A graça da abertura

 

TIME DE CRAQUE - Chico Caruso, Angeli, Hélio de Almeida (autor do logotipo) e Toninho Mendes
TIME DE CRAQUE – Chico Caruso, Angeli, Hélio de Almeida (autor do logotipo) e Toninho Mendes

Não foi por mero acaso que, enquanto os brasileiros iam às ruas em 1984 para pedir eleições diretas para presidente da República, nascia, em São Paulo, a Circo Editorial, que se lançou no mercado com livros de quadrinhos de humor, produzidos por Paulo e Chico Caruso, Angeli, Laerte e Glauco. Esses livros tratavam exatamente do momento de transição política pelo qual passava o País. A ditadura chegava a seu 20o aniversário de forma agonizante, com inflação descontrolada e falta de apoio político e popular. E aqueles ainda jovens  artistas registravam, principalmente, a angústia e os anseios de gerações que tinham vivido sob repressão e censura. 

Em novembro de 1985, esses mesmos talentos tiveram seu papel crítico redimensionado com o lançamento do gibi bimestral Chiclete com Banana, também da Circo, que se tornaria uma espécie de radar das alegrias, temores e esperanças de viver em democracia. A publicação fez história: influenciou o comportamento dos jovens da época, compôs um retrato cultural de seu tempo e foi determinante para a renovação do humor televisivo, até então preso ao rádio, ao apontar caminhos para programas de vanguarda, como o TV Pirata.

E é essa história da indiscutível importância da Circo e de seu editor, o artista gráfico Toninho Mendes, que é contada agora em um luxuoso e merecido livro. Humor Paulistano – A Experiência da Circo Editorial 1984-1995, da SESI-SP Editora, mescla, em 432 páginas, uma criteriosa seleção das melhores tiras, histórias em quadrinhos e seções de humor de todas as revistas da editora – Circo, Piratas do Tietê, Geraldão, Níquel Náusea, etc. –, com ensaios de acadêmicos da USP, estudiosos de quadrinhos, que procuram identificar o seu papel na imprensa e no riso na década de 1980 (leia mais sobre humor a partir da página 37).

Com tiragens de até 150 mil exemplares por edição da Chiclete, Toninho Mendes publicou cerca de cinco mil páginas ao longo de 11 anos. O carro-chefe da pequena editora, produzido por Angeli, teve 24 edições e fez tanto sucesso que parte da coleção foi reimpressa ao mesmo tempo que a série original.

A santíssima trindade da Circo era formada por Angeli, Laerte e Glauco. Mas o correto mesmo seria chamá-los de Três Mosqueteiros, uma vez que, na verdade, eram quatro. No caso, o papel de D’Artagnan cabia a Toninho Mendes, que fazia à unha, literalmente, edição por edição, como se trabalhasse em uma carpintaria de móveis de luxo. E ele contava com colaboradores ilustres, como o designer Hélio de Almeida, autor da logomarca da Circo Editorial e também da Brasileiros.

Cada artista tinha a sua peculiaridade. Nesse contexto editorial, Angeli criou tipos inesquecíveis sem qualquer compromisso com o politicamente correto ou com o patrulhamento ideológico e cultural que havia desde o regime militar. Estava longe, claro, de ser um reacionário. Assim, nasceram o militante de esquerda em crise, o machista inveterado, o roqueiro drogado, o punk contestador, o casal neurótico, a secretária ninfomaníaca, a solitária deprimida que se refugiava no álcool e no sexo, alheia ao movimento feminista que teimava em controlar vidas como as dela.

A esses personagens ainda tão presentes no imaginário de humor do Brasil vieram somar os quadrinhos literários e poéticos de Laerte, que marcou época pela capacidade de elevar um gênero tão discriminado quanto os quadrinhos a um nível artístico de excelência como até então não se tinha visto no País. Poeta, escritor, grafiteiro, gênio, ele criou clássicos como A Insustentável Leveza do Ser, sobre um rapaz que, ao completar 18 anos, descobriu que nada à sua volta é real, inclusive a família. Seus pais e a irmã não passavam de atores contratados para representar esses papéis. Ao sair de casa, confuso, choca-se com um painel que parece a cidade onde vive. Alguém, então, grita para ele: “Não se esqueça, o mundo é falso”. Enquanto isso, todas as neuroses advindas da revolução sexual e os grilos que a psicanálise plantou eram levados às últimas consequências por Geraldão, criação imortal de Glauco, cartunista assassinado em 2010. Somava-se a todos esses talentos o genial Luiz Gê, com seus quadrinhos de vanguarda.

O livro traz tmbém rico acervo fotográfico e de imagens com  o clima de descontração que marcou os primeiros anos da editora. Inclui ainda fotonovelas em que os autores se misturavam com atores do teatro alternativo paulistano. Uma deliciosa viagem no tempo, mesmo para quem não viveu aquela época. 

Quadrinho de Angeli que está no livro "Humor Paulistano"
Quadrinho de Angeli que está no livro “Humor Paulistano”

 


Comentários

Uma resposta para “A graça da abertura”

  1. Se eram tão geniais, porque a Chiclete não continuou até hoje?
    Deixaram um rombo no mercado editorial.

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