“Acho que você precisa saber disso”, ouviu o delegado de Ribeirão Pires assim que atendeu o celular. Itamar Martins reconheceu a voz do delegado de plantão. Estranhou o tom aflito. Duas da madrugada, viu no relógio do criado-mudo. Associou o horário tardio ao sotaque da angústia e ficou em guarda. Um policial não interrompe o sono de outro, sobretudo na madrugada de um sábado, para tratar de miudezas. Nem se perturba por pouco. Alguma coisa grave devia ter acontecido. Acontecera: “Uns garis encontraram pedaços de dois corpos no caminhão do lixo”. Não dormiria direito no fim de semana, conformou-se, já mudando de roupa e ansioso por cruzar no limite da velocidade os 17,5 quilômetros que separam a casa onde mora em Santo André da delegacia de Ribeirão Pires. As frases seguintes preveniram que não se livraria de visitas da insônia em muitas outras madrugadas. “Os sacos foram recolhidos no fim da noite, numa rua da Vila Aurora.”(Itamar lembrou que aqueles meninos moravam lá.) “Parecem pedaços de crianças.” (São aqueles meninos, soprou-lhe o instinto aguçado no convívio com a face escura.)
O pressentimento por pouco não se tornou tangível nos 20 minutos em que o delegado viajou simultaneamente no espaço e no tempo. Enquanto os olhos vigiavam os caminhos que levam à cidade de 107 mil habitantes e a 35 quilômetros de São Paulo, a memória recuou 48 horas. Estacionada na quarta-feira, 3 de setembro, reconstituiu a noite em que o destino juntou na mesma sala o policial de 47 anos e os irmãos João Vitor dos Santos Rodrigues, 13, e Igor Giovani dos Santos Rodrigues, 12. Foi o primeiro encontro com aqueles meninos. Temia que fosse o último.
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Os garis o esperavam. “A sorte é que o caminhão estava cheio”, repetiu Eduardo dos Santos Andrade, 44 anos, que recolheu os sacos. “Se estivesse vazio, seria tudo triturado.” Jailton Evaristo, 23, ficou intrigado quando o mecanismo emperrou. “Fui ver o que era e encontrei um pé. Pensei que era de boneco.” Era de gente, confirmou a descoberta, em outros sacos, de pedaços de duas pernas e de um crânio. A coleta foi feita na entrada de uma vila na Rua Cândido Mota, mas não tinham anotado o endereço. Nem precisavam. Itamar foi para a sua sala, pegou numa gaveta a folha de papel e copiou o que havia rabiscado dois dias antes: Cândido Mota, 254, casa 6. Para lá aqueles meninos voltaram na quarta-feira. Para lá a intuição ordenara que seguisse tão logo vislumbrou, por trás de uma notícia transmitida por telefone, a anunciação do pesadelo.
A luz da televisão sumiu quando estava a sete metros da casa de cinco cômodos – dois quartos, sala, cozinha e banheiro – espremida no fundo da rua interna que separa as duas fileiras de construções tristonhas, cabisbaixas, sem viço nem cor. Ninguém respondeu às batidas. Empurrou a porta entreaberta e, às três da madrugada, entrou na casa incomodado por presságios. Saiu às quatro atormentado por certezas. Conjugadas, informavam que no dia 5 de setembro de 2008 dois irmãos foram assassinados, esquartejados e jogados no lixo por João Alexandre Rodrigues, 40, e Eliane Aparecida Antunes, 36. O pai e a madrasta.
Itamar pisou na escuridão quando Eliane saía de um quarto esfregando os olhos e ajeitando os cabelos, fingindo ter acabado de acordar. Não aparentou surpresa ao topar com aquele estranho, nem pareceu interessada em saber quem era. Não traiu sinais de desconforto quando ouviu a pergunta que sufocava o visitante noturno.
“Onde estão os meninos?”
“Foram para a escola depois do almoço. Ainda não voltaram.”
“Quatro da manhã e vocês não estão preocupados?”
“Isso acontece sempre. Meu marido está trabalhando.”
A aparência inofensiva recomendou a absolvição. A voz inconvincente e o raquitismo do script votaram pela condenação. O desempate foi determinado pela cacofonia de cheiros que vinham de todos os cômodos e do corredor externo. Querosene, candida, madeira queimada, foi rastreando o olfato do delegado. Usaram candida para limpar o chão. Usaram querosene para queimar alguma coisa, notou no corredor que liga a cozinha ao que seria um quintal se tivesse plantas, ou flores, ou terra. Espalhados pelo chão de cimento, lenha retorcida, cinzas e manchas de sangue sugeriram a imediata transferência da madrasta para a delegacia.
