Aqui, histórias de longe

Alguns chegaram a São Paulo por vontade própria. Outros foram perseguidos e forçados a recomeçar em território estrangeiro. Ainda há herdeiros de narrativas familiares de expurgo e matança. Entre a calmaria do Planalto Paulista, na zona sul, e a efervescência do Brás, na região central, a cidade reúne muitas histórias de nacionalidades e etnias.

Os relatos são carregados de dores e alguma sorte. Da República Democrática do Congo, o professor Omana Ngandu, acossado pelo Exército de seu país, chegou à capital paulista, deixando a família. Há quase um ano, recebeu a pior das notícias: a morte violenta de sua primogênita.

O comerciante sírio Amer Masarani se sente melhor. Há quase 20 anos, montou seu negócio e conseguiu trazer a mãe e os irmãos quando sua cidade natal, Homs, foi destruída nos conflitos do país. Já Markarid Kalousdian, que nasceu em São Paulo, rememora a saga de familiares na fuga do massacre contra a população armênia.

Ao contrário de centenas de pessoas que deixaram o Haiti logo após o terremoto de 2010, Morallism Oralien trocou recentemente Porto Príncipe por São Paulo em busca de uma rotina mais lucrativa. Ainda não conseguiu. O rumo do boliviano Félix Choque é diferente. Depois de trabalhar numa oficina de costura, virou empresário, motivado pelo nascimento de seu terceiro filho, o único brasileiro.

Um drama africano

“Caiu todo mundo sobre mim. O sangue quente dos corpos me fez suar. Depois, um médico brasileiro me ajudou a vir para São Paulo”, Omana Ngandu, congolês  que dá aulas de francês
“Caiu todo mundo sobre mim. O sangue quente dos corpos me fez suar. Depois, um médico brasileiro me ajudou a vir para São Paulo”, Omana Ngandu, congolês que dá aulas de francês

Há dois anos, Omana Ngandu morava em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo. Tinha 47 anos e, pelas suas contas, seria preso pela trigésima vez. Ele conta que, numa noite de fevereiro de 2013, soldados do Exército se colocaram em frente à sua casa e um deles o chamou pelo nome. “Não tenho problema em morrer. Mas quero que meu nome seja lembrado por tudo o que fiz aqui”, disse à mulher, Hamadi, e seguiu com os policiais.

Passou dez horas em um comboio com outros 16 detidos, que partiu para Butembo, no norte, onde ficaram em um acampamento improvisado. Professor de francês e militante no combate à violência contra mulheres e crianças, Omana tinha, em sua cidade, a ONG Action Urgence d’Utilité Publique e por isso fora detido.

No terceiro dia confinado, Omana e todos os prisioneiros foram levados para um descampado e colocados em duas filas, um atrás do outro. Depois, foram metralhados. Todos morreram, menos Omana. “Caiu todo mundo sobre mim. O sangue quente dos corpos me fez suar. Um soldado apareceu e, surpreendentemente, me ofereceu ajuda.” Os dois foram para a fronteira com Uganda. Lá, Omana desmaiou. Estava exausto e com um ferimento na barriga. Acordou dois dias depois em Kampala, capital ugandesa. Um médico brasileiro, chamado Alessandro, ofereceu a Omana a viagem para São Paulo. Em junho de 2013, ele chegou à capital e foi ao Instituto de Reintegração do Refugiado, a Adus, onde dá aulas de francês até hoje.

No ano passado, ele criou outra ONG, a Langue Française Et La Culture Africaine Au Bresil, na Sé, centro. Foi também no final de 2014 que ele recebeu um telefonema que o abalou profundamente. Era sua mulher, Hamadi, dizendo que estava no Quênia e há tempos em busca do marido. Ela trazia uma péssima notícia. Emma, a mais velha dos seis filhos que teve com Omana, tinha sido violentada por soldados da RDC e seu corpo jogado na rua.

