A Convicção Punitiva

Psicanalista e professor livre-docente da USP. Foto: Divulgação
Psicanalista e professor livre-docente da USP. Foto: Divulgação

Uma das contribuições mais simples e mais clinicamente eficazes de Freud para entendermos o sentimento de culpa reside na inversão que este afeto frequentemente nos leva a fazer entre causas e efeitos. Não apenas sentimos culpa porque fazemos algo errado, mas também fazemos coisas erradas porque sentimos culpa. O crime alivia a culpa, assim como o pecado dá forma, substância e imagem para nossos desejos. Esta inversão entre causas e efeitos constitui uma gramática elementar para muitas de nossas crenças, que se exprimem em tendências de autoconfirmação. Os astecas faziam sacrifícios humanos constantes para que o sol não caísse sobre as suas cabeças. Tais massacres rituais eram provas pragmáticas sobre a verdade de suas crenças. Afinal, o sol continuava em seu lugar apenas porque continuamente novas virgens eram oferecidas para aplacar a ira dos deuses. Muitas experiências religiosas aproveitam-se dessa vulnerabilidade psíquica diante da incerteza para instilar a culpa e, subsequentemente, vender indulgências ou administrar processos expiatórios. Uma vez que nos tornamos dependentes do aumento da fé como forma de aliviar a culpa, cada vez mais convicção e certeza são exigidas para obter os mesmos resultados anestesiantes. Surge assim um estilo de crença, um “viés de confirmação” por meio do qual saneamos dúvidas morais apenas pela confirmação do que já se sabia desde o início, impedindo que a realidade venha a confrontá-las. A adesão a um partido político, uma ideologia de grupo ou de classe frequentemente desenvolve esta mesma imunização contra a autocrítica, com o mesmo cultivo da culpa e seu falso antídoto, o reforço da convicção. Esta mesma pragmática da crença é capaz de degradar nosso desejo de justiça e equidade em mera convicção punitiva.

Um espectro ronda o horizonte político que emerge das recentes eleições municipais. Um espectro que substitui a dificuldade de pensar um novo país pela convicção punitiva, que, em vez de crítica ou autocrítica, produz vingança e extinção da política. Curiosamente isso parece afetar tanto os vencedores, notadamente os que se elegem pelas vias do voto útil contra a esquerda, quanto os perdedores, que, em vez de reformular suas plataformas, se contentaram em defender-se da culpa e do ódio. Surge uma espécie de consenso contra político. A massiva abstenção, os expressivos votos nulos e abstenções superam, em vários estados, os resultados obtidos pelos candidatos eleitos. Várias candidaturas bem-sucedidas baseiam-se nas diferentes formas de negar a política. No fundo as alternativas da antipolítica não são muitas: substituí-la pela gestão (como se o Estado fosse uma empresa), transformá-la em perseguição jurídica (como se o Estado fosse um grande juiz) ou apelar para indivíduos e grupos particulares aos quais se atribui um traço de moralidade superior (como se o Estado fosse uma família). Esta tendência já se anunciava em eleições anteriores com a escolha de candidatos que conseguem se distinguir da figura do político profissional, como jogadores de futebol, artistas e outros notáveis apenas pela celebridade. Mas agora há algo novo. Não apenas indignação, nem só ironia (como o caso do antigo rinoceronte Cacareco), mas desejo de punição. O afeto fundamental deste gesto político é a culpa e a necessidade de confirmarmos nossas razões e motivos. Diante de situações indiscerníveis, complexas e demasiadamente incompreensíveis, é bastante comum respostas que reduzam o problema a culpados e inocentes, vítimas e carrascos, puros e ímpios. Os acontecimentos que precederam as últimas eleições mostraram como as pessoas comuns percebem a política, de modo geral, como algo incompreensível, da qual elas estão separadas e com relação à qual não podem ingerir direta e cotidianamente. Em tempos revoltos e indeterminados, apelar para o mero reforço de convicções é apostar que o mero estado psicológico de certeza represente, por si mesmo, algum tipo de salvação. Isso confunde transformação da realidade com detecção de culpados. Quando substituímos a responsabilidade pela culpa, impedimos que os erros sejam pensados como parte do processo e que a autocrítica se torne um momento do processo transformativo, para todos os envolvidos.

