Eu estava em Ushuaia, na Terra do Fogo, três mil quilômetros ao sul de Buenos Aires. Meu dinheiro havia acabado e eu tinha de voltar de carona, não havia saída. Com essa certeza fui para a beira da estrada onde fiquei três geladas horas até que um velho Citröen Deux Chevaux parou para mim. Ele perguntou qual era meu destino e eu disse Buenos Aires, com a tranquilidade dos meus 20 anos. Ele disse suba e assim passamos 11 dias entre asfalto, frio, oficinas, hosterías e esperas. Foi assim, ao acaso, que começou nossa amizade, que já vai pra mais de 20 anos. Ele ia assumir um bar que comprara no bairro de San Telmo. Tinha lá suas idéias.

Tudo isso para explicar por que anos mais tarde, na noite de 18 de agosto de 2006, eu ouvia o bandoneon de Osvaldo Barrionuevo, sentado à mesa com Don Julio, no 20º aniversário de seu Bar Sur, em Buenos Aires. A casa estava cheia e, de última hora, acomodaram ao nosso lado um argentino acompanhado de uma brasileira. Ele era um tipo magro e grisalho, do cavanhaque elegante. Ela era uma morena, viçosa do sorriso insinuante. No intervalo entre as entradas, enquanto Don Julio fazia as vezes de anfitrião, ouvi a conversa deles ao meu lado.

Ele começou por explicar o nome do bar. Sul, para a Argentina, era tão emblemático como o trópico era para o Brasil. Ao trópico se associa o calor, o sol e a música alegre. Ao sul, o frio, os dias longos escuros e a música triste. Escuche ese tango que recién toco, disse ele, vivir con el alma aferrada a un dulce recuerdo que lloro otra vez. Comparasse com a bossa nova que fala do pato que vinha cantando alegremente. Que pato canta alegremente? Só um pato tropical. No le parece? Se para o brasileiro nadar é um refrigério, nadar na Patagônia é tão possível quanto voar, exagerou um pouco o argentino. E assim ele prosseguiu a análise, que me parecia bastante boa. Sobretudo como cantada de intervalo de show de tango. Estava claro que eles haviam se conhecido há poucas horas.

Com muita propriedade ele falou do mate, seu calor e compartilhamento. Comparou com o coco tropical, que era tomado gelado e individualmente. Eu comecei a achar que ele estava exigindo muito de seu modelo, mas a coisa ia bem. Ela estava encantada: o sorriso era úmido e os olhos brilhantes. Eu via Don Julio feliz, passando de mesa em mesa, quando o argentino entrou no sempre delicado assunto do futebol.

Ele disse que pelas mesmas razões, el equipo argentino siempre fue luchador, sufrido, perseverante y fuerte, acentuou com os dentes cerrados. E, por oposição, nossa seleção era calurosa, alegre, relajada, pero floja, disse em tom conclusivo. Naquele instante, ela pantera, pulou por cima da mesa e grudou na garganta do elegante analista. Foi tudo pro chão: garrafa, taças, toalha e, claro, o interessante modelo. Ela ficou ali grudada no pescoço dele que, cavalheiro, não utilizou da força para se livrar. Eu, o único ali em condições de encerrar aquilo, tinha treinamento em emergências e dei um tapa na cara dela. Ela caiu em si e largou o pescoço dele, que logo se aprumou e saiu com elegância. Sábio, sem uma palavra. Don Julio cuidou para que a mesa fosse arrumada e voltou a atender seus convidados. Logo o show seguiu em frente e eu fiquei ali com ela. Na verdade por mais dois anos. Turbulentos anos, claro.

Foi dessa forma que tudo começou e se encerrou entre nós, com estímulo facial. No desenlace, foi sobre minha pessoa, que só então caiu em si.

Por vezes penso que a culpa de tudo foi do querido Julio, que parou seu Citröen naquele dia gelado. Por vezes penso que a culpa foi do argentino, que desnecessariamente abordou o futebol. Pode até ser culpa minha, mas como eu poderia resistir àquele olhar doce valente que defendeu a honra da Pátria?

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil pela Escola Politécnica da USP, PhD pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli – USP, na área de Informações Espaciais. Dedica-se também à literatura


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