Ser ou não ser gay não é, normalmente, uma questão muito fácil de ser compreendida e vivida. Invejo meus amigos que já nasceram sabendo quem e como eram, pedindo pulseirinha de arco-íris ou piscando para a enfermeira na maternidade. Existem homossexuais assim, eu os conheço, mas são raros. Mais comuns, para mim, sempre foram as histórias de tormento pessoal, gente que pensou no assunto sentado no parapeito da janela, e também aqueles que passaram pela vida sem jamais viver seu desejo verdadeiro. O maior palavrão que se pode dirigir a um de nós ainda é “enrustido”, como se todos tivessem a obrigação de expor sua intimidade para todos. Durante boa parte de minha vida, eu vivi como um heterossexual, eventualmente atormentado por medos e dúvidas, que eram tão profundos e sinistros, que não me pareciam ser realidade. Gays eram os outros, Clodovil, Denner (dizem que esse nem era), as bichas dos bailes de fantasia de Carnaval, os travestis, etc. Não tenho nenhum preconceito em relação a nenhum deles, ressalvando a conduta curiosamente homofóbica daquele que chegou a ser um dos deputados federais mais votados do Brasil, mas eu não me via como eles. O desejo sexual veio com a puberdade, em uma mistura de erotismos, na qual era quase impossível distinguir a homo ou heterossexualidade. Eu era oficialmente hétero, e pronto!

Foi quando tomei o primeiro susto de minha vida, vendo o filme Querelle, obra-prima de Jean Genet e de Fassbinder, no qual assisti à primeira cena de sexo homossexual de minha vida e senti minha testosterona ferver por vários dias. Como podia? Um fato isolado, obviamente, fenômeno momentâneo, coisa de adolescente, eu não devia me preocupar. Aquilo foi para outros escaninhos da minha mente, e as revistas de mulher pelada, que ainda engatinhavam no Brasil, cumpriam sua função.

Casei-me com uma mulher linda, amei-a muito, e fui feliz durante seis anos. Mas acabou, separamo-nos amigavelmente, somos bons amigos. Foi quando, durante uma terapia bem-feita, a homossexualidade explodiu, se impôs, era irresistível, irreversível, não tinha fuga. A primeira grande barreira sempre é a autoaceitação. Se você mesmo se rejeita, viverá o inferno todos os dias de sua vida. Encarar o espelho será difícil, poderá até mesmo enganar aos outros, mas nunca enganar a si mesmo, e o resultado será a infelicidade, o preço mais alto que qualquer pessoa pode pagar. Para mim, ultrapassada essa barreira, parecia que uma tonelada havia sido retirada de meus ombros, eu poderia ser homossexual, e isso não significaria nada senão continuar a ser o mesmo homem que sempre fui, mas podendo me relacionar, sexual e afetivamente, com outros homens.

Quer dizer, fugir era possível, aceitei um trabalho em Nova York, ficava por lá boa parte do tempo. Lá, sexo, álcool e música techno eram outra coisa, mamãe não estava olhando, tudo era mais fácil. Expor-me à família ainda era impensável. Até que o destino, mais uma vez, corrigiu meus caminhos: acabou-se o trabalho, tive de voltar para o Brasil.

Viver fora do armário significa, fundamentalmente, aceitar-se, e se expor. Ser aceito pelos outros é algo que não está ao nosso alcance, não podemos obrigá-los a nada. O que os outros vão pensar, como vão reagir? Nunca mais vão falar com você? Em nada disso você pode influir. Mas se você se aceita, ao menos não está mais sozinho, e acabará encontrando o seu lugar no mundo. As chances de ser feliz são infinitamente maiores. Encarar minha família, me expondo a eles como homossexual, era uma imposição.

Como fazer? Reunir a família e fazer uma declaração bombástica, com direito a Rivotril para todos? Eu não teria coragem nunca! Decidi pela tática do don’t tell, don’t deny (não conte, não negue)! Busquei o meio gay, circulei com meus primeiros namorados, apresentei-os para amigos da família e… Nada! Nem uma pergunta. Meus irmãos não davam sinal algum de saber sobre minha vida. Elegante e discreta, minha família respeitava meu espaço e minha vida, e eu parecia continuar a viver em um armário. De vidro, mas, ainda, um armário.

Foi quando a sorte finalmente me sorriu! Lá ia eu me jogar na balada, uniformizado: camiseta bem justa, calça de cós baixo, tênis prateado. Entrei na casa noturna procurando meu parceiro, quando vi, no bar, Maria, minha sobrinha, e o marido. Eu tinha alguns segundos para fugir. O medo bateu, o coração foi parar na garganta, os joelhos tremeram, mas fui direto a eles. Cumprimentos fofos, eles já estavam indo embora, me deixaram sozinho no balcão. Então, minha sobrinha me mandou um torpedo pelo celular: “Eu gosto de você, assim como você é”.

Fui ao encontro dela, abraço emocionado, o Muro de Berlim caíra, eu tremia inteiro! De cara, ela já disse que toda a família sabia, mas que jamais me colocaria em desconforto abordando a questão. No dia seguinte, falei com todos os meus irmãos, e só tive apoio, carinho, afeto. Depois deles, meus pais! Minha mãe nem desconfiava, ninguém preparara o terreno, o susto foi enorme. Mas passou rápido, e ela disse sabiamente: “Meu filho, você é feliz de ser dessa geração, na minha isso seria impensável”. Verdade verdadeiríssima. Com meu pai falei em plena festa de Natal, depois de dois uísques, mas recebi o mesmo carinho. Sei muito bem que nem todas as famílias são assim, mas a minha foi, posso ser muito mais feliz hoje em dia, com eles ao meu redor.

É fácil sair do armário? Estejam certos que não! Assumir-se publicamente como sendo de uma minoria, objeto de piadas sórdidas, mesmo correndo o risco de ostracismo social e rejeição familiar isso não é fácil para ninguém! Para a garotada atual, a coisa está mudando. Internet, milhões de pessoas na Parada Gay, novela das oito cheia de gays. O Segredo de Brokeback Mountain, com um dos melhores beijos da história do cinema, passou raspando pelo Oscar! E ganhamos do Supremo Tribunal Federal uma das mais maravilhosas manifestações de proteção e respeito jamais vistas na história. Nosso status foi definitivamente consagrado como politicamente correto. Benza Deus!


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