A cadência selvagem de Edison Machado

051-edisonmachado-edisonmachadoc389sambanovoO contrabaixista Tião Neto foi parceiro infalível de Edison Machado. Juntos, formaram uma densa cama percussiva, de cadência brasileiríssima, e fecharam a cozinha de combos pioneiros para nossa música instrumental, como o Bossa Três, de Luiz Carlos Vinhas (leia post sobre seu Novas Estruturas) e o Sexteto Bossa Rio, de Sergio Mendes (leia post sobre o álbum Você Ainda Não Ouviu Nada

Naquele áureo primeiro quinquênio dos anos 1960, “Edisão Maluco”, como muitos o chamavam, e o sisudo Tião Neto, com seu gestual compenetrado – impressão reforçada pela sobriedade de seu indefectível cavanhaque -, literalmente quebravam a banca. Sobre o amigo Edison, Tião sentenciou: “Foi o maior baterista de samba de todos os tempos. O tempo dele no samba no prato e no pé direito (o bumbo da bateria) é irreprodutível. Tinha um suingue fantástico. Quem quisesse que fosse atrás. A música brasileira, principalmente o samba, deve muito a Edison”. Na contracapa do álbum reverenciado hoje em Quintessência, Clovis Rocha, co-autor de alguns dos temas de Edison Machado é Samba Novo, também enaltece o pioneirismo do baterista: “Ainda garoto, apareceu tocando e já nessa oportunidade era o Sr. Ritmo. Suas inovações marcaram época. Pela primeira vez se ouviu samba no prato”.

Mitificado e reduzido em importância justamente pela invenção do samba no prato, Edison Machado foi muito mais do que isso. Na dinâmica agressiva de seus punhos, a música instrumental do País ganhou modernidade e revitalização, com o cruzamento de fundamentos das melhores escolas do jazz norte americano, predominantemente o hard bop, e nossas tradições – o samba, a gafieira, o choro e a bossa nova. Seria também o jazz que, depois da explosão da bossa e do samba-jazz, garantiria permanência em circuito internacional ao baterista, que viveu os últimos 14 anos de vida nos Estados Unidos, onde liderou os grupos Edison Machado Quartet e Lua Nova, e colaborou com músicos do primeiro time do jazz americano, como Ron Carter, Chet Baker, Stan Getz e Steve Kuhn.

Edison Machado em foto das sessões de Edison Machado é Samba Novo (Divulgação / CBS)
Edison Machado em foto das sessões de Edison Machado é Samba Novo (Divulgação / CBS)

Quando gravou, em 1964, pela CBS, Edison Machado é Samba Novo, seu primeiro disco solo, Edison já tinha milhagem excessiva em inferninhos, palcos e estúdios. Afeito ao ambiente boêmio das gafieiras, aos 23 anos, integrou as gravações de dois registros históricos para a música instrumental brasileira, o álbum Turma da Gafieira (1957), de Altamiro Carrilho, um marco do improviso no Brasil, e o sucessor Samba em Hi-Fi (1957). Em 1963, depois de excursionar com o Bossa Três no ano anterior, pelos EUA, lançar o primeiro álbum do trio, pelo selo americano, Audio Fidelitiy, e participar das gravações do primeiro álbum americano de Tom Jobim, The Composer of ‘Desafinado’ Plays (Verve), Edison voltou ao Brasil onde fez também outros registros dos mais importantes: Você Ainda Não Ouviu Nada, de Sergio Mendes e Sexteto Bossa Rio; Opinião, de Nara Leão; O Novo Som, de Meirelles e os Copa 5; Diagonal, de Johnny Alf; Samba eu Canto Assim, de Elis Regina e Novas Estruturas, de Luiz Carlos Vinhas. Naquele mesmo 1964, pasmem, ele ainda integrou o Sergio Mendes Trio e, ao lado do amigo Tião Neto, viajou com o grupo do pianista niteroiense por vários países da América do Sul, cidades dos Estados Unidos e chegaram a se apresentar em Tóquio, no Japão. Acompanhando Sergio, o baterista, carioca, de Engenho Novo, fez novo registro americano The Swinger From Rio.