Ela reagiu à voz de prisão com a placidez de quem ouve um convite para jantar. Só aconselhou a polícia a gastar nas ruas, procurando os enteados, o tempo que estava perdendo com inocentes. Não tinha feito nada, os meninos é que fugiram. De novo. Ultimamente deram de voltar com olhos vidrados, falando enrolado como quem tomou muita droga. Fez o que pôde para assassinar também a memória dos esquartejados até cair, no fim da tarde, na armadilha improvisada.
Se a madrasta trata como coisa fantasiosa uma tragédia real protagonizada por filhos alheios, a mãe talvez trate como tragédia real uma coisa fantasiosa protagonizada pelo próprio filho, imaginou o delegado. Saiu da sala, voltou em menos de minutos e blefou: “O Tiago foi preso junto com o seu marido e acabou de confessar”. A entrada em cena do filho do primeiro casamento emudeceu-a. “Ele contou que vocês três mataram os meninos.” A segunda menção ao jovem de 21 anos devolveu-lhe a voz. A mulher que nunca foi vista chorando abrigava uma inconsolável mãe de preso. E a madrasta começou a falar.
Capturado na manhã de sábado, ao voltar do turno de 12 horas na empresa em São Bernardo do Campo que protegia como vigia noturno, João só se rendeu na tarde de quarta-feira. Seguia jurando que de nada sabia, quando entrou na sala Laura Ribeiro dos Santos Oliveira uma das duas irmãs por parte de mãe. Estava lá a convite da polícia, mas disso efetivamente não sabia o homem que simulava não saber de nada. “Lembre que a mãe sempre disse que não se deve fazer uma coisa errada”, sussurrou Laura. O irmão abraçou-a e chorou pela primeira vez. E o pai começou a falar.
“É uma frase velha, mas é verdade que um caso assim faz a gente morrer mais um pouco”, disse Itamar na primeira semana de outubro, um mês depois do que se transformou no primeiro dia do resto de algumas vidas. Por ter morrido um pouco, tornou-se mais atento aos viventes indefesos. Depois de 5 de setembro, por exemplo, passou a entrar no quarto do filho de 10 anos e da filha de 7 quando volta para casa. Aproxima-se sem ruído das camas e verifica se as crianças dormem em paz. A paz que dois irmãos perseguiram, sem alcançá-la, durante cinco anos. Hoje Itamar conhece a história dos meninos. Naquela quarta-feira, não poderia saber que estava participando do julgamento, em última instância, do derradeiro pedido de socorro enviado por dois feridos de guerra.
Vitor e Igor começaram a descobrir que só poderiam contar um com o outro às vésperas do Natal de 2003, quando a mãe deu o fora. Foi o segundo sumiço de Cláudia dos Santos. Tinha 14 quando fugiu da casa da mãe. Não lembra direito a razão da escapada. Tinha 27 quando fugiu de João Alexandre. Lembra perfeitamente o motivo: a rotina de violências instituída pelo marido genioso. Escapou para longe do perigo, levando as duas filhas do primeiro casamento porque “o João batia muito nas meninas, xingava de tudo quanto é nome porque não era pai delas”. Deixou Vitor e Igor para trás “porque eram tratados como príncipes pelo João”.
Depois da fuga, Cláudia só viu os filhos de vez em quando, sempre à distância. Talvez por isso, continuou enxergando um principado onde ganhava consistência o império da perversidade. “Pelo que vi, eram muito bem tratados”, enganou-se. Só soube em junho que os pequenos príncipes tiveram de asilar-se por mais de nove meses para sobreviver ao monarca desde sempre truculento. Ficou muito preocupada, disse num dos pouquíssimos programas de TV que dedicaram ao caso alguns minutos de sua preciosa atenção. O massacre de Ribeirão Pires não valeu manchete, mas está instalado no topo do ranking dos mais medonhos episódios da história da violência doméstica no Brasil.
Para tranqüilizar-se, e sobretudo para tranqüilizá-los, a mãe procurou os meninos para transmitir a grande notícia: o atual marido prometera que todos morariam juntos. Voltaria para buscá-los. Assim que pudesse, ressalvou. Não contou que nunca teve renda própria. Fingiu esquecer que seu companheiro, com mais dois filhos a sustentar, está desempregado. Assim que pudesse, repetiu ao despedir-se. Como não existem mais os que sonharam com o prometido, já não há promessas a cumprir.
