Chico Buarque é um dos poucos artistas brasileiros que atraem um interesse fora do comum por suas novas obras. Assim foi com Carioca, seu disco mais recente, lançado em 2006. Então, não é surpresa alguma que Leite derramado, romance recém-lançado do cantor, compositor e escritor carioca, tenha sido alvo de tanta expectativa e recebido de maneira calorosa pela crítica e pelo público.
No entanto, ao falarmos de Chico Buarque todo cuidado é pouco. Porque o homem – pode-se dizer “o mito” – muitas vezes torna-se maior que a obra – o criador superando a criação. E então é comum serem feitos elogios desmedidos a discos e livros que, sem o seu nome nos respectivos encartes e capas, certamente não teriam tanta repercussão na mídia.
O que, felizmente, não é o caso deste Leite derramado, seu quarto romance. Depois das experiências não tão bem-sucedidas do ponto de vista literário de Estorvo (que muitos leitores consideram ser mesmo um estorvo), Benjamim e Budapeste (um livro bastante irregular), finalmente Chico parece ter encontrado sua voz literária, ou seja, sua maneira própria e peculiar de escrever.
Leite derramado é narrado por um homem centenário em seu leito de hospital, que, na falta do que fazer a não ser esperar a morte chegar – como naquele verso de Raul Seixas -, dita suas memórias a quem estiver ao seu lado, na maioria das vezes uma enfermeira que supostamente faz o favor de registrá-las em um caderno. Em outras, sua filha, que até determinado ponto do romance ainda vai visitá-lo, para saber ou como está o pai, ou se ele, finalmente, morreu.
O velho Eulálio Montenegro d’Assumpção conta a trajetória de sua família “desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual” (nas palavras da crítica literária Leyla Perrone-Moisés, que assina a orelha do livro).
Família rica e importante, os d’Assumpção foram, com o passar dos anos – séculos -, perdendo fortuna e influência, culminando num presente desolador. Os únicos sobreviventes desse vertiginoso percurso rumo à degradação são justamente o velho Eulálio e sua filha Maria Eulália, uma mulher que provavelmente terá a esquizofrenia como destino.
As histórias são narradas sem qualquer ordem cronológica e muitas vezes algumas passagens são repetidas, sinais que revelam o estado debilitado do velho, que mais parece delirar em tudo o que fala – e não se pode descartar essa hipótese. Mas essa narrativa por vezes retalhada e labiríntica é, além de um espelho da situação em que Eulálio se encontra, também o reflexo de um escritor em plena forma. Leite derramado, sem dúvida, é o melhor romance de Chico. Não é uma obra-prima da nossa literatura. Mas tem lugar entre os melhores livros publicados nos últimos anos e é a obra que faltava para ele ser definitivamente incluído, de maneira inquestionável, na história da boa literatura brasileira.
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