Povo pantaneiro acorda antes do sol. Com as curicacas cantando na janela, às 5 horas da madrugada, Sandra Cavalcanti já está de pé, com os longos cabelos loiros trançados, cavalos arreados e equipe a postos. Gosta de ver o dia clarear no mato. Escolha própria, feita por prazer. Os oito cachorros onceiros da comitiva apuram o faro nas trilhas encharcadas. No caminho, começam a latir, “barruar”, como se diz no linguajar local. É o sinal de que “levantaram” a onça-pintada, isto é, acuaram o felino e o obrigaram a subir em uma árvore. Os pesquisadores se aproximam olhando para cima, pois sabem os riscos de ter um gato de mais de 120 quilos sobre suas cabeças. É preciso agilidade para preparar o dardo com anestésico e a pontaria.

Aos poucos, a onça perde as forças e cai desacordada. Sandra, então, colhe sangue, mede o tamanho das presas, das patas. Deitado no chão, o animal recebe um nome e um colar. Passa a desfilar pela maior planície alagável do planeta com um radiotransmissor e um GPS (aparelho de localização) presos ao pescoço. Em silêncio, a cientista espera que o bicho volte da anestesia, reconheça o novo adereço e siga seu rumo no verde da vegetação. Numa dessas caçadas, a onça saltou para o chão. Mesmo sedada, não se intimidou com os cachorros, que partiram para cima do felino. Sem pensar, Sandra reagiu. Teve medo que eles machucassem o animal já grogue por causa do remédio. Um a um, ela levantou os cães e jogou-os para os peões detrás das árvores. “Eu tirei todos os cachorros de perto dela, precisava defender o bicho. Depois, tomei uma bronca do caçador que me acompanhava”, relata.
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Na adrenalina das caçadas científicas, a pesquisadora já perdeu um cachorro para a onça, outro morreu “soleado”, cansado de andar sob o sol quente, segundo definição dos sul-matogrossenses. Muitos acumulam cicatrizes, “acidentes de trabalho”, provas das garras afiadas do rival. Ela mantém intacta a pele alva, talvez por isso afirme com convicção não temer a fera. “Tenho mais medo de ficar parada no semáforo em São Paulo. A onça eu sei que só vai me atacar se estiver acuada ou em cima de uma carcaça.” A intimidade com a Panthera onca, ou onça-pintada, como é popularmente conhecida, dura anos a fio. O animal ameaçado de extinção se exibe com freqüência para Sandra: são mais de 40 capturas e recapturas.

Enquanto a onça bebe água
Nascida em São Paulo, a amiga da onça é a mais velha de duas irmãs. O pai era pernambucano, com vocação para a aventura – teve barcos, jipes, ultraleves. A mãe, descendente de espanhóis. Foi dela que a menina da cidade grande herdou a paixão pelo mato. “Minha mãe dirigia um fusca laranja. Nos finais de semana colocava minha irmã, Silvia, e eu, no carro, e pegava a estrada. Íamos acampar em praias desertas”, lembra com saudades. Sandra sempre achou que, para morar no mato, era preciso conhecer plantas. E para conhecer plantas era preciso cursar agronomia.

Na faculdade, a adolescente estudava ovelhas, suínos e, no vai-e-vem das páginas dos livros, interessou-se pelos jacarés. Predisposta a abraçar o novo, fez estágio na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e deparou-se ali com o talento para a ciência. “Jacarés adultos eram capturados com laços. Os filhotes, com a mão, mas os médios eram difíceis de pegar. Bolar armadilhas especiais era um desafio num ambiente em que eu me sentia em casa.” E era para casa, o mato, que ela voltava quando sobrava tempo. Em uma viagem a Foz do Iguaçu, aos pés das cataratas, Sandra descobriu em um homem o próprio caminho. Era Peter Crawshaw, sujeito risonho que, apesar do nome e dos olhos azuis, é bem brasileiro. Em mais de 30 anos de estudos, Crawshaw tornou-se referência na conservação das onças no Brasil. A experiência dele encantou a estudante, que por lá ficou atuando como assistente.

