Cadê a garrafa que estava aqui?

Sexta-feira, 25 de outubro de 2002, noite chuvosa. A cidade estava quieta, recolhida. Um assunto unia os interesses dos cidadãos brasileiros: as eleições para presidente. Mas não era uma eleição qualquer. Era a eleição que levaria o ex-operário e sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Naquele dia, a sentença se anunciaria através do debate na Rede Globo de Televisão. O mesmo debate que 13 anos antes derrubara a perspectiva do Partido dos Trabalhadores de subir a rampa do Planalto.

O contexto era de ansiedade e expectativa de todos os lados: da esquerda, da direita, da centro-direita que se acha centro e da centro-esquerda que acha que é esquerda. O debate foi um sucesso para o candidato três vezes derrotado. “Água mole em pedra dura”, profetiza o dito popular.

Após o debate, Lula seguiu em petit comité para um restaurante da zona sul do Rio de Janeiro: Osteria dell’Angolo. A escolha, feita por seu então assessor Wilson Timóteo, o saudoso Tom – que Bacco o tenha! –, não poderia ter sido melhor. O Osteria foi fundado em 1995 por Luciano Pessina, um exilado político e ex-militante da esquerda italiana. Não é um restaurante qualquer, é um reduto de cariocas progressistas, uma confraria da esquerda e da direita. Lá, come-se e bebe-se muito bem, mas, sobretudo, é possível conversar, debater, rir, no melhor estilo italiano.

Recebido por Pessina, o presidenciável seguiu com os seus para o andar de cima, onde se instalou em uma mesa com alguns poucos, entre eles Antonio Palocci e Duda Mendonça, personagens centrais da história que segue. Sentaram-se todos à mesa, veio o maître, depois o antepasto – o melhor do Rio de Janeiro. As taças esperavam o vinho – personagem maior desta história –, imprescindível em um momento como aquele, assim como o pão. Pão e vinho: nada mais apropriado. Companheiro é aquele que divide o pão. Junte o vinho e a Santa Ceia está formada. Lula estava com os companheiros da vez, talvez não os de sempre. Eram os companheiros do sucesso do debate!

Entre eles, um fazia aniversário: Antonio Palocci comemorou a data em grande estilo. Mas o presente ainda estava por vir. Duda Mendonça, o novo amigo-estrela, que transformara o sapo barbudo em um elegante homem de terno, sacou da cartola aquele que seria, de fato, o objeto capaz de levar a vitória certa da eleição por água abaixo, ou melhor, vinho abaixo – embora o vinho em questão fosse um néctar da mais alta classificação: um Romanée-Conti. Brilhante! Em um momento como aquele, em que a imprensa estava à porta como um cão de caça atrás de algum delito ou ínfimo deslize, o homem da propaganda política brinda o prenúncio da vitória de Lula, ex-operário, sindicalista, pernambucano, adorador de uma cachacinha, com um Romanée-Conti.

A imprensa caiu em cima: prato cheio ou, melhor, taça cheia de um dos vinhos mais caros e cobiçados do mundo. Ninguém pensou na repercussão que teria na mídia aquele presentinho? Ninguém. Ninguém teve sensibilidade suficiente para enxergar que certos atos e as circunstâncias em que se encontram são permeados por simbolismos. O que poderia significar um Romanée-Conti naquela ocasião?

Criou-se um caso: “Lula não está com o povo, está brindando a sua vitória com o vinho das elites”. Nenhum jornalista presente se interessou em saber que Lula apenas provou do vinho, mas ficou com o uísque, como bom apreciador de destilados. Será que com a astúcia que lhe é peculiar pressentiu que, embora o buquê exalado da taça de cristal fosse um aroma dos deuses, algo ali não haveria de cheirar bem? Tudo são meras especulações.

As consequências geradas pelo episódio só não foram devastadoras porque Lula, com ou sem terno, com ou sem vinho, com ou sem Duda Mendonça, com ou sem Palocci, é um mito, um gênio na arte da política. Mas o episódio deu trabalho. Não o derrubou como também não o fez a agressividade com a qual a imprensa o tratou nos oito anos de seu governo, aliás, em todos os anos de sempre. E vale lembrar que foi reeleito em 2006, desta vez sem Romanée-Conti, sem Palocci e sem Duda Mendonça, confirmando a sua popularidade junto aos menos abastados e já nem tão influenciados pela imprensa burguesa.

Mas o assunto em questão é o vinho ou o que sobrou dele: a garrafa. Guardada como lembrança, assinada pelos personagens daquela tão comemorada noite, ganhou lugar de destaque, virou objeto de desejo. Não raro os habitués do restaurante Osteria pediam para dar uma olhadinha na tão falada, mal falada e malfadada garrafa da vitória. Afinal, não é todo dia que se pode ter nas mãos uma garrafa de Romanée-Conti, ainda que vazia, quanto mais tendo sido degustada por Lula, mesmo que ele tenha dado só uma “bicadinha”.

E a garrafa ficou lá, ao sabor de quem quisesse ver, emoldurada à altura de sua importância, como testemunha de um momento histórico brasileiro: Lula lá 2002! Eis que em uma bela madrugada de 2009, Luciano Pessina, já dormindo em sua casa, após ter cumprido mais uma noite gourmet, foi acordado por um telefonema surpreendente: seu restaurante havia sido roubado. O ladrão, de casaca ou não, entrou sorrateiramente por um pequeno quadrado de uma janela de vidro, que quebrou.

Não levou dinheiro, também não havia, mas levou toda sorte de bebidas: licores, uísques e bons vinhos – atenção para o detalhe, não levou vinhos quaisquer. O prejuízo maior, que ironia, ficou por conta de uma garrafa vazia. O Romanée-Conti de Lula foi levado como que por encomenda. Em seu lugar, apenas o branco da parede. Luciano Pessina e seu sócio, Alessandro Cucco, chegaram a oferecer publicamente uma recompensa a quem encontrasse a garrafa: um jantar para dois com o melhor da casa, com reserva na mesa da grande noite do brinde. A parede continuou vazia.

Houve quem pensasse em mau presságio, sabe lá aquilo não representasse algum mau agouro: o símbolo, ainda que torto, de uma vitória anunciada furtado de maneira tão vil. Afinal, quem se interessaria por uma garrafa vazia? É a pergunta que não quer calar. É muito provável que quem a furtou soubesse bem o que estava fazendo. Um fã de Lula que religiosamente adora a garrafa assinada como uma santa no altar? Um ressentido da oposição que resolveu colocar a garrafa em uma encruzilhada? Ou um colecionador de vinhos que viu na garrafa um valor intangível e negociará a dita cuja, no mercado negro, para que daqui a 20 anos ela reapareça na Sotheby’s, oferecida por uma pequena fortuna? Tudo são especulações.

Seja como for, há muitos brasileiros esperando por um novo brinde em 2014. Com ou sem Romanée-Conti? É esperar para ver. Em todo caso, convenhamos, a velha cachacinha brasileira pode cair muito bem.

Tim-tim!

P.S.: Quanto à garrafa, companheiro, se tiver a sorte de encontrar, pode entregar na Osteria dell’Angolo, esquina das ruas Paul Redfern com a Prudente de Moraes, em Ipanema, Rio de Janeiro. É a única garrafa de Romanée-Conti no mundo que traz no rótulo a inscrição: Lula lá! Ainda vale um jantar para dois com o melhor da casa – e eu capricharia no vinho, que é para ficar bem pago. Depois da sobremesa, um cálice de grappa. Afinal, essa história merece acabar em destilado.


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