enveredou pela política, tinha ideias de um liberalismo social e pregava-as muito bem. Naquela época, o liberalismo social era um vertente que podia ser a grande solução para a política social brasileira. Me convenci pelas ideias dele e, então, quando ele fundou o PL, me aproximei. No entanto, ninguém me deu chance de participar da administração, que era o meu objetivo. Estudava sobre o assunto desde meados dos anos 80, quando eu ia para Brasília e precisava fazer sustentação oral dos meus processos que tramitavam no Tribunal Superior do Trabalho. Nos tempos livres, visitava o Tribunal Superior Eleitoral e procurava a legislação partidária, que havia sido escrita no período revolucionário. Ficava aguardando os horários das sessões na biblioteca do TSE.
O INÍCIO DAS CRIAÇÕES
Fiz amizade com um diretor do TSE chamado Eni Braga. Ele me ensinou como montar os partidos e depois me mostrou que tinha um partido querendo registro chamado Partido Trabalhista Renovador, o PTR, que depois se tornaria o PRTB, do Levi Fidélix. Eu o conheci quando ele trabalhava com equipamentos de computador. O problema do Levi é que ele é um analfabeto, porque se fosse bem preparado, daria trabalho. No PTR eu fiz, enfim, meu primeiro trabalho de formação de um partido. Fui ao Rio de Janeiro, procurei o presidente nacional, que era o Juca Colagrossi, e ele já me colocou dentro do negócio. Fiquei muito grato pela oportunidade e fiz uma loucura: saí por quatro Estados que faltavam para o registro definitivo com meu próprio dinheiro. Quando estávamos com o trabalho pronto, o Juca pegou o Fernando Vergueiro – um cara que eu tinha apresentado no partido – e deu a presidência para ele. Aquilo me provocou uma fúria, uma decepção tão grande que eu quase perdi a cabeça. O que eu poderia fazer? Matar os caras? Dei umas bordoadas em alguns. Era o que eu podia fazer.
O PARTIDO PRÓPRIO
Chamei uns 30 advogados ao meu escritório e disse para eles: “Vamos construir um partido trabalhista de verdade”. Ele seria baseado no trabalhismo moderno, nos três pilares: desenvolvimento econômico, tamanho do Estado e valorização do trabalho humano. O sindicato precisava falar a verdade para o trabalhador, orientá-lo, prepará-lo, aproximá-lo da empresa, essas coisas modernas e que não se parecem com esse peleguismo que vemos hoje. Na primeira reunião tinha 30, na segunda tinha 20, na terceira tinha 15, na quarta tinha oito, na sétima tinha três e na décima estava só eu. Ninguém queria discutir a filosofia de nada. Fiquei sozinho, mas permaneci com a ideia de montar o Partido Social Trabalhista. Comecei a discursar e fui tocando o registro. Montei o partido sozinho. Fui à falência física e financeira, mas fiz o partido. Fiquei executado, perdi cartões de crédito, vendi bens, tudo. Exceto o ensinamento do Eni Braga, não tive apoio financeiro de ninguém mesmo. Não estou exagerando. Em 1988 fundei o PST. Foi o quarto partido que participou da eleição do Collor. Eu assinei o pedido de registro da candidatura dele à presidência. O requerimento e o diploma. Vou até pedir uma cópia lá no tribunal. Que besteira, né?
O AUGE
Naquela época já estava bem enturmado no Tribunal Superior Eleitoral. Um dia recebi uma recomendação de uma pessoa dizendo: “Olha, um médico que quer fazer um partido vai ter procurar”. No outro dia apareceram no meu gabinete o Enéas [Carneiro] e o Amauri Vasques, de Campinas, que se tornaria deputado em seguida. Daquela reunião saiu o Prona. Nesse período de 1994 a 1995, em que estava no auge, eu fiz muitos outros partidos: o PSL para o Romeu Tuma, o PGT para o Francisco Canindé Pegado, o PTN para o Dorival de Abreu. Os caras viram que eu tinha feito o PST sozinho e passaram a me contratar como advogado.
