A eterna rainha

Conforme a manhã avança, pouco depois das 10 horas já se ouve o chiado da panela de pressão na casa de Maria Della Costa. O cheiro de feijão invade a sala de paredes de pedra, decorada com esculturas e quadros – em geral presentes de amigos e fãs -, além dos santos que ela comprou em Portugal durante suas turnês pela Europa. Encontram-se por ali os jornais O Globo, Folha de S.Paulo, a revista Veja – vestígios de quem procura manter-se vigilante e com a opinião aguçada. Os gatos circulam com intimidade pelos sofás, brincam com bolinhas de guardanapo amassado e ratinhos de feltro que não têm mais do que três dedos de comprimento. Tudo atesta que, depois de uma vida dedicada ao teatro, é de uma rotina simples e confortável que Maria gosta. Talvez ela seja uma das poucas pessoas que conheceram o sucesso e não se apaixonaram perigosamente por ele: Maria Della Costa entrou no mundo dos palcos, filmes e novelas e saiu dele sem nunca participar do glamour que envolve isso tudo. Recusou festas, badalações e se expôs apenas o suficiente para construir a companhia dramática Teatro Popular de Arte, a sala de espetáculos Teatro Maria Della Costa, e lançar artistas, autores e diretores que solidificaram o teatro brasileiro na São Paulo dos anos 1950.

Ela fez parte de uma geração que trabalhava muito mais do que devia, ganhava muito menos do que merecia, e ajudou a construir a cultura brasileira na marra, ainda que lançar hoje um olhar sobre esses acontecimentos a deixe impregnada de uma atmosfera saudosa. Ela fez tudo a golpes de foice, da mesma forma com que hoje, aos 82 anos, apara o jardim do seu Hotel Coxixo, em Paraty, e mostra as mãos calejadas pelo trabalho. Os calos realmente estão lá, não são apenas força de expressão. Maria tem trejeitos nacionalistas. Ela cerra o punho e bate no coração: “Cada um deve cuidar da sua parte, sem ganância. Tenho um amor à terra acima de tudo”. Com o título de uma das maiores atrizes do Brasil, Maria Della Costa não traz as costas pesadas, a aparência cansada, tampouco o ar enfadonho de quem já muito leu, ouviu ou falou sobre si mesma. Toda a disposição vem da mania de perfeição e do amor à terra. Parece exagero quando ela fala isso, com todos os “erres” acentuados aos quais a sua origem gaúcha tem direito, mas o fato é que a terra foi o seu primeiro berço.

Primeiro ato
Em 1º de janeiro de 1926, Hermelinda Della Costa foi apanhar uma melancia num matagal qualquer de Flores da Cunha, cidade a cerca de 150 quilômetros de Porto Alegre (RS). No meio do caminho sentiu as dores do parto e só teve tempo de se deitar. Instantes depois Amadeu Marchioro chegava à casa e, dada a falta da esposa, presumiu o nascimento. Cavalgou até encontrá-la, cortou o cordão umbilical e limpou a pequena filha Gentile Maria Marchioro da sujeira da terra. Se Flores da Cunha tem hoje 25 mil habitantes, fica difícil mensurar como era há 80 anos. Vivia-se ali como camponês, plantando, colhendo e caçando. Amadeu era uma mistura disso com mecânico e eletricista. Apesar de casado com Hermelinda, ele viajava bastante e tinha o hábito de formar famílias em diversos cantos. Com o passar dos anos, o entrevero familiar só poderia ser agravado: além da ausência, faltava dinheiro e escasseava o que comer. Mãe e filha se tornaram agricultoras de subsistência, e nas horas vagas fugiam para longe de Amadeu, embora as tentativas fossem sempre frustradas. Logo que se dava conta da ausência das duas, o homem se valia da
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experiência de forasteiro e as encontrava. A fórmula para trazer Hermelinda de volta para casa era raptar a filha. Nos entreatos das fugas rotineiras, a pequena aprendia a se adaptar à realidade. Na falta do que comer, mamava nas tetas de uma cabrita ou chupava clara e gema de ovos de galinha. O estômago era amansado e o espírito se expandia, com a convicção de que quem aprendera a driblar a fome poderia encarar todo o resto numa boa. Pouco antes dos 10 anos, a penúria foi transferida para a capital. Uma fuga bem-sucedida para Porto Alegre possibilitou a Hermelinda trabalhar numa fábrica de bolachas, enquanto Maria foi ser babá. Alguns patrões foram implicantes, outros bateram na menina, e a solução foi estudar num internato.

