A bossa afro dos Ipanemas

Os Ipanemas, em sentido horário: Astor Silva, Wilson das Neves, Rubens Bassini, Neco e Luiz Marinho. Foto: Divulgação / CBS
O quinteto carioca os Ipanemas e a capa de seu único álbum nos anos 1960. Em sentido horário: Astor Silva, Wilson das Neves, Rubens Bassini, Neco e Luiz Marinho. Foto: Divulgação / CBS

Quando, em 1964, o percussionista carioca Rubens Bassini reuniu os amigos Astor Silva (trombone), Wilson das Neves (bateria e percussão), Luiz Marinho (contrabaixo acústico) e Neco (violão) para gravar um LP, sob o codinome Os Ipanemas, ele provavelmente não imaginava que estava prestes a registrar uma pequena obra-prima da música instrumental brasileira.

Músico experimentado, atuando em estúdios, gafieiras, bares e inferninhos cariocas desde a segunda metade dos anos 1950, Bassini integrou, em 1959, as sessões de gravação de Chega de Saudade, a estreia luminar de João Gilberto. Em 1961, a convite do selo Pawal Records – que também lançou álbuns inaugurais dos organistas Ed Lincoln e Celso Murilo, entre outros – Bassini gravou seu primeiro e único disco autoral, de forte influência latina, intitulado Ritmo FantásticoRubens Bassini e os 11 Magníficos (ouça o tema Canoinha). Na contracapa do bolachão lê-se a recomendação “ouça para dançar, dance para se divertir”.

Se em 1961 o propósito autoral de Bassini era entreter ouvintes e provocar estímulos dançantes, três anos mais tarde, acompanhado de Wilson, Astor, Marinho e Neco, ele preferiu tirar o pé do acelerador e impregnar de cadências africanas a bossa dos Ipanemas. Inspirado, o quinteto criou texturas sonoras jamais ouvidas no repertório das dezenas de combos instrumentais que pululavam no Rio de Janeiro, naquele início de anos 1960.

Lógico, havia nas “paisagens” musicais criadas pel’Os Ipanemas elementos perceptíveis de bossa nova, baião, côco, xote, batuques de umbanda e candomblé, mas a seção percussiva, a cargo de Bassini e Wilson (flagrado de berimbau em punho no retrato da contracapa), foi a distinção que fez do grupo um dos mais originais entre seus contemporâneos – além das expressões de origem africana entoadas pelos cinco, de forma econômica, como scats vocais, que replicam as melodias de algumas das músicas.

No triênio 1963-1965 o samba-jazz viveu período de ouro. Fez surgir em diversas capitais do País dezenas de trios, quartetos e quintetos, muitos deles chegando a registrar ao menos um álbum. Mesmo tendo alguns deles envolvimento estreito com o novo gênero instrumental – Neco e Wilson, por exemplo, integravam Os Gatos e Os Catedráticos –, em busca de novas sonoridades os músicos dos Ipanemas ignoraram alguns dos estatutos do samba-jazz.

Coube a Astor, discípulo dos maestros César Guerra-Peixe e Moacir Santos, com quem teve aulas de harmonia, assinar os arranjos do disco. O resultado instiga. Faz crer que a bossa-nova atravessou o Atlântico, deu um breve passeio pela Mãe África e voltou transformada. Impressão esta ainda mais reforçada quando se lê na contracapa do disco o repertório escolhido pel’Os Ipanemas. Estão nele clássicos como Garota de Ipanema (Tom e Vinícius), Adriana (Menescal e Lula Freire), Consolação e Berimbau (Baden e Vinicius), e Nanã (Moacir Santos).

Outros sete temas, de autores diversos, integram o disco e cabe aqui um parêntese para reverenciar Daudeth Azevedo, o Neco. Co-autor, com Astor, dos temas Zulu’s e Java, ele foi um dos maiores violonistas de sua geração – também exímio no cavaquinho, bandolim, guitarra e violão de sete cordas. Neco gravou quatro álbuns autorais (Coquetel Bossa Nova, Velvet Bossa Nova, Samba e Violão, e Samba e Violão N° 2), mas, como a genial Rosinha de Valença, foi eclipsado pela supremacia de dois gigantes: Luiz Bonfá e Baden Powell.

Em 2001, a convite do produtor Joe Davis, da gravadora Far Out Records, e do baterista Ivan “Mamão” Conti, do Azymuth (que gravava pelo selo britânico), Neco e Wilson reformularam o grupo, incluindo Mamão e Alex Malheiros, cozinha do essencial Azimuth, na nova composição. O encontro resultou em novo repertório e os discos The Return of The Ipanemas (2001), Afro Bossa (2003) e Samba is Our Gift (2006). Em 2008, um novo álbum, Call of The Gods, levou os músicos a excursionarem pela Europa e à imprensa local a dar a eles o equivocado apelido de “Buena Vista Social Clube brasileiro”.

Com a morte de Neco, em agosto de 2009 (Astor morreu em 1968, Bassini em 1985), Wilson decidiu lançar um tributo ao violonista, o álbum Que Beleza, que contou com a participação de Mamão, Jorge Helder (baixo), Vittor Santos (trombone), José Carlos (guitarra e violão), Thiago Gim (percussão) e a cantora Áurea Martins.

Embalado em grande estilo com uma bela ilustração de Sergio Malta, o álbum de 1964 traz na contracapa a frase “discos CBS apresenta um novo som em samba, esses são Os Ipanemas”. No rodapé, enaltecendo a qualidade técnica do registro, a gravadora insiste “vossa senhoria pode comprar este disco sem o mais leve receio de que ele venha a se tornar obsoleto no futuro”. Definitivamente, a CBS não cometeu exagero algum, tampouco pregou peça marqueteira à seus clientes. Basta ouvir os 12 temas para concluir que Os Ipanemas é obra atemporal, com um frescor inesgotável.

Confira a íntegra de Os Ipanemas

MAIS:

No dia 26 de setembro Wilson das Neves foi destaque nesta coluna, com seu disco Samba-Tropi – Até aí morreu Neves. Confira. 

Boas audições e até a próxima Quintessência!


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