Filho do baterista Joaquim Romão, Dom Um Romão herdou do pai, com o perdão do trocadilho, o dom de expressar a sincopa irresistível da nossa música popular. E ele foi além. Em 79 anos de vida bem vivida, o menino do Seu Joaquim alçou voos bem mais altos que os do pai, músico de estúdio e de bailes cariocas, nos quais, o filho, aos 16 anos, já arriscava uma reserva na bateria, enquanto o pai fazia pausa para descansar. Dom Um ganhou malícia no instrumento com os professores Anestauro Américo e Mesquita Baterista. Logo, afirmou-se músico profissional competente, qual o pai, ao ingressar no ambiente musical das rádios e dos bailes do Rio de Janeiro, no final dos anos 1940.
Dono de talento peculiar, com menos de 30 anos o baterista carioca estava bem credenciado no rol de protagonistas de uma revolução que seguia em curso e assolava a canção e a música instrumental do País, naquela virada para os anos 1960. Dom Um Foi um dos artífices de algumas derivações da insurgente Bossa Nova. Na seara escolhida por ele, havia feras como Edison Machado, Chico Batera, Airto Moreira, Toninho Pinheiro, Wilson das Neves, Ronald Mesquita, Hélcio Milito, Jorge Autuori e Milton Banana. Músicos que reescreveram a história de pratos, bumbos, tambores e surdos. Junto a esses pares, Dom Um ajudou a definir a batida diferente expressa em meio às sofisticadas estruturas harmônicas tecidas por renovadores das teclas e das cordas como Johnny Alf, Luiz Bonfá, Neco, Laurindo de Almeida, Bola Sete, Durval Ferreira, Tom Jobim, João Donato, Walter Santos, Dick Farney e Tito Madi. Músicos imprescindíveis para a continuidade da linha evolutiva de tradições brasileiras, como o samba, a gafieira e o baião. Músicos que impregnaram a nascente Bossa Nova de frescor e fizeram rebuliço suficiente para continuar inspirando sucessivas gerações de instrumentistas ao redor do mundo. Dom Um Romão teve o privilégio de ter sido um deles.
Nascido no Rio de Janeiro em 3 de agosto de 1925, o baterista dedicou afinco ao instrumento desde a adolescência. Já no final da década de 1940, empunhava profissionalmente um par de baquetas para orquestras de dança de casas como o Sacita’s, na companhia do saxofonista Moacyr Franco Silva e do trompetista Barriquinha. A excelência precoce do baterista, em seu toque de extremos – ora leves e pesados, outrora dinâmicos e hipnoticamente lentos, sutis e agressivos –, levou o rapaz, aos 20 anos, a assinar um contrato para integrar a orquestra da Rádio Tupi. Em 1955, fechando cozinha com o baixista Manuel Gusmão e tendo a frente o pianista Toninho, Dom Um fundou o Copa Trio. Com o combo pulsante, tornou-se habituée no Beco das Garrafas. Nos mesmos inferninhos da Rua Duvivier, o Copa Trio tornou-se quarteto com o acréscimo saliente de um moleque chamado Jorge Ben, Babulina, para os íntimos.
Em 1997, em entrevista concedida a um de seus discípulos, o baterista Zé Eduardo Nazário, Dom Um lembrou os encontros com Jorge e a boa horda do Beco, na primeira metade dos anos 1960: “Ficamos (o Copa Trio e Jorge) bastante tempo ali, com aquele showzinho. Como eu também trabalhava no Sacha’s, eu trazia o pessoal da sociedade para se comunicar conosco e participar daquela festividade da Bossa Nova. Foi uma época que surgiu muita gente. Depois, o Meirelles (o maestro J.T. Meirelles) vinha dar canja e havia o Little Club, que era só jazz, uma porta depois da nossa, e era do mesmo dono, o Giovanni (na verdade, dos irmãos Giovanni e Alberico Campana), Tocávamos jazz no Little Club; já no Bottle’s, era aquela música brasileira com ‘Seu Jorge Ben’ tocando, no banquinho, aquele ‘mas, que nada!’. Foi ali que surgiu esse ‘guento’ e foi formidável! Uma época muito boa. Era o Beco das Garrafas, onde rolava de tudo”.
Em 1964, talento consagrado, Dom Um lançou seu primeiro LP. Uma joia do samba-jazz que merece outro capítulo em Quintessência. O baterista era, então, casado com Flora Purim, aspirante a cantora, e decidiu apostar no talento de sua mulher. Contou com o apoio do amigo Cipó e, logo, ela assumiu o papel de cantora na orquestra do maestro. Naquele mesmo ano, Flora debutou pela RCA, com um primor de álbum, intitulado Flora é M.P.M. (sigla para música popular moderna) – claro, na direção do álbum e nas baquetas, pincelando a estreia da cantora, com suas cores percussivas e sua procura por timbres naturais, lá estava Dom Um.