Se é que um dia existiu, o pai amoroso foi exonerado pelo tirano cada vez mais brutal. João deu-se conta de que, com a mulher, perdera também a humilhada favorita. Antes que se afogasse no pote até aqui de cólera, despejou-o sobre os príncipes destronados. O casamento com Eliane obrigou João a concentrar-se na obtenção de gritos, uivos e gemidos por outros meios, e a tormenta amainou. Recrudesceu em 24 de abril de 2005, quando o pai descobriu que nem todos conseguiam ver uma boa idéia no abandono das crianças na casa antiga, agora sem mãe. A polícia, por exemplo, só viu um caso de polícia. A Justiça viu um caso para cadeia. E então vieram o primeiro boletim de ocorrência, o primeiro processo judicial e a primeira grande chance de interromper a jornada para dentro da noite. Foi desperdiçada, como todas as que viriam.
Entre o primeiro boletim de ocorrência e o terceiro, que a execução dos garotos tornou desnecessário, houve duas tréguas no duelo desigual. A primeira foi decretada em 2005 pelo tirano enfraquecido pela vocação beligerante de Eliane. João tirou uma folga de 45 dias, desfrutados em companhia dos filhos no quarto cedido pela irmã Magali dos Santos Melo. Os sobrinhos guardaram boas lembranças da temporada sem sobressaltos. A anfitriã amava os meninos, conhecia o temperamento e as preferências de cada um. Eram ambos extrovertidos, o caçula um pouco mais. Vitor sempre gostou de futebol, mas a bola agora disputava seu tempo com papéis coloridos. “Ele desenhava tudo o que via”, lembrou a voz claudicante de Magali no começo de outubro. “Passava horas na janela desenhando os carros estacionados na rua. Era uma perfeição.” O estrabismo acentuado o incomodava, mas recusava-se a usar os óculos de fundo de garrafa que camuflavam a disfunção visual. “Dizia que eram feios demais”, explicou a tia.
As memórias de Magali retratam duas crianças em nada diferentes de milhões de meninos já distanciados da pobreza assumida, mas longe das reservas da classe média genuína. Somados salários e benefícios, João ganhava R$ 1.300 por mês. No Brasil reinventado pela Fundação Getúlio Vargas, teria freqüentado o mundo maravilhoso da nova classe média, à disposição de famílias cuja renda ultrapasse a divisa dos R$ 1.064. Na Vila Aurora, o pequeno-burguês honorário sustentava a família com o que sobrava depois do pagamento do aluguel e de outras urgências. Sem direito a ambições materiais inexistentes em lojas na linha R$ 1,99, Vitor e Igor divertiam-se com desenhos animados na televisão e peladas no campinho perto da casa da tia.
“Eles se contentavam com pouco”, disse Magali. Um prato de strogonoff para Igor e batata-doce na sobremesa para Vitor tornavam mais entusiasmadas as intermináveis conversas entre os irmãos, e menos complicadas as tarefas estabelecidas pelos professores da escola estadual onde cursavam juntos o quinto ano. (Bom aluno, Vitor foi reprovado em 2007. Só tinha problemas fora da sala de aula.) Fisicamente, eram bastante parecidos. Os mesmos cabelos crespos que pentes não domam, a luminosidade nos olhos castanhos, a morenice de brasileiro sem ancestrais europeus, o corpo magro e saudável de quem nunca teve comida de sobra, mas também não soube o que é passar fome. “Quando alguém achava que eram gêmeos, eu dizia para prestarem atenção no cabelo.” Vitor gostava de cortá-los rente à cabeça ou raspá-los parcialmente. Igor sempre cultivou um pequeno topete. O detalhe ajudaria os legistas no trabalho de identificação dos meninos esquartejados.
São muito parecidos, Itamar também achou. Notou que Vitor era um pouco mais alto e mais loquaz. Desde a primeira pergunta, ficou claro que o caçula preferia deixar as respostas por conta do mais velho, limitando-se a endossá-las com movimentos verticais da cabeça. Era um menino tímido, equivocou-se. Depois ele saberia que Igor recorria a silêncios e laconismos para não escancarar um problema no aparelho vocal que o fazia trocar o r pelo l. Era apenas um sintoma do medo crônico. Em 2005, ele começou a embaralhar consoantes com mais freqüência e a urinar na cama. Em casa, era Igor quem traçava os planos da dupla. Com estranhos por perto, o outro virava porta-voz.
“A madrasta expulsou a gente”, falou pelos dois quando quiseram saber o que faziam longe de casa. Na noite de 3 de setembro, como fizera em 27 de agosto, Eliane deu-lhes algum dinheiro e ordenou que fossem morar com a mãe. O pai saíra de casa depois de detalhar a ação de despejo com a mulher, a quem sempre cumpria a execução de violências e iniqüidades planejadas em parceria. Os meninos não se sentiram mais infelizes. Longe dali, ao menos por algum tempo não estariam sob o domínio do medo. Mas ficaram de novo confusos com o segundo item do decreto. Ainda que desejassem, não conseguiriam encontrar a mãe. Desde que Cláudia fugiu do marido, eles nunca souberam exatamente onde morava.