PREÇO DE UM PARTIDO
Depende da pessoa. Se for um deputado, se for um presidente de sindicato, se for um cara que não sabe nada, um aventureiro. O Paulinho [da Força], por exemplo, gastou pouco [para montar o Solidariedade]. Se o bispo Valdomiro vier aqui, eu faço um partido para ele em 90 dias. Só precisaria fazer a parte processual. Onde é que ele não forma um diretório estadual em 15 dias? Para formar nove Estados para o Valdomiro, a minha esposa vai lá e faz. Nem precisa eu ir. Os honorários que eu cobro ficam entre R$ 300 e R$ 400 mil reais, mas não cobrei de todos. Alguns eu apenas paguei favores.
O NOVO PARTIDO DE KASSAB
O Gilberto Kassab está reconstruindo o PL [que se tornou Partido da República, PR, em 2006]. Ele foi à presidente Dilma Rousseff dizer que estava fazendo outro partido para colocar mais 30 ou 40 deputados desde que tivesse compensações de cargos e, com isso, ele seria o maior partido do país. Mais do que isso: conseguiria dar um chega para lá no Eduardo Cunha. Em duas semanas o Cunha fez uma alteração na Lei 9096 dizendo que a fusão dos partidos só pode ocorrer após cinco anos de existência. Pra você ver como é a força de quem manda no Congresso Nacional.
IDEOLOGIA
Essa coisa de ideologia ficou parada no tempo. Acho que existe um período em que a sociedade se debruça sobre essas questões ideológicas. Há alguns anos você não usava a mesma roupa, as mesmas coisas. Talvez existissem leis – morais ou formais – que não deixavam. Hoje você pode usar a roupa e mais alguma coisa. A sociedade está em constante rotação ou involução, sei lá. Vive uma movimentação, digamos assim. O que é certo hoje pode ser errado amanhã. Na época do Jânio, ele proibiu maiô de duas peças, por exemplo. Quem é que tem um presidente que proíbe um traje de banho assim? A sociedade da época pedia isso. Essa questão de ideologia vai ficar no rastro da evolução. Não podemos ficar presos nisso. O discurso do PT era trabalhista. O do PMDB era, entre aspas, contra a revolução, o golpe, a ditadura, seja lá qual for o nome do que ocorreu em 1964. Quando acabou a ditadura, acabou o PMDB. A ideologia, o programa, a estrutura, todas essas coisas do PMDB se foram. Lembro-me de um deputado que foi eleito quatro vezes com base no discurso contrarrevolucionário. O nome dele era João Orlando Duarte da Cunha, de São José do Rio Preto. Quando acabou a revolução, em meados dos anos 1980, acabou o discurso do João. Não tinha mais o que dizer. É a mesma coisa que acontece comigo no Solidariedade hoje. Tenho dificuldades para falar com o eleitor do partido. Às vezes vou lá e me chamam: “Marcílio, tal, fala alguma coisa”. E eu fico pensando: “O que eu posso falar para esses caras? Nada!”. Não tem conteúdo, não tem miolo, não tem essência, não tem linha ideológica.
PRÓXIMO TRABALHO
Estou montando o Partido Municipalista Renovador Brasileiro, o PMRB. Só não posso dizer de quem é. É um político forte que está ouvindo essa ideia de municipalismo que eu levei. Se a gente não tiver a solução no município, sobrecarrega o Estado. O município é um ente federativo, que tem suas condições de administrar e que, com essa posição, precisa ser mais bem apoiado. Por exemplo: o governo federal transfere a obrigação aos municípios de gerir a saúde a educação. Tem uma cidade na Bahia com 70 mil habitantes e tem uma receita inferior ao município de Mairinque, que tem 59 mil habitantes e 36 mil eleitores. Como esse prefeito está administrando a saúde e a educação com R$ 30 milhões? O prefeito de Mairinque tem um débito só de R$ 30 milhões. É problema de gestão ou é uma ciência exotérica desse outro prefeito? Não dá para saber qual é a mágica. O dono desse partido quer que eu o faça em um ano. Por isso que vou ficar esse período rodando pelo Brasil. Terá como princípios a autonomia do município e a regeneração das contas públicas, que estão todas em situações de quase catástrofe
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