Os cinco anos passados entre as freiras tampouco foram melhores que os anteriores. A sinopse do drama é a alcunha que as esposas de Cristo lhe aplicaram: “Flor Murcha”. Logo ela, que tinha os cabelos loirinhos quase brancos e a franja ondulada, cuja forma a mãe comparava ao efeito das pétalas unidas no miolo de uma rosa. “Minha filha vai ser alguém na vida”, dizia, por crer que isso fosse um sinal divino. E talvez fosse mesmo, só que as benesses só chegariam depois que Maria deixou o internato. Aos 14 anos, foi morar com um primo, fotógrafo, e ajudá-lo na distribuição de fotos para os clientes. Por conta das andanças em Porto Alegre, foi avistada sob a sombra de um banco de praça por Justino Martins, diretor da Revista do Globo, quinzenário que por quatro décadas marcou presença no cenário cultural brasileiro e que teve Erico Verissimo como editor. Maria virou manequim e conheceu Fernando de Barros – jornalista, cineasta e um dos críticos e consultores de moda mais importantes que o Brasil já teve -, que a levaria para o Rio de Janeiro e a transformaria em uma das girls do cassino do hotel Copacabana Palace. Na então capital federal, o País conheceria Maria Della Costa, que emergia em um dos espetáculos praticamente nua e representando o papel da Beleza. Fernando de Barros também seria o seu primeiro marido.

Segundo ato
No Rio de Janeiro, Maria decidiu abraçar outras facetas do meio artístico. Manequim e girl do Copacabana Palace, em 1944 decidiu fazer uma ponta na peça A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, pela companhia de Bibi Ferreira. Não deu certo: a atuação fraca e a origem portuguesa do marido incentivaram-na a estudar teatro no Conservatório Dramático de Lisboa. Ficou um ano por lá e, durante as férias no Brasil, envolveu-se com o lendário grupo dramático Os Comediantes. Desistiu de voltar a Portugal. Sob os cuidados do diretor polonês Zbigniew Ziembinski, atuou na peça A Rainha Morta, de Henry de Montherlant. Foi no papel de Inês de Castro que caiu nos braços do ator Sandro Polloni e descobriu, finalmente, o que era estar apaixonada. Permaneceu assim pelos 50 anos seguintes, até a morte dele, em 1995. Por mais que o primeiro marido, Fernando de Barros, levasse anos para ceder o desquite, Maria e Sandro tiveram uma união sólida, cuja rotina era repleta de declarações de amor e companheirismo. E que também se transpôs de forma prática para o âmbito profissional.

Sandro crescera em coxias de teatro, porque fora criado pela tia, a atriz dramática Itália Fausta. Adorava interpretar, além de cuidar de todos os detalhes da engenharia cênica – dos cenários à iluminação. Quando se uniu a Maria, não titubeou em criar uma carreira conjunta. Disse-lhe: “Maria, você é maior do que eu. Eu deixo de atuar e vou lhe empresariar. Será melhor para a nossa companhia”. Polloni tornou-se um dos maiores empresários de teatro do país. Quando decidiram construir o Teatro Maria Della Costa na Rua Paim, no centro de São Paulo, com projeto dos arquitetos Oscar Niemeyer e Lucio Costa, a atriz e o empresário não tinham um tostão no bolso. Possuíam a companhia Teatro Popular de Arte – fundada em 1948 – e a percepção de que nos novos ares de São Paulo seria mais fácil ter uma sala própria de espetáculos do que no Rio.

A solução era trabalhar. Nas viagens Brasil adentro, o grupo percorreu igrejas, praças, teatros, escolas. Onde existisse um lugar para colocar o cenário e desse para os artistas representarem, as apresentações aconteciam. Como todos os figurinos viviam em uso, nos intervalos das viagens e dos ensaios, Maria passava todas as roupas das peças, enquanto Sandro retocava e montava os cenários. As refeições eram as mais baratas possíveis. Comer lanches era a única alternativa e, fisicamente exausta, a atriz precisou de transfusões de sangue em diferentes cidades pelas quais passou. Anjo Negro, texto de Nelson Rodrigues, dirigido por Ziembinski; Tereza Raquim, de Émile Zola, com direção do italiano Ruggero Jacobbi; A Prostituta Respeitosa, de Jean-Paul Sartre, dirigida por Itália Fausta. Embora o Teatro Popular de Arte se consolidasse pela qualidade e ousadia de seu repertório, a consagração chegou apenas na noite de estréia do Teatro Maria Della Costa. O Canto da Cotovia estreou em 1954, ano do quarto centenário de São Paulo. A peça moderna, do dramaturgo francês Jean Anouilh, foi dirigida por um diretor italiano que Maria e Sandro trouxeram da Europa-: Gianni Ratto. Ele conduziu a atriz no papel de Joana d’Arc, numa atuação que mereceu elogios honrosos do crítico de teatro Décio de Almeida Prado, nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo:

“A peça de Anouilh conta a vida de Joana d’Arc, a cotovia do título – e talvez haja uma afinidade maior do que poderíamos pensar entre a heroína francesa e a atriz brasileira encarregada de interpretá-la (…). Também ela, à sua maneira, ouviu vozes misteriosas, escutou um apelo superior, vindo não se sabe de onde. Pelo menos toda a sua existência, até aqui, tem sido uma longa e, seguramente, penosa ascensão (…). O obstáculo maior, para chegar aonde chegou, era naturalmente a sua beleza, que a marcava entre as outras mulheres, abrindo-lhe uma série de carreiras fáceis, capazes de deslumbrar qualquer jovem.”