Na expulsão do fim de agosto, não deu certo a idéia de asilar-se na casa de Magali. Foram bem recebidos, mas a tia achou prudente contar ao pai o que a madrasta fizera. Em menos de uma hora materializou-se no portão a figura mais temida. Negou aos berros a história do despejo e reclamou a posse dos enteados. Magali ligou para João, que deu razão a Eliane. A penúltima batalha terminou como todas as outras: os algozes venceram. “Não podia passar por cima da autoridade de um pai”, justificou-se 20 dias depois da tragédia, sempre remoendo as lembranças da noite em que viu os sobrinhos vivos pela última vez. “Tudo o que eu queria era voltar até aquela quarta-feira”, repetiu.
(“É claro que eu conhecia meu irmão”, reconheceu em outubro, à espera da permissão para visitar na cadeia o assassino dos sobrinhos. “Mas como eu iria imaginar que ele faria uma coisa dessas? Só pode ter sido um acesso de fúria.” Magali também conhecia a extensão da ira de Eliane. É menos complacente com a cunhada, mas lhe estende a mesma atenuante concedida a João. A polícia garante ter reunido evidências suficientes para provar que o crime foi premeditado. Nessa hipótese, a teoria da explosão de cólera é tão consistente quanto a linha de defesa apresentada pelos carrascos. Nada teria acontecido se o caçula não resolvesse provocar o pai num mau momento).
Não iriam reincidir no erro, combinaram depois de formalizada a expulsão do começo de setembro. À falta de portos seguros a perseguir, resolveram caminhar pela cidade. Decidiriam o que fazer antes que a manhã chegasse. Os guardas chegaram primeiro. Na sala do delegado, reapresentaram a reivindicação: não queriam voltar para casa. Ao confronto com o pai e a madrasta, preferiam a companhia dos pequenos sem-teto alojados no Abrigo Novo Rumo, onde viveram em sossego entre abril de 2007 e janeiro deste ano. Itamar achou sensato convocar Edna Aparecida Ribeiro Amante, funcionária do Conselho Tutelar que acompanha desde o começo o drama dos irmãos.
Edna entrou na delegacia em pouco mais de 10 minutos, ouviu por cinco minutos o que tinham a dizer as vítimas e não precisou de um minuto para emitir o parecer: Vitor e Igor ficariam bem na casa da Vila Aurora. Os meninos foram forçados a render-se. Perderam o combate que precederia a derrota definitiva. “Senti uma sensação de desconforto muito estranha quando os meninos partiram”, contou o delegado. Ele agora sabe que assim se sentem os que se despedem dos que irão morrer.
A viatura policial que os levou para o campo de extermínio, escoltados por Edna e um guarda municipal, estacionou diante da casa 6 no meio da madrugada. Eliane abriu a porta e fechou a cara. Irritou-se ao rever os enteados sem-teto. Mal conteve a cólera ao ouvir de Edna que deveria comparecer à delegacia na segunda-feira, junto com o marido, para a feitura de um boletim de ocorrência, o BO. Odiava BOs. Submeteu-se ao ritual duas vezes. Ao BO que registrou a tentativa de abandono, sobreveio em 14 de abril de 2007 o BO que resume as incontáveis violências físicas e psicológicas impostas aos meninos. Não haveria uma terceira, prometeu-se.
“Eles deveriam ser obrigados a aparecer na delegacia já no dia seguinte, foi um erro deixar o BO para segunda-feira”, continua a lamentar o delegado. Como Magali, ele tem sonhado com viagens no tempo. “Se pudesse voltar àquela noite, não permitiria que fossem devolvidos. Pena que eu ainda não conhecesse a história daqueles meninos.” Não são poucos os que tiveram a chance de salvar a vida de Vitor e Igor. Entre todos, o único a penitenciar-se é o único que soube tarde demais o que todos sabiam. E o que sabiam recomendava mantê-los distantes dos pastores da morte.
Quando João voltou para casa na manhã de quinta-feira, as linhas do rosto de Eliane desenhavam uma noite maldormida. As crianças sempre atrapalharam a vida do casal. Chegou a hora da solução final. O marido concordou. Os meninos foram proibidos de ir à escola. Ficar por lá já configurava um castigo de grosso calibre. Eles nem imaginam o que virá, animou-se a madrasta ocupada com a logística da ofensiva. Já tinham as armas necessárias. A faca, a foice e a pá. Faltava o detergente. Eliane foi comprar. Faltava querosene. Ela foi buscar. Dormiu pouco, mas acordou bem disposta na sexta-feira.
