A moça à direita na foto pode ser a nova prefeita de nova york

Elas dizem sim – Christine Quinn (à direita na foto) durante seu casamento com a advogada Kim Catullo, em maio do ano passado, mas elas estão juntas desde 2001

Na cidade de Nova York, diz-se, até as baratas têm casca dura. Uma adaptação evolutiva que visa à sobrevivência a tantos pisões dados pelo restante dos habitantes. Inflige-se a planta do pé com gusto no inseto, mas ele continua correndo para cima do agressor: não morre. O mesmo se aplica aos cidadãos de uma das cidades mais duras do planeta. Especialmente quando se trata de políticos, outra espécie considerada peste particularmente ignóbil. Assim, não é de se estranhar que a vereadora Christine Quinn tire de letra as agressões que sofre. Há mais de duas décadas encarapitada na Câmara Municipal – onde hoje é a líder da casa –, ela demonstra a resistência de uma Leucophaea maderae. Tanto que, muito provavelmente, será eleita a próxima prefeita.

Caso se confirme essa predição, Quinn conseguirá um prodígio de pioneirismos. Será a primeira mulher a ocupar o cargo. Não para nisso: ela é gay. Casada com uma advogada (raça também odiada pelos vizinhos). E, em meio à campanha, virou casaca no basebol, já que era tida como torcedora dos Mets e passou agora a vibrar com os Yankees.

Nem queira imaginar os pisões que ela vem sofrendo. Em um perfil simpático feito pela revista New York, foi dito que a vereadora democrata tem voz de motorista de caminhão betoneira. Ilustrando a reportagem está a personagem envergando uma capa preta de gola alta, contrastando com sua cabeleira vermelha florescente. O jornal conservador The New York Post não perdeu tempo e bateu de primeira página: “Mayor Dracula”.

– “HA-HA-HAAAA!”, respondeu o alvo, com sua risada famosa notada em verso e prosa. “Eu vou ganhar essa coisa. HA-HA-HAAAA!”, disse à Brasileiros, um pouco depois de sua participação em um seminário com os candidatos democratas, promovido por uma aliança pró-gays no dia 21 de março último, no Baruch College.

Pelo que se viu na Rua 23, onde está ancorado o Baruch, trata-se de uma barbada. A fila para a entrada dava volta no quarteirão, saindo da Lexington Avenue e indo direto até a 3th Avenue. Ainda que a mesa fosse composta por quatro outros candidatos, aquela gente – aguentando no frio de um inverno que não quer ir embora – empunhava placas e broches com o nome Quinn. Não se via outra propaganda. Pregando aos convertidos estavam três drag queens – nenhuma medindo menos de 2 m de altura –, entregando panfletos da mesma candidata. Foi como um ensaio politizado do musical Priscila, a Rainha do Deserto.

A democrata líder da Câmara, lembre-se, é representante do distrito que engloba o West Greenwich Village, Chelsea, e Hell’s Kitchen. Os dois primeiros perfazem o epicentro copernicano da comunidade gay de Nova York. E Quinn esteve na vanguarda da defesa pelos direitos de homossexuais desde que, ainda na faculdade, aos 25 anos, resolveu sair do armário. Peça mobiliária essa que já não continha seu corpanzil, digno de um estivador irlandês.

Na faculdade, foi responsável por uma mudança fundamental no currículo. Quinn se inscreveu e passou em tantas matérias relativas à política, que o corpo diretor da instituição decidiu limitar os créditos que cada aluno poderia obter em cursos sobre o assunto. Mas, antes disso, o canudo de Christine já estava emoldurado. Ela partiu direto da teoria à praxis, alistando-se no escritório do House Justice Advocate – cargo público ligado à defesa de moradias populares. Quando o titular da pasta concorreu e foi eleito para a Assembleia Estadual, Quinn candidatou-se e ganhou o posto do ex-chefe.

“Aqueles que pensam que Quinn tira seus votos apenas dos constituintes gays estão completamente enganados. Ela fez um bom trabalho no escritório de moradias. Tem muita gente no Harlem, no Queens, em Brooklyn e outros condados, que é grata pelo que Christine fez por eles”, diz Albert Tyler, analista político e marqueteiro ligado ao partido democrata.

Mesmo assim, o exército de gays, lésbicas e transexuais que desfila em parada pró-Quinn a reconhece como líder desde os tempos que, largando o escritório de moradias, ela foi comandar por quatro anos um grupo antiviolência praticada contra homossexuais. “Vem desses constituintes, não só milhares de votos, mas também as doações para a campanha em níveis espantosos”, diz Peter Leonoff, analista de finanças eleitorais. E tanto é verdade que a candidata já arrecadou, há meses, os US$ 4,9 milhões que perfazem o teto legal para tesouro para campanha.

