Afinal, o que é essa tal da aviação?

Foto: Hélio Campos Mello
Nas alturas – Ruy Flemming é piloto há 36 anos. Hoje, ele atua na aviação executiva voando de helicóptero. Na foto, Flemming nos anos 1990, quando participou, durante quatro anos, da Esquadrilha da Fumaça e via o mundo de “cabeça para baixo”. Foto: Hélio Campos Mello

 

Quando se trata da imprensa não especializada, a coisa vai longe. Já vi mencionarem um King Air, que tem dois motores, como monomotor. Talvez o tamanho possa ter traído o jornalista, uma vez que dificilmente algum modelo desse avião chegue a transportar dez ocupantes. O mesmo King Air, que é movido a hélices, já apareceu em matérias como “jatinho”. “Cair de bico” é outra atrocidade que pessoas ligadas à aviação não perdoam. Apesar de muitos aviadores se referirem às máquinas que voam por pássaro, ave, garça ou coisas do gênero, a parte dianteira da fuselagem não é bico, é nariz.

Vamos ser generalistas? Para muita gente, a aviação é dividida em aviões e teco-tecos. Claro que não concordo com essa definição. Quer ir mais longe? Embora muitos não entendam a diferença, helicópteros não têm hélices, têm rotores, normalmente um principal, o de cima, que gera sustentação e empuxo, e o menorzinho, o de cauda, que está lá para permitir controlabilidade lateral e equilíbrio das forças de ação e reação geradas pelo conjunto motores-rotor. Começa a complicar. Se quiser, explico depois. Imprensa, de forma geral, quer finalizar o artigo e vender a notícia, muitas vezes sem se preocupar no aprofundamento da matéria. Como disse, para muitos a aviação é ou comercial ou teco-teco.

Voar é uma invasão num ambiente em que não fomos programados para atuar. Caso contrário, teríamos asas no lugar de braços e o corpo coberto por penas. Voar é uma atribuição destinada à maioria das aves e alguns privilegiados insetos. O ser humano invadiu esse espaço que nunca foi dele de enxerido que é. Embora o sonho de voar seja muito mais antigo que a lenda de Ícaro, nós só conseguimos desvendar há pouco mais de um século os segredos de como nos harmonizar com as leis da física para, enfim, chegarmos à praticidade de encurtar distâncias pelo ar.

O mundo ficou muito menor e, se tiver paciência, num período de 20 a 24 horas você estará do outro lado do mundo. Uma dúzia de horas e o Velho Continente vai se revelar à sua frente. Menos que isso e vai desfrutar de tudo o que a fabulosa América do Norte pode oferecer a você. Se formos conversar sobre voos domésticos, a coisa fica ainda mais fácil para pegar uma praia paradisíaca no Nordeste, curtir o clima da fazenda ou visitar a sogra.

Só que isso tem um preço.

Não chegar. 

Pior que não chegar é ter sua passagem pela face da Terra simplesmente abreviada. 

A boa notícia é que acidentes que aconteceram no passado servem como estudo de casos para que outros não voltem a ocorrer, e a aviação passa a ser um dos meios de transporte mais seguros que temos disponíveis. A segurança dos nossos voos está lá, no Anexo 13 da Icao.

A Icao – Organização de Aviação Civil Internacional, em inglês – é uma parte da ONU que trata da aviação civil em todo o planeta e tem a sede em Montreal, no Canadá. Requisitos para fabricantes, formadores de pessoal, operadores e muitos outros estão todos previstos por gente que trabalha duro desde 1947. Se determinado país for um Estado-Contratante, hoje são 191, tem requisitos mínimos a cumprir.

No nosso caso, mais que signatário, o Brasil, por sua importância no que diz respeito ao que representa na aviação global, continua a fazer parte do seleto conjunto de 11 nações que fazem parte do Grupo I da Icao. Você até pode ficar aborrecido por receber só um punhado de amendoins ou uma barrinha de cereal no seu voo, mas a chance de chegar ao seu destino ou, muito melhor que isso, chegar vivo e inteiro é enorme. Segundo estudo no Reino Unido, a possibilidade de você morrer num acidente aéreo é de um em 345 mil voos. 

