Desce daí, Marina!

Rogério Tomazela Nas alturas – Marina Klink em Horseshoe Island, na quase inacessível Baía Margarida, extremo sul da Antártica

Marina Bandeira Klink conta, de maneira bem-humorada e divertida, como encarou uma bronca de Amyr Klink, seu marido, durante uma viagem à Antártica, que deu outro rumo a sua vida. Ventava muito no verão de 2009 para 2010, e ela estava na cadeirinha no alto do mastro do barco Paratii, tirando fotos. “Adoro fotografar de lá porque são 33 m de altura, que muda a perspectiva de tudo.” Divertia-se com o que via e registrava a paisagem com sua Canon, quando Amyr, disciplinado e compenetrado, pediu para que ela descesse. “Não, vou esperar escurecer mais porque está muito lindo, tem uma nuvem fechando minha visão e vou aguardar que ela saia.” Impaciente, o maior navegador brasileiro insistiu: “Desce daí, Marina. Essas suas fotografias não vão servir para nada”. Aquela frase, relembra ela, doeu profundamente. “Desci, fiquei calada, com aquele choro apertado. Eu olhava para ele com raiva e vontade de chorar.” Ela pensou: “Como assim, não serve para nada? Quer saber, vou fazer valer para alguma coisa”.

Amyr talvez não tenha se dado conta do que disse ou não percebeu o quanto aquilo atingiu a mulher. Marina levou para o lado positivo: foi uma provocação, um desafio. Nesse momento, resolveu tomar a atitude de se assumir e fazer respeitar como (ótima) fotógrafa profissional que era. Na verdade, suas fotos já tinham ilustrado dois livros do marido – Mar Sem Fim e Linha D’Água. Ela cedia fotos de graça para toda a imprensa havia quase 30 anos, desde 1982, quando se tornou a primeira mulher em São Paulo a fazer voo livre com asa-delta. Nessa época, aliás, uma brincadeira de um colega da MPM Propaganda, Rossi, então revisor de texto, curiosamente remetia à mesma frase de Amyr, quase como uma premonição. Em um cartum publicado no jornalzinho da empresa, ela aparecia voando de asa-delta e alguém lá de baixo dizia: “Desce daí, Marina!”. Hoje, observa ela, entende que o marido estava certo por ela não ter se levado a sério. “Precisei ouvir aquilo para tomar uma decisão: foi a motivação que precisava para tirar as fotografias da minha gaveta”, diz segura. O resultado é o deslumbramento visual que sai das páginas de seu primeiro livro, Antártica – A Última Fronteira, lançamento da Editora Brasileira.

Mais do que ninguém, Marina acreditava e apostava no valor do material que havia acumulado em milhares de fotos. Um acervo impressionante, resultado de 13 viagens à Antártica e visitas a vários pontos do mundo. “Posso dizer que conheço a região mais austral do planeta e também que nenhuma imagem apresentada no meu livro é comum”, observa orgulhosa. E não são mesmo. Como ela ressalta, são registros jamais possíveis para fotógrafos fazerem em uma única viagem, por causa da imensidão da Antártica e, muitas vezes, das dificuldades climáticas que acontecem em lugares como a Ilha Decepção congelada ou o horizonte do Cemitério de Icebergs e os vendavais da chegada nas Ilhas Shetlands do Sul, que fazem parte do livro. Ou uma nuvem lenticular perfeita sobre a Baía Margarida, que permite ver as Shag Rocks bem de perto. “Talvez o observador desatento não imagine a dificuldade que tive para fazer esses registros, mas muitas vezes subi no mastro, arrisquei cair no mar congelado, ousei fotografar sob ventos fortes, a ponto de não conseguir ficar em pé”, conta.

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Marina também caminhou com excesso de luz, aguentou ficar horas firme com a câmera na mão, apesar do balanço do mar, somente para esperar por uma ave marinha. “Fiz plantão por horas para acompanhar uma revoada de petréis em voo e a convivência com o iminente risco da perda do equipamento, que, aliás, já perdi duas vezes, no mar em Paraty, quando submergiu para sempre, e no mar da Antártica durante uma tempestade.” O prejuízo é recompensado por uma boa fotografia, consola-se. O formato de 28,5 cm x 37 cm de Antártica – A Última Fronteira é um trunfo para o impacto buscado pela autora com suas imagens. Ao abrir a página dupla inicial em que se vê do alto o mar revolto, parece que as águas vão transbordar do papel. Há outros flagrantes em águas calmas, como a cauda da baleia no momento do mergulho, o petrel que alimenta seu filhote, o estreito das águas agitadas à frente do Paratii. Nessa imensidão em que raramente se vê vestígios da presença humana.