De olho em Edison, a CBS destacou técnicos de som para visitar o ambiente esfumaçado do Beco das Garrafas, mais especificamente a Boite Baccarat, onde o baterista se apresentava regularmente. E eles não tiveram dúvida: ao vivo e em cores, os predicados evidenciados por Edison em registros fonográficos, tornavam-se ainda mais impressionantes. Com ele, um novo capítulo para a história da bateria tocada no Brasil estava sendo escrito, e tal façanha era mesmo digna de registro. Para dar a Edison liberdade artística e um disco a altura de sua inventividade, a gravadora não poupou recursos e trancafiou nos estúdios cariocas um time de all-stars: o pianista Tenório Jr. (leia post sobre seu Embalo), o amigo Tião Neto, o trompetista Pedro Paulo, o saxofonista e clarinetista Paulo Moura – que a exemplo do saxofonista J.T. Meirelles também assina arranjos de alguns temas do álbum – e os trombonistas Raul de Souza (à época chamado Raulzinho, leia post sobre seu Muito à Vontade Mesmo) e Edson Maciel. Cereja do bolo, o maestro Moacir Santos assina os arranjos de três faixas: a poderosa versão de Nanã, (clássico do próprio Moacir), com solos de Raulzinho, Meirelles e Edison; e duas parcerias do maestro e do poetinha Vinicius de Moraes, Se Você Disser que Sim, com improviso de Paulo Moura, e Menino Travesso, com solos de Meirelles e Maciel.

Paulo Moura, que havia acabado de escrever arranjos para o saxofonista Cannonball Aderley orquestrou os temas Só Por Amor, de Badden Powell e Vinicius, com mais um solo inspirado de Raulzinho; Você, de Rildo Hora e Clovis Mello, com o piano de Tenório Jr (aluno de Moacir) em primeiro plano, e Coisa nº 1, de Moacir, com solos do próprio Paulo e Raulzinho. Não menos gabaritado, J.T. Meirelles era, então, considerado um dos pais do samba-jazz e havia sido eleito, em 1963, pelo Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro, o Melhor Músico do País. Meirelles também enriquece o repertório de Edison Machado é Samba Novo, com quatro preciosidades de sua autoria, Quintessência (aliás, tema inspirador do nome desta coluna), onde o solo fica por conta de Paulo e de Raulzinho, que fez livre improviso, arrasador, em homenagem ao amigo Edison; Abôio, também dedicada a Edison, com solos do arranjador e de Maciel; Solo, com improviso de Meirelles, Tenório e Maciel e Miragem, com os dois últimos alternando solos.

Na contracapa de Edison Machado é Samba Novo há uma advertência: “Necessário se faz explicar que os arranjadores e instrumentistas, componentes do conjunto que acompanham Edison neste LP foram escolhidos dentre os maiores músicos nacionais”. Por fim, a gravadora mensura a importância do lançamento para seu catálogo: “Naturalmente que, depois de reunir toda esta quantidade de astros em um só LP a Discos CBS pode se orgulhar deste lançamento e afirmar que Edison Machado é samba novo!

Depois de lançar sua obra-prima solo, o baterista integrou, ao lado do pianista Dom Salvador e do baixista Sérgio Barroso, outro lendário grupo de samba-jazz, o Rio 65 Trio, nomeado por Edison, em alusão ao quarto centenário da Cidade Maravilhosa. Com o grupo, Edison lançou dois clássicos Rio 65 Trio e A Hora e a Vez da M.P.M. (sigla para Música Popular Moderna). Carro-chefe do primeiro álbum do Rio 65 Trio, Meu Fraco é Café Forte, foi trilha do filme Crônica da Cidade Amada, de Carlos Hugo Christenssen (veja cena do filme onde Edison é flagrado solando no tema).

Entre 1970 e 1971 Edison formou novo grupo, Edison Machado Quarteto, composto por ele, Alfredo Cardim (piano), Ricardo Pereira (contrabaixo) e Ion Muniz (sax tenor e flauta), e lançou pelo minúsculo selo Stylo dois outros álbuns essenciais para o jazz brasileiro Obras I (ouça Mr. Machado) e Obras II (ouça a impressionante versão de Asa Branca) – veja, também,  cena do filme Cinema, o Qué e Como se Faz, de Paulo César Saraceni, onde há um registro do quarteto, com Aloisio Aguiar ao piano).

Em 1976, Edison mudou-se para os Estados Unidos, onde permaneceu radicado até 1990, quando, no primeiro trimestre daquele ano, formou um novo sexteto e fez uma temporada de shows no Rio de Janeiro, na boate People (veja o vídeo de Constelação). Três meses depois de encerrada a série de shows, em setembro, Edison sofreu um infarto fulminante e morreu, aos 56 anos, em Niterói.

Àqueles que se interessarem e quiserem saber mais sobre Edison Machado, recomendado é navegar pelos posts do blog, de Luiz Hardin, dedicado ao baterista. Nele, é possível baixar arquivos com dezenas de registros feitos por Edison e também conferir sua impressionante discografia, com participação em mais de 60 álbuns. Edison também participa da trilha sonora de dois clássicos do cinema brasileiro Terra em Transe, de Glauber Rocha e O Abismu, de Rogério Sganzerla.

Ouça a íntegra de Edison Machado é Samba Novo
Boas audições e até a próxima Quintessência!  – que, aliás, será especial: teremos compilado, até lá, a história de 20 álbuns brasileiros e será este o primeiro post de 2014. Feliz ano novo! 


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