Sírio solidário

 “Tem dias que chego à sede da Oasis Solidário pensando em só  dar uma olhadinha.  Só que não consigo. vou ajudar enquanto eu puder”, Amer Masarani, sírio que mantém um  comércio na região central da cidade
“Tem dias que chego à sede da Oasis Solidário pensando em só dar uma olhadinha. Só que não consigo. vou ajudar enquanto eu puder”, Amer Masarani, sírio que mantém um comércio na região central da cidade

O calor de 38 graus não é suficiente para fazer o sírio Amer Masarani, de 44 anos, parar de descer e subir escadas, atendendo os estrangeiros que passam pela sede da Oasis Solidário, no Brás, região central, criada para ajudar pessoas que buscam recomeçar a vida no Brasil.

Natural de Homs, onde era comerciante, Amer chegou a São Paulo em 1996. Estava desiludido com a corrupção que enfrentava em seu país. Na capital paulista, começou como camelô nas ruas do Brás. Dois anos depois, conseguiu abrir a própria loja de jeans no Bom Retiro, também no centro. Batizou o lugar de Nadra, que, em árabe, significa raridade. O negócio progrediu.Mas sua vida desassossegou quando, em 2011, reviu sua cidade natal nos telejornais brasileiros. Naquele ano, milhares de pessoas se reuniram em Homs em manifestações de grandes proporções contra o regime do presidente Bashar al-Assad. Houve intensa repressão e a cidade ficou destruída – no início deste mês, Homs voltou a ser atacada, desta vez por bombardeios de Moscou. Por causa disso, Amer trouxe a mãe e os irmãos para São Paulo.

Sensibilizado com a guerra que se arrasta até hoje, Amer ajudou a criar, além da Oasis, uma página no Facebook para fazer contato com outras instituições de ajuda a sírios. “Vou ajudar enquanto puder.”

Sonho Boliviano

“Havia poucos bolivianos em  São Paulo, o dólar valia a mesma coisa que o real. só pensava em juntar dinheiro para um dia voltar”, Félix Choque, boliviano, virou  empresário na capital paulista
“Havia poucos bolivianos em São Paulo, o dólar valia a mesma coisa que o real. só pensava em juntar dinheiro para um dia voltar”, Félix Choque, boliviano, virou empresário na capital paulista

O sonho juvenil de Félix Choque, hoje com 49 anos, era entrar no Exército boliviano. O caminho parecia meio complexo: ele tinha que entrar na escola militar de La Paz, se submeter a testes físico e psicológico e ter US$ 2 mil para comprar uniforme, botas e quepe. Os exames, tinha certeza de que passaria porque era apontado pelos treinadores do Club Bolívar, time de futebol da Bolívia, como zagueiro promissor e inteligente. O problema era o dinheiro. “Meu pai não tinha e não insisti. Mas o pior foi quando ele resolveu me tirar do Bolívar. Eu tinha 12 anos.”

Em 2004, aos 24 anos, Félix já estava cansado da vida que levava em El Alto, na região metropolitana de La Paz, a cidade mais importante do país, e resolveu emigrar com a mulher e os dois filhos pequenos – 7 e 4 anos – para São Paulo. “O dólar valia quase a mesma coisa que o real, e eu só pensava em trabalhar e juntar dinheiro para voltar um dia para a Bolívia.” Até 2012, foi o que ele fez. Trabalhava 16 horas por dia em uma oficina de costura no Bom Retiro, na região central, por iniciativa própria. No meio do caminho, sua mulher engravidou mais uma vez. A chegada do terceiro filho, o único brasileiro, acabou mudando a dinâmica da família. Félix não queria mais viver só para o trabalho.

Com a economia que fez na oficina, ele se arriscou de novo ao abrir uma banca de pães na rua Coimbra, no Brás. Hoje, aos domingos, ele, que ainda conserva o sotaque castelhano, joga bola com o filho mais velho e sonha com o dia em que o menino, hoje com 17 anos, seja aceito no Exército boliviano.