Quando Peter viajava, Sandra entrava sozinha na floresta para checar as armadilhas. Provou estar à vontade com lobos-do-mato, sussuaranas, jaguatiricas e foi contratada. O chefe virou amigo e hoje confessa que reconheceu na ajudante a seriedade necessária para a pesquisa no Parque Nacional do Iguaçu. “Nunca me esqueço quando ela pegou o seu primeiro berne, na cabeça, e como conversava com ele, descrevendo o que sentia quando ele se mexia”, diverte-se Crawshaw. Sandra só deixou o parque e o amigo ao engatar um namoro com um médico “importado”. O pretendente enviou do estrangeiro uma passagem e um pedido de casamento. Ela seguiu, então, para os Estados Unidos. A temporada em terras americanas, no estado de Utah, rendeu-lhe um mestrado. A brasileira analisou ataques de coiotes ao rebanho de ovelhas, mas a onça não lhe saía da cabeça. “Por que a onça? É um predador fascinante, místico, forte. No passado, nós já fomos presas desses animais”, esclarece.

No rastro da onça
Anos depois, já de volta ao Brasil, com diploma e sem marido, Sandra sonhava pôr em prática aqui a teoria aprendida lá fora. Membro do Instituto Pró-Carnívoros, ONG que atua na conservação dos predadores, ela criou um projeto para preservação das pintadas no sul do Pantanal. Trabalharia com a espécie preferida e, de quebra, reuniria dados para o doutorado. Mas sua estréia no Pantanal não foi das melhores. No momento de conhecer os peões da fazenda sede da pesquisa, a exímia amazona perdeu a linha. “Minha égua pisou em um jacaré, assustou-se, empinou e eu caí na água. Fiquei lá, no chão, na frente de todos. Foi meu batismo”, relembra. Ali, Sandra deu de cara com as maiores barreiras para o projeto: o preconceito e o machismo. O Pantanal é terra de homens, e homens para lá de conservadores. Tão duro quanto capturar a onça era achar um peão disposto a receber ordens de uma mulher. “Eu ouvia eles dizerem ‘não vai dar certo essa mulher aqui’.”

Em 2000, as águas de março já haviam fechado a estação das cheias quando o primeiro animal foi capturado e passou a ter os passos monitorados pelos sinais do transmissor. Os dados sobre a vida, alimentação e reprodução revelavam os hábitos da espécie e engrossavam o volume de informações essenciais para a tese. Já com o estudo encaminhado ela voltou à universidade nos Estados Unidos. Foram meses provando aos acadêmicos americanos que era possível preservar a onça-pintada e manter a pecuária na mesma propriedade. No retorno ao Brasil e ao campo, veio o revés: Sandra procurou o felino, mas o bip indicava que ele estava morto. Pela localização do GPS a pesquisadora chegou ao colar, escondido sob a relva. Desesperada, saiu pelo mato e encontrou a cabeça do bicho enterrada em um canto qualquer dos 45 mil hectares da fazenda, ainda com a bala cravada sob a pele. Quem abateu a pintada não imaginava estar cutucando onça com vara curta – nesse caso, a própria Sandra.

Com ordem do dono das terras, o administrador reuniu os peões. Sandra controlou as lágrimas, as pernas bambas, o coração aflito e enfrentou os homens. “Na hora em que mostrei o colar e o crânio do animal eles viram que eu não estava de brincadeira. Entenderam que eu sabia andar nas matas, que era uma cientista séria.” Alguns empregados pediram de volta a confiança dela, outros se calaram frente à comprovação do crime. No fim, todos se deixaram seduzir pelos conhecimentos da “moça loira da onça”. Após a lida na roça, gostavam de ouvi-la explicar como funcionava o equipamento e como ela sabia onde estavam os bichos encoleirados. Viram que problemas com o manejo do gado, cobras ou doenças matam mais do que a fera no Pantanal.

