A crise que estamos vivendo foi anunciada e preparada no fogo lento da grande liquidez internacional e crescimento da economia mundial. O aumento de liquidez desde o final dos anos 1990 combinou-se com uma elevação do preço dos ativos. Os ativos imobiliários – imóveis e papéis ligados a seu financiamento – são um importante indicador dos movimentos da economia toda.

A acentuada elevação do preço das moradias nos Estados Unidos mostrou a quem quisesse ver os prenúncios da crise que se iniciou nesse mercado em meados de 2007. Normalmente, os preços das moradias sobem quando há um crescimento da renda ou da população. Só que os modelos de previsão nem sempre incorporam uma faceta quase irracional do funcionamento do mercado: a superestimação levou os preços a subirem ainda mais. Por isso, já se esperava a redução dos preços das casas nos EUA, o que ocorreu desde o final de 2005.
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Apesar de previstos, os efeitos desse movimento sobre a economia e os mercados financeiros seriam mais difíceis de estimar. A queda dos investimentos fixos em habitação tem muito impacto sobre outros setores da economia.

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A expressão subprime se aplica à mais baixa das três principais categorias de crédito utilizadas para classificar os financiamentos imobiliários no mercado de hipotecas. Os clientes subprimes eram até conhecidos como ninjas (no-income, no-job, no-assets), ou sem renda, sem emprego e sem ativos… Mutuários com um histórico de crédito pobre compraram imóveis próprios, receberam crédito para isso e financiaram outros gastos ou liquidaram empréstimos com juros mais altos. Com os preços dos imóveis em alta, os subprimes conseguiam refinanciar suas hipotecas depois de certo período, liquidando o saldo devedor com recursos de novo empréstimo, com base no maior valor de avaliação de seus imóveis.

Porém, esses refinanciamentos impediram os mutuários de formar uma provisão para o caso de queda dos preços de imóveis. A securitização estimulou a concessão de empréstimos imobiliários pelos bancos. Os bancos juntavam vários créditos em um único título financeiro a ser negociado nos mercados. Por meio dessas operações, os bancos vendiam parte do seu risco de crédito para outros bancos e investidores. Ao tirarem o risco desses créditos de seu balanço, os bancos podiam conceder mais empréstimos imobiliários com base em seu capital. Esse círculo pode funcionar enquanto vigorar um cenário de baixo prêmio de risco e baixa inadimplência.

Com o declínio do preço dos imóveis em 2007, as taxas de juros começaram a crescer e o lucro nas operações de refinanciamento desapareceu. Além disso, a maior parte dos contratos subprimes tinha taxas de juros reajustáveis. A inadimplência foi crescendo e a coisa toda se complicou.

Em suma, o longo período de crescimento acelerado com inflação moderada e juros baixos incentivou um comportamento cada vez mais arriscado de quem empresta e de quem toma emprestado. Além de ter sido dado crédito a quem não teria como pagar, essas dívidas foram amplamente comercializadas em mercados secundários. Muitos bancos de investimento rechearam suas carteiras de títulos podres. E aí vem uma parte central da explicação das turbulências atuais: está evidente, agora, que houve controle e supervisão frouxos – para dizer o mínimo – sobre a atuação das instituições financeiras norte-americanas. Muitos entre os que hoje quebram ganharam verdadeiras fortunas e assumiram riscos altos.

Ninguém tampouco duvida que esses distúrbios, fecundados na esfera financeira, têm um enorme potencial destrutivo, não só para a economia que os gerou, mas para o mundo todo. Os sistemas financeiros nacionais estão interconectados. É difícil dizer ao certo que instituições estão com as carteiras saudáveis e quais caminham para o colapso – embora o ritmo assustador de quebras de bancos já tenha indicado que ainda há como as coisas piorarem.

O potencial de contágio a outros segmentos do mercado financeiro e ao setor produtivo é alto. Do lado financeiro, está claro que o contágio se dá pelo crédito e pelo default. Sobre a economia real, os efeitos vêm na forma de redução da renda, redução das despesas de empresas e famílias e enxugamento do crédito.

O fato é que uma quebra ainda mais generalizada não deixaria pedra sobre pedra, nem nos EUA nem em outras muitas partes do mundo. Quebra de instituições financeiras representa uma ruptura do sistema de pagamentos, cujos custos econômicos e sociais seriam ainda bem maiores.

Aí vem o dilema: depois da festa financeira, é justo que todo mundo se organize para fazer a faxina do que restou do prazer alheio? Socorrer o sistema pode significar acolher o risco excessivo, seria uma forma de estímulo ao comportamento irresponsável. Só que, não socorrendo, a sujeira da festa corre o risco de ficar bem mais difícil de limpar. É certo que existe uma necessidade imperiosa de aprimorar a regulação, a supervisão e os controles sobre os sistemas financeiros, nos EUA e em todo lugar.

O processo institucional de apertar as botas do sistema financeiro internacional é politicamente complicadíssimo, mas inevitável. Os momentos de crise acordam as grandes questões da economia política internacional: como estabelecer uma nova arquitetura financeira internacional, que papel devem desempenhar organismos internacionais como o Banco de Compensações Internacionais (o BIS, de Basiléia)?

E nós, como estamos? O Brasil está melhor do que esteve em qualquer outro momento da sua história, mas não tem imunidade completa, assim como nenhum outro país.

Existem alguns claros canais de transmissão da crise por aqui. O mais direto é o do crédito. Com as torneiras secas lá fora, as empresas que tinham acesso a financiamento externo – a taxas de juros inferiores do que as praticadas no mercado doméstico – deverão encontrar outra forma de rolar suas dívidas. Os bancos nacionais também operam trazendo dinheiro de fora para emprestar aqui. Ao diminuir o acesso a essas fontes, cai o crédito e sobem os juros.

Outra forma de transmissão se dá pelas contas externas, em duas frentes simultaneamente. Com a economia americana desacelerando, o mundo todo cresce menos e nossas exportações devem ficar menores em volume e em preço. Como já estamos há meses gastando mais no exterior (o déficit em transações correntes está aumentando), pode ficar mais complicado financiar esses gastos, porque o capital estrangeiro virá menos e mesmo pode continuar saindo, para cobrir perdas em outros mercados. Na Bolsa de São Paulo, por exemplo, as saídas de recursos estrangeiros superaram os R$ 17 bilhões desde que começou a crise em agosto de 2007 até agosto passado (13 meses).

A combinação mais nefasta dos efeitos acima a se abater sobre nós deverá acontecer pelo canal dos investimentos. Os indicadores de produção no Brasil nos últimos trimestres dão conta de um ritmo bastante intenso dos investimentos no País, com menos crédito, menos recursos para importações e menos entrada de capital estrangeiro nas diferentes formas que assume, é natural que as empresas adotem uma cautela maior.

Medidas de alívio ao crédito doméstico foram adotadas pelas autoridades econômicas brasileiras. Pontuais e não desesperadas, elas procuram apoiar alguns setores, notadamente a agricultura e aqueles vinculados ao investimento.

Acertado um esquema de ajuste da crise, não há porque perder o sono nesse momento. A economia brasileira, hoje, é profundamente mais sólida e mais estável do que há dez anos. A estrutura de regulação do nosso sistema financeiro e o nosso sistema de pagamentos estão entre os mais avançados do mundo. Mas, mesmo usando uma boa capa, ninguém fica seco em meio a um furacão. É torcer para que se instaurem condições políticas para o saneamento necessário do sistema financeiro e que o mundo enfrente uma discussão mais difícil e séria da tal arquitetura financeira internacional.

*Economista, professora da PUC-SP e consultora da FGV-Projetos


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