A tentação é irresistível. Quando se tem nas mãos um livro de fotografias bonito e bem cuidado, vai-se direto apreciar as imagens ali reproduzidas. É o que se faz com Viagem à Liberdade – Em Busca da Alma Japonesa de um Bairro, de Marcio Scavone (Alice Publishing Editora). É um livro encantador. Mas não só pelas fotografias, como descobrirá o leitor atento. É ótimo também pelo texto, ou pelos textos que o abrem, o primeiro de Jorge Coli – crítico e historiador da arte e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) -, o segundo do próprio Marcio.

No livro, Marcio nos expõe dois de seus grandes talentos: a rara sensibilidade para olhar e registrar o mundo, o cotidiano, as pessoas comuns, e a elegância e a beleza de seu texto. Em “Um Depoimento”, texto que nos oferece como apresentação/explicação de seu livro, ele evoca seu primeiro olhar sobre o bairro paulistano da Liberdade, numa tarde de outono no início dos anos 1970. Fora à Liberdade na companhia de seu pai, cujo nome ele não nos revela no texto, mas apenas, e discretamente, na página em que relaciona as pessoas e instituições que participaram da edição do livro. Ao se lembrar da primeira vez que caminhou pelas ruas da Liberdade, Marcio diz que desconfiava dos objetivos de seu pai naquele dia. O pai, escritor, estaria à procura de uma personagem para um de seus romances. O romancista dera à personagem o nome de Shiroma – nome de família comum entre os japoneses da província de Okinawa, que também lêem essa palavra como Gusukuma, mas que, nesse caso, era uma espécie de anagrama de Hiroshima. O nome criado pelo pai, conta-nos Marcio, “carregava o estigma de seu destino trágico, pois era vítima do bombardeio de Hiroshima”.
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Nos créditos do livro, Marcio nos informa que “Shiroma é uma personagem criada por Rubens T. Scavone”. Aí está. Marcio Scavone é filho de Rubens Teixeira Scavone, que, aos conhecimentos das leis, transmitidos em concorridas aulas nas faculdades de direito onde lecionava, associava o talento de um romancista de merecido prestígio. Mais. Por ser filho de Rubens, Marcio é neto da escritora Maria de Lourdes Teixeira. Filho e neto de escritores, deve ter se acostumado a ler bons textos desde criança. Já se disse muitas vezes que só escreve bem quem lê bem, isto é, quem lê com freqüência textos de qualidade. Não é natural – atarimae, como diriam, talvez, alguns dos anônimos personagens com os quais conviveu durante os cem dias em que circulou pela Liberdade para colher o material que acaba de publicar -, portanto, que Marcio escreva tão bem?

Não, não é natural. Ler bem é condição necessária para escrever bem, mas não suficiente, diriam os matemáticos. É preciso, aos bons hábitos de leitura, juntar talento, inspiração, bom gosto, sensibilidade. O texto de Marcio tem isso. Mas Marcio, como já dito, nos apresenta um livro de fotografias. E é nas imagens oferecidas ao leitor que ele demonstra, com veemência – se é que se pode empregar essa palavra quando se fala de uma obra cuja característica essencial é a ternura do olhar do autor – ainda maior, essas qualidades.

Ele, como confessa, entra no bairro da Liberdade pelos fundos. Isso foi decisivo para assegurar ao livro uma de suas melhores características: a visão não convencional, inusitada muitas vezes. “A porta da frente é sempre a mais visitada e a que oferece menos surpresa.” Ótimo. Seria apenas mais um livro de imagens da Liberdade se Marcio lá chegasse por sua porta principal, o começo da Rua Galvão Bueno. Ali estaria o torii – portal de um santuário xintoísta – vermelho, belíssimo, marcante, imagem de impacto, importante, sem dúvida, mas conhecidíssima, que abre toda e qualquer publicação sobre o bairro mais japonês de São Paulo. O torii não está no livro de Marcio. “Ao contrário do que era de esperar eu queria surpresas; para o japonês a maior ameaça é o imprevisto, para o fotógrafo o inesperado é o momento-chave”, diz.

É o inesperado, é o olhar particularmente diferente, no ângulo, no enquadramento, na luz e, tecnicamente, no foco, que Marcio Scavone utiliza para nos apresentar o bairro da Liberdade. O resultado é como que uma coleção de recortes, de fragmentos das coisas, das pessoas, sem nexo formal ou identificável entre uma imagem e outra.

Essa fragmentação é levada ao extremo quando se chega à página 96. A numeração se repete na página seguinte e, daí em diante, começa – ou “descomeça” – outro livro, com as páginas em numeração decrescente, mas que é também, paradoxalmente, a continuação do mesmo livro, embora descontinuado numericamente. Explica-se. O livro tem dois começos. O convencional, no qual se vira a página da direita para a esquerda. Outro, na forma dos livros japoneses. São dois livros em um, com textos e legendas nos dois idiomas.

O que fica desse conjunto aparentemente desconexo, fragmentado, porém, é uma nova forma de compreender um bairro que muitos conhecem. As pessoas do bairro da Liberdade estão lá, enfrentando a chuva, andando pelas ruas, trabalhando, comprando, meditando, se divertindo. As coisas da Liberdade estão lá, a feia ponta do prédio com um cartaz bilíngüe, a fiação, as sombras, as luzes, as verduras, os peixes, as silhuetas dos edifícios, o arranjo floral. Mas Marcio Scavone nos mostra tudo por seus olhos de artista. O sashimi não é aquele prato bonito, colorido, de fatias de peixe cuidadosamente cortadas e arrumadas numa travessa decorada, mas os grandes pedaços que serão utilizados para sua preparação, com a imagem filtrada pelos vidros embaciados do refrigerador/vitrina.

Ah!, Marcio encontrou a Shiroma que Rubens tanto procurava. Foi num sábado, dia 31 de março de 2007, exatamente às 10h05. Ela usava uma saia longa, que esvoaçava um pouco ao vento ou ao movimento das pernas e dos quadris, e uma blusa regata preta. Como a saia, seus cabelos dourados à luz do sol esvoaçavam. Parecia jovem. Ela está na página 54 da numeração na versão japonesa. Mas, se algum de nós, mesmo Marcio, um dia a encontrar, não a identificará. Não sabemos como é seu rosto. Ela está de costas.


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