Colaborativo, pouco antes, o baterista havia participado de outros registros históricos, como o álbum O Som, primeiro do quinteto Copa 5, liderado pelo maestro J.T. Meirelles e Tema 3-D, a estreia do Trio 3-D, do precoce pianista Antônio Adolfo, no qual Dom Um dividiu bateria com Nelson Serra. No início de 1963, Flora e o marido ajudaram a abrir caminho para um dos grandes talentos de sua geração, o pianista paulista Dom Salvador. Em entrevista à Brasileiros, Salvador lembrou o episódio: “Muito tímido, nunca me oferecia para tocar em jams. Mas acabei dando uma canja no Baiúca, em uma noite em que estavam lá a cantora Flora Purim e seu marido, o baterista Dom Um Romão. Eles faziam uma temporada em São Paulo, e ficaram super entusiasmados quando me viram tocar. A Flora me chamou e disse: ‘Se você quiser morar no Rio, meu marido tem um conjunto, o Copa Trio, e o Toninho, o pianista, está saindo’. Em 15 dias, eu estava morando lá. Uma virada na minha vida. Não sei o que seria de mim se não fosse esse encontro e o convite da Flora”.
A exemplo do que aconteceu com Dom Salvador, que vive em Nova York desde 1973, a carreira de Dom Um também ganhou dimensões internacionais. Em 1965, a convite do produtor Norman Granz, empresário de Ella Fitzgerald, o baterista partiu para os Estados Unidos para trabalhar com o saxofonista Stan Getz e Astrud Gilberto, a principal artífice do sucesso do álbum Getz/Gilberto, lançado no ano anterior. A chegada de Dom Um aos EUA deu-se ao lado de dois grandes amigos, Sivuca e o violonista e guitarrista Luiz Henrique, que com ele foram morar no hotel 1,2,3, em Nova York. Em 1967, Dom Um teve a honra de integrar os registros do encontro entre Tom Jobim e Frank Sinatra no álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, lançado pela Verve. No mesmo período, ele integrava o grupo de Sergio Mendes, o Brasil’66, e percorreu Estados Unidos e Europa na esteira do enorme sucesso experimentado pelo pianista niteroiense que, aliás, o havia acolhido na primeira formação do pioneiro Sexteto Bossa Rio, com o qual se apresentaram no histórico show da Bossa Nova no Carnegie Hall, em Nova York, em novembro de 1962. Ao se desligar do grupo de Mendes, em 1969, Dom Um participou ao lado do amigo Luiz Bonfá do LP The Movie Song Album, de Tony Bennet. Em 1972, a convite de Airto Moreira – casado até hoje com Flora – o baterista substituiu o amigo catarinense no grupo Weather Report. Nele, ficou até 1976, período no qual integrou três registros do grupo I Sing The Body Electric, Sweetnighter e Mysterious Traveller.
Não restam dúvidas, 1972 foi ano especial para Dom Um. Além de passar a integrar o Weather Report, ele também foi convidado por Joe Fields, da Muse Records, para fazer um par de álbuns, o primeiro deles, lançado meses depois, é tema, hoje, de Quintessência. O LP homônimo reuniu um time de músicos que não deixa dúvidas da postura reverente do chefão da Muse para com Dom Um. A lista é extensa: no contrabaixo, Frank Tusa e Stanley Clarke; no piano elétrico, Dom Salvador; no violão, Amauri Tristão; nas congas, Eric Gravatt; no órgão e no piano acústico, Sivuca; na flauta; Lloyd McNeill; no harpischord, um certo João Donato; na guitarra elétrica, Joe Beck; no sax-alto e flauta, Jerry Dodgion; no sax tenor, soprano e flauta, Mauricio Smith; no sintetizador, Richard Kimball; no trombone, Jimmy Bossey; no trompete, William Campbell Jr.; e, na percussão, Portinho. A produção do LP ficou a cargo de Joe Fields. O repertório reúne seis temas instrumentais: três de autoria de Dom Um – Dom’s Tune, Family Talk e Braun, Blek, Blu (esta última dá nome informal ao disco); um de Sivuca e Humberto Teixeira, Adeus, Maria Fulô; um de Edu Lobo, Ponteio; e outro de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, a versão de Cravo e Canela intitulada Cinnamon Flower.
Reunindo músicos brasileiros e americanos egressos de experiências distintas e, ao mesmo tempo, semelhantes, no viés de reinvenção dos conceitos do jazz moderno, o álbum é um testemunho dos estímulos provocados por essa geração que marcou o início dos anos 1970. Similar, nos predicados experimentais, o álbum de 1973, Spirit of The Times traz Dom Um ainda mais natural, com seus cantos, sussurros e o gestual que é possível “ver” e sentir em sua música aflorados.
Hotmosphere, lançado pelo selo Pablo Records no ano seguinte, fecha em grande estilo a trilogia americana de Dom Um nos anos 1970. No final da década, o baterista fundou em New Jersey o estúdio Black Beans. O espaço ficou aberto apenas por dois anos, mas marcou época, pois era utilizado para ensaios por estrelas do jazz como Lionel Hampton e Gerry Muligan.
Desde o início dos anos 1980, o baterista morava na Suíça, mas morreu no Rio de Janeiro, em 2005, uma semana antes de completar 80 anos, vitimado por um derrame cerebral.
Ouça a íntegra de Dom Um Romão.
Boas audições e até a próxima Quintessência!
Ah, ficou curioso com a origem do nome atípico do baterista? Saiba pelo próprio.
Veja também o baterista em ação com Sergio Mendes e Brasil’ 66 na TV americana:
Não deixe de conferir também uma preciosidade recomendada pela amiga Ilana Volcov: registro da TV holandesa com Dom Um acompanhando Astrud Gilberto no programa do pianista e apresentador Pim Jacobs:
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