345 mil voos? 

Relaxa! 

Estatisticamente falando, sua passagem para o lado de lá vai acontecer por alguma outra causa, por mais que insista em viajar de avião. Eu voei um pouco de tudo e continuo por aqui. Piloto desde 1981 e o respeito pelas três dimensões do espaço continua o mesmo. Meu currículo inclui piloto de caça, de busca e salvamento, fui instrutor de voo, vi o mundo de cabeça para baixo nos quatro anos que voei na Esquadrilha da Fumaça. Voei os famigerados, e donos de fama injusta, Fokker-100 na TAM. Adorei o avião!

Hoje atuo na aviação executiva voando helicópteros. Eventualmente voo algum avião. O interessante é que cada aviador que atua no mercado tem uma história bem bacana que normalmente vem acompanhada de palavras como dedicação, desprendimento, foco, determinação e outras do gênero. Garanto a você que não está entre minhas opções, nem de meus colegas, deixar o mundo dos vivos num acidente aeronáutico.

Não.

Não mesmo. Temos motivos mais do que suficientes para ter em mente que voltar para casa, depois de um dia de trabalho, é sempre mais importante que cumprir um voo. Qualquer que seja ele. Acredite, a maioria absoluta dos aviadores pensa dessa forma. 

Feliz do passageiro que passa pelo aborrecimento de perder um compromisso porque o comandante não decolou ou, se decolou, julgou ser melhor pousar num aeroporto alternativo. 

Piloto bom não é o piloto que decola em qualquer condição meteorológica e chega sempre ao aeroporto que pretendia pousar. 

Piloto bom é piloto egoísta. Piloto bom tem que pensar nele mesmo antes de qualquer influência externa. 
Muito estranha essa afirmação, mas é assim mesmo. 

Explico.

Você trabalha em quê?

Não importa se você é administrador, jornalista, engenheiro, advogado, médico, fisioterapeuta, contador, político, oceanógrafo ou ator. Um erro seu pode custar muito para o seu cliente, paciente ou leitor. Pode até valer sua reputação ou pode ser que você tenha que arcar com custas de eventuais processos judiciários.

E o piloto?

Além de tudo o que foi mencionado, um erro de quem voa pode custar sua própria vida. 

Preço bem alto.

Melhor o piloto não errar, né?

A gente viu acidentes recentes na aviação geral e fico imaginando quais foram os argumentos mentais, ou armadilhas, que levaram o aviador a tomar as decisões que tomou. Se o aviador soubesse que seu voo terminaria em tragédia certamente nem sairia do chão. Mas qual seria o ponto onde devesse tomar uma decisão diferente da que tomou e impedir que o resultado fosse abreviar sua própria vida e a de todos que estavam com ele? Quais teriam sido os fatores que usou na equação? Talvez a imprensa não fique antenada nessas respostas e as conclusões não cheguem até você, mas quem faz da aviação seu meio de pagar suas contas sempre sabe o que os investigadores encontraram e quais são suas recomendações.

Talvez o resultado da análise de tudo o que foi dito não agrade ao passageiro que, mesmo sendo dono do pássaro, ave ou garça, fique desapontado por não chegar ao seu destino e tenha que adiar a reunião mais importante da sua vida. A reunião mais importante da vida de qualquer um somente será suficientemente importante se estiver vivo. Concorda?

Se hoje você está respirando e pode abraçar seus filhos e netos ao chegar de viagem, muito provavelmente está fazendo isso porque alguém escolheu um piloto “egoísta” para conduzir a aeronave que você voa. Você voltou para a sua casa porque tem muita gente muito boa imaginando o que pode acontecer de errado e consertando falhas antes de elas acontecerem.

Acredite! Há quem sempre preze pela segurança dos seus próprios voos. Se isso for realmente egoísmo, talvez essa seja a razão pela qual temos bons índices de segurança de voo. Ainda assim, se alguma coisa acontecer de muito errado, tenha certeza de que vai servir como argumento para evitar que volte a acontecer.
O passageiro é eventual, mas o piloto é constante. Confie nesse personagem.

Faça seu check-in, carimbe seu passaporte e curta sua próxima viagem.

Bom voo.


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