A fotógrafa explica que sempre buscou evitar registros típicos de cartões-postais ou imagens clichês. Uma preocupação que marcou a seleção para seu livro, experiência que lhe deu oportunidade de apresentar um alerta, segundo ela: seu olhar sobre a fragilidade do último continente a ser descoberto e um dos lugares mais fascinantes da Terra. A maior dificuldade que sentiu no processo de produção da obra foi ter de “tirar” fotos de uma pilha de ampliações de outra seleção. “Apesar dos problemas que tive nas minhas aventuras de fotógrafa, nunca me lembro do que passei para ‘captar’ as imagens. Sinto que todo o esforço é recompensado.” Para ela, Antártica – A Última Fronteira foi concebido como uma métrica poética. “Não lancei mão de texto, mas procurei sair do comum.” Assim, reuniu fotografias especiais e montou uma sequência, de modo a escrever uma poesia por meio de imagens, como ela mesma descreve, que parecem simples para desatentos e complexas para cuidadosos. “Quem nunca foi para a Antártica se encanta e quem esteve lá entende a complexidade da fotografia.”

Em entrevista à Brasileiros, Marina lembra que suas aventuras pela Antártica começaram sem o marido. Em 1994, ela conheceu uma russa que tinha trabalhado em um navio e lhe disse que era possível visitar a Antártica sem ser em uma expedição. Havia embarcações adaptadas para o turismo polar e ela ficou interessada em conhecer o local onde Amyr tinha passado o inverno. “Ela me deu o contato e, no verão seguinte, consegui embarcar em um navio russo.” A predominância era de russos e tinha uma equipe de seis espanhóis produzindo um especial para o programa de TV Al Filo de lo Imposible, apresentado por Sebastián Álvaro. “Depois de dez dias em um barco onde só se falava russo, os espanhóis se tornaram meus melhores amigos”, conta bem-humorada. A sorte ajudou para que a viagem fosse perfeita. “O clima estava bom e foi possível passar pelo  Crystal Sound. É como chegar ao fim das Olimpíadas, é quase impossível de se conseguir porque depende de uma série de fatores – clima, disposição, vontade do capitão. Seguimos mais para o extremo sul e atingimos a Baía Margarida, que é a Meca dos navegadores, muita gente não consegue alcançar.”

Naquele momento, aconteceu algo mágico, que mudou sua vida para sempre. Havia uma estação espanhola fechada em terra firme e o capitão autorizou o desembarque dos passageiros, divididos em dois botes. Na volta para o navio, no barco onde Marina estava, ouviu-se um barulho alto próximo. “Olhei para trás e tinha uma baleia jubarte muito próxima a nós. Era um encontro imprevisto e impressionante, desligamos o motor e a observamos nadar em volta de nós, passava por baixo e veio bem ao meu lado, pôs a cara para fora para que eu pudesse tocá-la, o que fiz instintivamente, em um gesto de carinho.” Os colegas espanhóis diziam: “É com você o negócio dela, Marina”. Riam e vibravam, emocionados. Como se o gigantesco mamífero quisesse contato exclusivamente com a brasileira.

Havia o risco de o animal bater sem querer e jogar todos na água gelada. “Mesmo assim, ficamos quietos porque eu queria ouvi-la. Se você não fica em silêncio, os bichos fogem. Só o humano ouve barulho e vem ver, né? O segredo é fazer silêncio e deixar que os bichos se manifestem.” A brincadeira continuou com muitas voltas e paradas ao lado de Marina. “A partir dessa conexão, entendi que ela queria me passar essa mensagem e, desde então, tenho esse chamado de voltar à Antártica.”

Foram mais 12 viagens. Metade delas com o marido e as filhas. “Ali vivi experiências maravilhosas e essas emoções me motivaram a tirar fotografias incríveis de momentos que não voltarão mais.” Em todas, Marina tentou reencontrar a baleia. Como não fez o registro da calda, que é uma espécie de RG da baleia – uma mancha, uma marca de ferimento, um desenho –, o esforço se tornou quase impossível. “Levei anos para entender esse chamado.” Ela lembra que sempre gostou de fotografia, seu pai era um adepto da marca Leica e a família tinha em casa um banheiro onde funcionava também um laboratório fotográfico. “Eu só podia tomar banho no fim de semana nos momentos em que não tivesse revelação e ampliação.” Os laboratórios eram complicados, era preciso esperar uma semana para receber as fotos por causa da demanda. “Cresci nesse mundo, mas era criança e não podia mexer. Aí, ganhei uma Xereta pocket, depois fui comprando outras, da Pentax, até que caí numa Nikon. Quando passei a investir em lentes boas, fui para a Canon. Hoje em dia, a fotografia se tornou um bem acessível. Aqueles momentos mais do que mágicos com meu pai sempre estiveram vivos na minha memória.”