A culpa, assim como a pena, é sentimento pouco eficaz quando se trata de processos transformativos, sejam eles de natureza clínica ou política. Isso ocorre porque a origem do sentimento de culpa é bífida. Por um lado ele emana de nosso descompromisso com o próprio desejo, por outro, de nossa obsessão com o gozo alheio.

Quando agimos de forma inconsequente, irresponsável ou desimplicada com relação ao que queremos haverá sempre um preço a pagar, como também há um preço para levar adiante o que queremos. O culpado não quer pagar este pedágio, ele acha que poderá sair-se livre com a defesa de que foi o outro que o fez fazer, foram as circunstâncias, foi a falta de saber ou de oportunidade, foram as condições ou o meio. Todo este universo de indeterminações é substituído pelo seu oposto psicológico para formar a convicção punitiva.

A segunda fonte da culpa remonta à nossa relação impiedosa com a lei. É o que Freud chamou de superego e o que Lacan desenvolveu com a noção de gozo. Uma relação que faz com que sejamos tentados a substituir a fidelidade ao desejo pela obediência subserviente ao outro, trocar a liberdade pela segurança, nossos sonhos por uma imagem pacífica de nós mesmos.E para ter certeza de que basta obedecer é preciso acreditar, e para acreditar mais é necessário punir os que acreditam menos, ou os que acreditam diferente.

Culpa e pena andam juntas como dois cegos em quem nos apoiamos rumo ao abismo. Quando estamos possuídos pela convicção punitiva, a pena é sempre pena de nós mesmos, e das vítimas com as quais nos identificamos, assim como a culpa é sempre projetada para o outro, e nos demônios que nos comprazemos em produzir. Por isso o gozo que não suportamos em nossa própria fantasia retorna como práticas de perseguição ao gozo do outro: homofobia, racismos e demais intolerâncias.

Para satisfazer a culpa e para satisfazer nosso gosto pela impotência, que se expressa na pena, somos levados a criar uma espécie de ato que lhe dê forma e conteúdo. Satisfazer a culpa e a piedade significa fazer nosso supereu gozar. Há indícios diagnósticos de que isso está em curso, há certos detalhes que denunciam a convicção punitiva: despreocupação com a reparação, prazer de produzir sofrimento no culpado, pressa em chegar ao veredito final, espetacularização da denúncia. Tudo se passa como se nos tornássemos alguém melhor e mais puro tão somente por rebaixar os outros que nos rodeiam.

“Doze Homens e uma Sentença”, peça de Reginald Rose encenada pelo Grupo Tapa, atualmente em cartaz no Teatro Viradalata, é um exemplo ótimo de como a tendência anti-intelectual em curso em nosso momento político parece ter instituído a soberania da convicção sobre a força das provas, a prevalência das teses sobre as evidências, a supremacia de quem você é sobre o que você faz. A peça baseia-se no filme de Sidney Lumet, 12 Angry Men (1957) sobre o julgamento de um homem negro acusado de matar seu próprio pai. As circunstâncias, o biótipo social, as testemunhas, tudo converge para a formação de uma convicção que se mostrará, ao final, apenas o reforço dos próprios ressentimentos, mal resolvidos, por parte de quase todos os jurados. De fato, a convicção punitiva baseia-se no laço solidário entre culpa sobre o outro e pena de nós mesmos, no casamento mórbido entre o sadismo do supereu e o masoquismo do eu, casamento celebrado por um afeto ainda mais simples: o ódio.

Uma justiça baseada no ódio só pode gerar ressentimento, tanto do lado de quem a pratica, cuja tentação tornará insaciável o gosto pela excepcionalidade, quanto do lado de quem é objeto desta justiça, e será punido pela justiça. Deste processo ambos guardarão o sabor de humilhação e de excesso que torna a culpa um exercício de poder sobre os derrotados. Na peça dirigida por Eduardo Tolentino de Araújo, a raiva do pai que exerce uma vingança imaginária contra seu filho mostra claramente como a culpa, mal elaborada, gera monstros de ressentimento e apaga nossa razão.

*Christian Ingo Lenz Dunker é professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP



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