Terceiro ato
Maria Della Costa acorda todos os dias às 6h30. Mal levanta e já incorpora o papel de sargenta. De cabelos lavados, veste-se com jeans, tênis, e percorre todo o Hotel Coxixo (localizado no Centro Histórico de Paraty) em busca de detalhes para resolver. Os olhos muito azuis e atentos vêem folhas pelo chão, passarinhos que caíram das árvores, uma cadeira fora do lugar. Nada lhe escapa. Ela recusa o título de “senhora” e, ao mesmo tempo, fica muito estranho chamá-la por “você”, pois sua presença sugere autoridade: Maria traz as costas “retas como uma tábua”, como já advertira seu biógrafo Warde Marx, o que torna o seu 1,74 metro mais altivo do que se poderia supor. Ao mesmo tempo, os sorridentes “bom dia” distribuídos a todos os funcionários e hóspedes do hotel desfazem qualquer sombra de autoritarismo. São acompanhados de um “tudo bem?”, que ela realmente espera que seja respondido e se preocupa com a resposta. Um funcionário, ao avistá-la pela primeira vez no dia, abraça-a e agradece favores pessoais: “Muito obrigado, dona Maria. Que Deus te abençoe”. Assim a fiscal zelosa, que quer tudo em ordem e é rígida com horários, coexiste com a mãe de cerca de 40 filhos – os funcionários do hotel mais os seis gatos que apareceram no telhado e logo viraram animais da casa.

Depois que ecoam as 12 badaladas do sino da matriz, já é hora de encerrar as atividades da manhã. O almoço é servido sempre às 12h30, em companhia da fiel Joaquina, seu braço direito no hotel há 40 anos. Maria come arroz, feijão, chuchu refogado e peixe tambaqui, trazido de Belém (PA) por um parente da empregada. Ela se delicia, elogia o peixe frito e se esquiva dos espinhos com desenvoltura. Mais que um de seus pratos prediletos, o tambaqui lhe remete a tempos passados. Ele tem gosto das turnês pelo Brasil, realizadas durante 15 anos para que ela e o segundo marido, Sandro Polloni, conseguissem pagar o teatro que construíram em São Paulo. Já os espinhos lembram as viagens em caminhões ou a bordo de aviões da Força Aérea Brasileira, com destino ao Norte, ao Nordeste e ao Sul do Brasil – a única forma que a companhia Teatro Popular de Arte encontrou para atravessar o País e levar artes cênicas aos rincões brasileiros.

Ato final
Maria Della Costa não faz questão de enumerar as suas conquistas. Os hóspedes e fãs é que, às vezes, aparecem com alguma lembrança: “Eu me lembro de você linda, naquela peça… A Rosa… A Rosa alguma coisa”, diz uma senhora, integrante de um grupo que veio do Rio de Janeiro, gabando-se de ser gaúcha como a atriz. Era A Rosa Tatuada, de Tennessee Williams, cuja estréia foi em 1956. Se for para enumerar obras importantes, há uma lista: A Moratória, que lançou o dramaturgo paulista Jorge Andrade, em 1955. Ou A Boa Alma de Setsuan, a primeira montagem profissional no Brasil do influente dramaturgo socialista alemão Bertolt Brecht, em 1958. Ou Gimba, Presidente dos Valentes, em que Maria se pintou de negra e abriu as portas de seu teatro para uma dupla de novatos: o diretor Flávio Rangel e o autor Gianfrancesco Guarnieri, ambos com 25 anos na estréia, em 1959 – iniciativa que depois abriu portas para todos, pois no ano seguinte a peça foi apresentada no festival do Théâtre des Nations, em Paris. As novelas Beto Rockfeller, transmitida pela TV Tupi entre 1968 e 1969, e Estúpido Cupido, realizada pela Rede Globo entre 1976 e 1977. Ainda o filme Areião, do diretor italiano Camilo Mastrocinque, rodado em 1952.

Eventos importantes, mas que para Maria já tiveram o seu tempo, pois ela lida com a memória de forma prática. Mesmo o marido Sandro Polloni virou begônias – as flores favoritas dele -, num dos corredores do hotel. Ele gostaria que fosse assim. Somente quando ele morreu, ela se instalou definitivamente ali, por mais que há 40 anos tivessem construído os primeiros cômodos do que viria a ser o Hotel Coxixo. Maria conversa com a senhora que insiste em lembrar da peça A Rosa Tatuada e lhe confessa um segredo: existe algo que nunca conquistou. Sempre achou muito bonitos os cavalos brancos, mas acredita que vai morrer sem nunca ter possuído um. “Ué, compra um”, sugere a senhora. “Deixa pra lá”, diz Maria, “acho que aqui não cabe”. Acompanhando o fim da tarde, ela se despede do grupo de hóspedes no portão. Realmente, depois de uma vida dedicada ao teatro brasileiro, é de uma rotina simples e confortável que Maria gosta.


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