As águas de Márcia

Há algum tempo venho acompanhando a criação de Márcia Milhazes frente à sua pequena companhia de dança e confesso que a cada nova estréia ou, até mesmo, a cada vez que eu revejo algum de seus trabalhos, eu tremo nas bases diante de uma dramaturgia das mais complexas e instigantes. Em 2007, a Márcia Milhazes Companhia de Dança apresentou Tempo de Verão, que recebeu vários prêmios da crítica especializada. Em agosto de 2008, estreou Meu Prazer e já se apresentou em São Paulo e Rio de Janeiro. Agora em janeiro de 2009 ela inicia uma turnê nacional, começando por São José dos Campos (SP). Pena, mas as pautas oferecidas para a dança nos teatros ainda são escassas e muito fragmentadas. A nova dança produzida pelo pensamento, pela emoção e pelo movimento tem me interessado cada vez mais. Muitas vezes mais do que o teatro da palavra. Talvez pela utilização excessiva desses códigos. As criações de Márcia Milhazes Companhia de Dança me fazem olhar com olhos mais atentos essa dramaturgia que, apesar de não utilizar palavras, grita em alto e bom som todas as emoções que nós mortais vivemos, sonhando que somos imortais. Vale ressaltar que essas afirmações não são válidas para tudo o que tem se produzido pela dança contemporânea.

Foto: Luis Branco
Movimento: A bailarina Fernanda Reis em sua interpretação cênica

A alegria e a dor, em Meu Prazer, ocupam o mesmo espaço cênico e através de movimentos minuciosamente criados por Márcia Milhazes, e executados com perfeição pelos intérpretes, nos fazem viajar por águas mansas e turbulentas que dominam a maior parte de nossa estrutura – dizem que nossa composição chega a mais de 60% de água. E, em alguns casos, ao ver Meu Prazer, essas águas transbordam e escorrem pelo canal lacrimal. Pura emoção. De encontros e desencontros, de humano e desumano, a dramaturgia de Meu Prazer nos conta um pouco desse nosso cotidiano lidando com nosso prazer e sentimentos. As escolhas dos movimentos nos aproximam mais dos nossos erros e acertos em relação ao outro e a nós mesmos. Al Crisppinn, Ana Amélia Vianna, Felipe Padilha e Fernanda Reis são parceiros de Márcia Milhazes em Meu Prazer e não economizam, mesmo na mais profunda crise. Eles desenham com perfeição esse universo de corpos que se resvalam delicadamente, na maioria das vezes. O jardim suspenso criado por Beatriz Milhazes para Meu Prazer repete o acerto de Tempo de Verão. As cores de seus cenários-objetos nos ajudam a flutuar com os movimentos criados pela coreógrafa. Ambas, Márcia e Beatriz, utilizam o mais elaborado dos processos de criação, que resultam extremamente simples. A trilha sonora, também assinada por Márcia Milhazes, envolve a cena e tem a função de pele para esses corpos. Fala explicitamente de amor, com sotaque bem brasileiro. Valsas, solos de piano e acordeão e a voz de Francisco Alves em “Misterioso Amor”.

Se Márcia Milhazes prefere ficar “trancada para criar”, como ela mesma afirma, ela utiliza todas as janelas do corpo para gritar a sua dramaturgia emocionada e emocionante, deixando claro que o que está sendo desvendado é o humano ou o sobre-humano.
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