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Segundo o instituto de pesquisas Marist, Quinn amealha 43% das intenções de votos nas primárias democráticas e tem 37% nas gerais – 3% a menos do que o mínimo para não ter de enfrentar um segundo turno. Mas esses números talvez não expressem os sentimentos nova-iorquinos. Grande parte dos democratas não a perdoa pelo apoio dado ao prefeito Mike Bloomberg, quando o ex-democrata, ex-republicano e já independente empurrou goela abaixo da população uma lei que o permitiu concorrer ao terceiro mandato. Até então, os prefeitos só podiam ser reeleitos uma única vez. O suporte decisivo da líder da Câmara deu ao imperial alcaide mais quatro anos de trono.

“Quando eu penso que ela fez o jogo de Bloomberg nessa, e em outras questões, me dá vontade de vomitar”, diz o velho político democrata Allan Rosberg. “Não votarei em Quinn nem se Satã for seu oponente nas eleições”, completa.

Como Rosberg, inúmeros democratas aguerridos fincam o pé quando se trata em votar para Christine. Some-se a eles, o contingente nada desprezível de republicanos. Esses, segundo os analistas, não acham que Quinn está à altura de Bloomberg. O atual prefeito deu 12 anos de vida mansa para os mais abastados, em uma dieta de especulação imobiliária, cortes de tributos e desregulamentação em várias áreas de negócios. Tem sido um passeio no parque em dia de primavera para o 1% que detém mais de 90% das riquezas da cidade. E Quinn, aponta-se, foi ferramenta importante nessa obra.

A ONG Human Rights Project at Urban Justice Center – que monitora e advoga direitos humanos na metrópole – publica um boletim anual com notas para cada vereador. Levam em conta quesitos de direitos civis, culturais, políticos, econômicos e sociais. Os democratas têm média B. Os republicanos ficam com C. Quinn é uma das poucas que recebe um D, a pior média em seu partido. Apontam que em 2011, de 333 projetos de leis propostos na Câmara, a líder da casa só discordou do prefeito em minguados 5% nas votações. Ela é acusada de adiar e parar debates de propostas, restringir votações e inibir iniciativas de avanços em direitos humanos.

A harmonia entre o prefeito e a líder da Câmara é insuspeitada. Afinal, Quinn é pródiga em pisões. E os aplica envergando chanca (aquela chuteira tosca, de travas altas, usada até os anos 1960). Sua frase preferida para ameaças refere-se à castração do rival: “Vou cortar o saco dele!”. E essa emasculação não respeita gêneros: as mulheres também correm o risco de entrar na faca da vereadora. A tal voz de caminhoneira é ouvida em fúria desde Manhattan até os confins do Bronx. Tanto que sua equipe mandou revestir o escritório na Câmara com isolantes de som.

A medida não funcionou, já que mais da metade dos vereadores – de ambos os partidos – dizem ter ouvido os vitupérios de Quinn dirigidos particularmente a eles. Tanto que o jornal The New York Times, no último dia 26 de março, imprimiu longa reportagem sobre os destemperos da candidata. Recheiam o texto os episódios de vingança, em que até mesmo as verbas para centros de idosos e de crianças foram atingidos só porque estavam no distrito de colega antipatizado pela líder da casa.

Há, porém, episódios comoventes na vida de Christine. Ela, por exemplo, aos 16 anos perdeu a mãe – enterrada no dia de Natal. Sua mulher, Kim Catullo, também perdeu a mãe aos 17 anos no dia de Natal. As duas foram criadas em famílias católicas, com pais rígidos. O que dificultou muito a saída do armário. Era sonho de cada uma poder ter as respectivas mães acompanhando o casamento em maio de 2012. O casal está junto desde 2001.

Quem a viu vertendo lágrimas sinceras depois da devastação do furacão Sandy consegue imaginar que existe um coração batendo debaixo daquela couraça. “Eu procuro fazer com que as coisas funcionem. Não adianta nada bater cabeça com o prefeito e criar o mesmo tipo de impasse que se vê entre os partidos em Washington”, diz Quinn, justificando sua relação com Bloomberg. Pode ser mesmo uma boa estratégia, mas é bom lembrar que o atual prefeito ainda não deu seu apoio formal à líder da Câmara.

De todo modo, os nova-iorquinos parecem conformados com uma quase certa elevação de Quinn à Prefeitura. Afinal, estão habituados a lidar com cascas grossas, sejam elas de baratas ou vizinhos. Quem já ficou sob a batuta de um protofascista de gibi, como Rudy Giuliani, ou um Napoleão de opereta, como Mike Bloomberg, pode muito bem aturar o reinado de um Mussolini de musical da Broadway.


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