Não havia discordância. Não se consegue um padeiro casado para trabalhar numa ilha com 150 soldados. Mas o coronel Veloso insistiu; ele podia.

O anúncio buscava um casal, ele padeiro e ela para serviços de limpeza. Oferecia bom salário, casa com dois cômodos e dois anos de contrato. Apareciam interessados, mas logo na entrevista, quando falavam em 150 soldados, o interesse evanescia. Sobretudo quando esclareciam que era uma companhia formada por três pelotões de 50 soldados cada. O coronel pedia que não usassem a palavra pelotão, que assusta mais que soldado, mas o pessoal esquecia. Foram dois meses seguidos de anúncio no jornal, até que apareceu o Miranda e sua mulher. Surpreendentemente seguro e resoluto. Não pestanejou, o acerto foi rápido e logo foram embarcados. De mala e cuia.

Nem bem chegaram e os pães começaram a sair daquele grande forno, deixado para trás pelos americanos. Na ilha, a vida mudou. Nem tanto pelos pães, que eram bons, mas pela mulher do Miranda, um mulherão. Trabalhava pelos galpões, fazia faxina, arrumava os alojamentos e tudo o mais. Às vezes até passeava na praia. Sorridente no vento. Um espetáculo.

Não passou nem uma semana e a Elenice já estava dando na ilha. Em segredo jurado, claro. Imagine, mulher casada. Com o marido ali mesmo na ilha, sem saída. Sem escape. Um perigo.

Mas não foi só pra um. Foi pra muitos. E pra cada um, dengosa, pedia um dinheirinho para juntar e trazer as filhas que moravam com uma tia. Uma judiaria. Meiga, dizia que o marido era um mão-de-vaca e, além disso, muito bravo. Ai se o Miranda soubesse de todas as coisas. Matava mesmo, ela dizia baixinho. Por muito menos, ele já tinha puxado faca, ela dizia olhando pros lados. Mesmo no escuro.

Essa conversa naturalmente aumentava o desejo. Ela mesma ficava mais ardente. Mais valiosa também. Claro.

E assim ela foi levando a vida na ilha. Generosa e valente, atendia os três pelotões. Não se metia com oficial. Tinha tino pra negócio, não fazia bobagem. Mas os soldados não gostavam somente das coisas da Elenice, gostavam dela mesma, a pessoa, e de dar uma ajudinha também. Era legal a Elenice. Sentiam também um enorme prazer em pregar os cornos no Miranda que, não obstante ter trazido o bom pão e o sexo para a ilha , era odiado por todos. Afinal, o desgraçado era o dono da Elenice.

Claro que, com o tempo, uns sabiam de outros. Ciúmes, ilusões e fantasias arrebentavam pra todo lado. Mas aguentavam todos firmes, calados. Não era ética, não. Era só prática mesmo. Medo. A coisa não podia estourar. Às vezes brotava a tensão. Saía uma falazinha maldosa, um boatozinho venenoso, mas o próprio Miranda resolvia tudo. Bobagem, o pessoal fala mesmo de mulher, ainda mais numa ilha cheia de soldado, dizia o padeiro. Com essa bênção, a paz voltava pra ilha. Curioso poder, o do Miranda.

Ao fim dos exatos dois anos o dadivoso casal se foi e a ilha ficou triste. Muito triste. Ilha mesmo.

Não deu muito tempo e, numa sexta feira, chega a notícia de que os dois não estavam mais juntos. Contaram que o Miranda tinha aberto um boteco e ela tinha montado um salão de beleza, longe dele. Garantiram que ela estava feliz e só.

Naquele dia muitos sonharam. Como jamais se sonhou naquela ilha.

O que ninguém sabia é que os dois nunca foram casados. O Miranda padeiro era empreendedor, mas descapitalizado. Homem magro, de libido flamejante, jamais iria sozinho pra uma ilha. A Elenice, esta, era uma velha conhecida da zona. Miranda pensou bem e propôs negócio. Tudo muito sensato, tudo muito objetivo, tratado no fio do bigode. Ele dava casa e comida pra ela, arrumava muitos clientes e rachavam o dinheiro. Por outro lado, ela dava pra ele, cozinhava, lavava e passava. Bom pros dois.

Na verdade, bom pra todo mundo. Até pra mim que, menino de tudo, aprendi muito com a Elenice.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil pela Escola Politécnica da USP, PhD pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli – USP, na área de Informações Espaciais. Dedica-se também à literatura


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