O pulo da gata
A boiada se espalha pelos pastos encharcados há mais de dois séculos. A caça à onça-pintada é ainda mais antiga, mas, mesmo proibida por lei, nunca caiu em desuso pelos confins do Brasil. A desculpa de muitos fazendeiros para “desonçar” as terras é que o predador causa prejuízo ao se alimentar dos bois. Segundo Sandra, o conflito vai além da questão econômica. Para os pantaneiros, matar a espécie mais temida da floresta dá status. É prova da “macheza do cabra”. “Catequizar” os caçadores nos santos dogmas da conservação, transformando-os em capturadores, é outra bandeira que a cientista carrega no lombo do cavalo. Ela aproveita a experiência deles para dar de cara com o bicho. Em vez de matar, eles atiram o dardo com anestésico, miram a favor da ciência e contra a extinção. “Os caçadores caçam com ou sem a gente. Comigo no campo, eles têm a oportunidade de ver o outro lado”, justifica ela.

O Pantanal deu a Sandra paixões muito além da onça. Num lugar inóspito para mulheres, ela conheceu Antônio Porfírio, o Paraná, um peão que deixou a família aos 13 anos para cruzar o País. Foi atração à primeira vista. Por zelo e timidez, a cientista permitiu-se namorar escondido, como uma adolescente. Durante dois anos, a relação bucólica permaneceu secreta. “Eu achei que seria corriqueiro, que estava com o Tarzan e isso não daria em nada”, diverte-se. Ledo engano. O caso tornou-se sério e a saída foi assumir o romance. Sandra confessa que teve receio de como a família e os amigos receberiam a notícia de que a doutora respeitada no Brasil e no exterior estava com um peão. “No Natal, fomos a São Paulo. Eu avisei a todos que ele era uma pessoa simples. Mas para minha surpresa, ele comeu até com guardanapo no colo.”

Hoje, Sandra reconhece que aprende com o marido o que a academia não ensina: as lições da escola da vida. “Eu já namorei um alpinista que escalou o Everest, um doutor formado na Universidade de Cambrigde, mas me casei com um peão que é o meu maior companheiro”, derrete-se. E foi na companhia dele que ela embarcou pela última vez para Utah. Era tempo de defender o doutorado concluído na árdua labuta da roça. Desde então, orgulha-se de contar que, sem falar inglês, o legítimo cowboy das terras quentes do Pantanal adotou como ofício a construção de casas, na neve. E ainda assumiu jornada dupla quando a esposa, aos 38 anos, deu à luz o primeiro filho. Na hora do parto, a mãe durona, caçadora de onças, pediu arrego. “Ela me ligou chorando, com medo de não conseguir dividir-se entre as pintadas e o bebê”, diz a irmã Silvia.

Lambendo a cria
O menino nasceu forte em solo estrangeiro e, nessa condição, foi batizado para manter laços com a própria origem: Nick Cavalcanti Porfírio. Junto com os pais veio ao Brasil para começar vida nova. Sandra e Paraná agora iniciam o estudo para preservação das onças-pintadas em uma área de mais de 100 mil hectares, a 240 quilômetros de Cuiabá, pela Panthera, uma ONG americana. O filho, com dois anos incompletos, mal fala, mas conhece de perto tatus, quatis e, claro, onça. Sandra sonha ensinar às futuras gerações que é possível produzir sem destruir. Espera dar a Nick o mesmo que a mamãe onça dá aos filhotes: liberdade para traçar caminhos. “Quero que ele escolha a profissão que quiser, desde que a ame tanto quanto eu amo as onças-pintadas.”

O casal e seu rebento seguem unidos no prazer de admirar o equilíbrio entre a cheia e a seca no Pantanal na caminhonete adaptada com um buraco no teto para facilitar a escuta dos bichos. “Me pergunto se sou maluca de levar um bebê para um lugar a três horas da cidade mais próxima. Mas maluco é quem não vive o próprio sonho. Minha família diz que eu poderia ganhar mais dinheiro como consultora em São Paulo, mas eu vivo uma aventura diária.” Sandra adora o que faz e dá muito valor à liberdade de fazer só aquilo que gosta. Quer continuar com onças ao alcance dos olhos e ouvidos abertos para o canto das curicacas na janela. Sempre antes do amanhecer.


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