Por volta de uma da tarde, a ação começou. O pai chamou “para uma conversa” o filho caçula, que saiu da sala onde assistia a um programa de TV e foi para a cozinha. Vitor foi para o quarto. João enlaçou o pescoço de Igor e começou a esganá-lo. A madrasta entrou na cozinha, voltou com a faca, invadiu o quarto e golpeou Vitor no ventre. Os irmãos que viveram juntos todos os dias morreram juntos. Separados só pela morte, seriam separados em pedaços quando os assassinos perceberam que as chamas não completaram o serviço. Cobriram os rostos queimados com sacos de plásticos, esquartejaram os cadáveres estendidos no chão de cimento e enfiaram os despojos em sacos de lixo. Ela jogou na privada as vísceras que seriam encontradas, sete dias depois, na fossa do quintal. O pai de Vitor e Igor foi trabalhar dirigindo o carro do filho de Eliane. A mãe de Tiago foi espalhar por duas quadras os restos dos filhos de João.
Às dez da noite, ele telefonou para perguntar se tudo estava bem. Ela disse que sim.
DE OLHOS BEM FECHADOS | |
“Eu queria ter uma vida tranqüila”, começa o inventário dos sonhos da inocência esquartejada. As anotações na folha de papel foram feitas por Vitor, informam a letra miúda e hesitante, o pronome na primeira pessoa e a assinatura. Mas Igor decerto ajudou a montar a lista dos oito desejos, revelados numa das avaliações psicológicas a que são submetidos os meninos sem-teto do Abrigo Novo Rumo. Os irmãos tentaram por cinco anos, inutilmente, dormir em paz. Também queriam ter a mãe que não voltou, ver o avô que já morreu, ter a bicicleta que não cavalgaram. Mas provavelmente se dariam por satisfeitos com a materialização parcial do primeiro desejo. As avaliações periódicas são variações em torno do mesmo tema, fotografias de frente e de perfil do pesadelo recorrente. Num relatório, Igor lembra o dia em que a madrasta os obrigou a comer papel e chocolate com sal até vomitarem, para depois engolirem o que o estômago rejeitara. Noutro, Vitor revela a tortura reservada a quem urinasse na cama: atravessar a noite de pé e com as mãos encostadas numa parede da sala. Se Isabel Cardoso da Cunha Lopes Enei, juíza de Ribeirão Pires, decidiu tirar os meninos do abrigo e devolvê-los aos algozes sem ter lido os documentos, pecou por negligência. Se os consultou, pecou por inépcia. Em qualquer hipótese, deveria admitir o erro e pedir desculpas em vez de caçar justificativas. “Não havia indícios para provar a monstruosidade”, insiste Isabel. Sempre sobram, além de indícios, provas e evidências. Dois processos judiciais, somados às pastas do abrigo, |
avisam que duas crianças estão tentando escapar do confronto com o coração das trevas. Enquanto a juíza argumenta, o desembargador faz poesia em prosa. Antonio Carlos Malheiros, indicado pelo Tribunal de Justiça para acompanhar o caso, inspirou-se na menina de cinco anos atirada do sexto andar de um prédio em São Paulo para provar que erros acontecem, que faltam recursos ao Judiciário e que alguém continuará pagando por isso. Até crianças: “Vão voltar a acontecer as Isabellas. Meninos e meninas continuarão caindo das janelas do esquecimento”. Isabella não caiu. Foi jogada. Os dois irmãos só viveriam em prédios da classe média se o pai fosse porteiro. Sobretudo, os traços comuns aos dois crimes têm menos relevância que as diferenças. Em ambos, os acusados são o pai e a madrasta. Eles estão no mesmo presídio em Tremembé, elas estão na cadeia ao lado. Mas a garota morta em março sobreviveu na imprensa semanas a fio. Vitor e Igor nunca foram manchete, fizeram uma rápida escala nas páginas policiais e sumiram do noticiário. Na segunda semana de outubro, os restos dos irmãos continuavam no IML de Santo André. Como a lei proíbe o sepultamento de esquartejados incompletos, a polícia segue procurando os restos que faltam. Em casos assim, os simulacros de cadáveres ficam sob guarda do mesmo Estado que não soube livrá-los da morte. Sepultada há seis meses, Isabella será lembrada por muito tempo. Vitor e Igor foram esquecidos antes que alguém soubesse quando seriam enterrados. |
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