De origem armênia

“Meus pais contam que foram bem recebidos quando chegaram ao Brasil. Hoje, fico emocionada vendo na TV as notícias sobre os sírios”, Markarid Kalousdian, brasileira de ascendência armênia, aposentada
“Meus pais contam que foram bem recebidos quando chegaram ao Brasil. Hoje, fico emocionada vendo na TV as notícias sobre os sírios”, Markarid Kalousdian, brasileira de ascendência armênia, aposentada

Há 100 anos, o Império Otomano deportou à força e matou centenas de milhares de pessoas de origem armênia, durante o governo dos chamados Jovens Turcos. A perseguição causou uma diáspora em direção às Américas. No início dos anos 1920, o casal Sarkis e Baizar Pamboukian saiu de Yerevan, a capital e a maior cidade da Armênia, para percorrer uma trajetória de quase uma década até se estabilizar em São Paulo. Quem conta a história é Markarid Kalousdian, de 80 anos, filha dos Pamboukian, que nasceu na capital paulistana. “Minha mãe contava que minha avó, que morreu por causa da neve, dizia para os filhos não olharem para trás. Naquela época, muitas pessoas não conseguiram se salvar daquele estado de horror.”

Em São Paulo, a família se alojou numa rua no centro. Sarkis, que era sapateiro, logo conseguiu abrir uma oficina própria na região. Para manter vivas as tradições, ele fez questão de falar o idioma armênio dentro de casa. Markarid cresceu, se casou com um brasileiro de origem armênia, teve filhos e netos. Agora ela se comove com os refugiados sírios. “Meus pais contam que foram bem recebidos quando chegaram ao Brasil. Hoje, fico emocionada vendo na TV as notícias sobre os sírios. Imagina se tivéssemos sido tratados assim? Não sei o que teria sido de nós.”

O haitiano arrependido

“Se alguém colocar um avião na rua  e falar que está indo para Porto Príncipe, sou o primeiro  a embarcar.  Mas estou preso no Brasil, talvez para sempre”, Morallism Oralien, que era vendedor de frangos em Porto Príncipe, está desempregado
“Se alguém colocar um avião na rua e falar que está indo para Porto Príncipe, sou o primeiro a embarcar. Mas estou preso no Brasil, talvez para sempre”, Morallism Oralien, que era vendedor de frangos em Porto Príncipe, está desempregado

Diferentemente de compatriotas que deixaram o Haiti depois do terremoto de 2010, provocando a morte de mais de 300 mil pessoas e deixando outras 300 mil na condição de deslocados internos, Morallism Oralien, de 25 anos, não pensava em deixar seu país. Muito menos, o curso de Contabilidade, que tinha acabado de começar, na Université Saint Gérard, na capital Porto Príncipe. No mais, ele levava uma vida relativamente estável como comerciante de frangos.

Mas foi convencido por amigos de que teria mais sucesso financeiro no Brasil. Em abril deste ano, depois de pagar US$ 3 mil a um agenciador para trazê-lo a São Paulo, deixou os pais e o irmão caçula para fazer uma viagem cansativa, que durou dias entre deslocamentos aéreos e terrestres. Há quase seis meses na capital, Morallism está arrependido. “Se alguém colocar um avião aí nessa rua agora e falar que ele está indo para Porto Príncipe, sou o primeiro a embarcar.” Desempregado, vai todos os dias à Igreja Nossa Senhora da Paz, no centro, que ajuda estrangeiros a se organizarem na cidade. Morallism quer trabalhar como pintor, pedreiro ou dando aulas de francês e espanhol. Sonha em juntar R$ 5 mil para voltar ao Haiti. Mas está difícil. “Estou preso no Brasil, talvez para sempre.”


Comentários

Uma resposta para “Aqui, histórias de longe”

  1. Avatar de Diego Silva
    Diego Silva

    Esse é o resultado da política migratória irresponsável dos petistas. Esse pobre haitiano, como muitos de seus compatriotas, foram enganados pelas falsas propagandas de prosperidade no Brasil.

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