A forma que Marina encontrou de retribuir ao continente remoto um pouco da emoção que já lhe proporcionou foi lançar seu livro em PortLockroy, posto oficial do Correio Britânico, na Antártica. “A experiência de fotografar na Antártica é muito intensa”, insiste ela. “Mesmo grandes fotógrafos, acostumados com cenários espetaculares, seguramente se surpreendem com o que encontram ali. O cenário não poderia ser mais perfeito!” Nos primeiros dias naquela região, recorda, a ansiedade é tanta que dificilmente dá para dormir. Experiências intensas que ela agora compartilha em Antártica – A Última Fronteira, que é bem mais do que um livro de fotografia. É um misto de paixão pela natureza e um manifesto em defesa de suas belezas.

As meninas palestrantes

Laura, Tamara e Marina Klink são três adolescentes fora do comum quando o assunto é desinibição. Educadas e gentis, falam com desenvoltura para crianças entre 6 e 12 anos e, não raro, adultos. Em vez da timidez, conversam e sorriem com simpatia o tempo todo. Não só porque foram treinadas para isso. Parte vem da educação que receberam dos pais sobre como encarar a vida, tratar bem e com respeito a todos. O resto vem do contato com o público. Elas fazem uma média de 50 palestras por ano em colégios particulares e públicos – nesse caso, gratuitamente – e até grandes eventos para empresários. Todos querem ouvir como é estar na Antártica ao lado da mãe Marina e do pai Amyr Klink, símbolo de coragem, disciplina e determinação.

O trio tem muita história a contar. Tanto, que rendeu até um livro que virou best-seller. Férias na Antártica, da Grão Editora, selo do grupo Peirópolis, já vendeu mais de 20 mil cópias em três anos. É uma obra divertida para crianças, em que as meninas fazem uma espécie de diário de viagem – foram ao Polo Sul quatro vezes até 2010 –, fala dos animais e, o tempo todo, ressaltam a importância de preservar aquele mundo fascinante e toda a sua fauna e flora. Também apresentam dicas de viagem e sobrevivência, aprendidas na prática ou por sugestões dos pais. Todas as fotos foram tiradas por Marina. Um orgulho para Amyr Klink pai, que fez a breve apresentação e se negou a interferir até que o livro ficasse pronto. “Para um pai viajante, calejado de surpresas, devorador de grandes e pequenos livros, foi uma grande surpresa. A maior que já tive.” E acrescentou: “Não imaginei o quanto seria importante para nós, adultos, o ofício de, ao ensinar, aprender. Vinte anos de viagens regulares ao continente antártico me ensinaram menos do que essas intensas, breves semanas de andanças e convivência”.

Hélio Campos Mello Entusiasmo – Em várias escolas, as irmãs Klink são presenteadas com desenhos das crianças depois das palestras

Marina conta que desde pequenas, as filhas viam o pai partir e voltar, em longas viagens de meses, e não compreendiam porque isso acontecia, pela pouca idade. Até que, “entre esse ir e vir tinha um meio tempo de distanciamento entre Amyr e as filhas e em uma dessas viagens eu disse a ele que elas estavam grandes e que podíamos pensar em levá-las. As gêmeas Laura e Tâmara tinham 8 anos e a mais nova, Marina, 5.” Era uma oportunidade para entenderem por que o pai viajava e ficava tanto tempo ausente, o que tinha nesse lugar para onde o navegador gostava tanto de ir. “Ele olhou para mim admirado: ‘Nossa, você está querendo levá-las?’.” E topou. A primeira viagem em família aconteceu em 2006. “A viagem foi transformadora, elas abriram a visão de mundo. Vi que tinha mexido muito com as três, uma experiência diferente para uma criança que fica em casa ou vai para um hotel nas férias.”

No final de 2009, quando os Klink decidiram fazer a quarta viagem, para que as garotas não perdessem um mês de aulas e comprometessem o ano letivo, Marina propôs ao colégio que as filhas fizessem um trabalho para a própria escola, em conjunto com alunos e professores, que poderiam acompanhar o dia a dia delas. “Fiz ampliações de cartas náuticas para colocar nas salas das três e pedi às professoras que marcassem diariamente o ponto onde estariam. Quando voltassem a São Paulo, fariam uma apresentação para mostrar o que tinham aprendido. “Dei tarefa para que cada uma fizesse seus diários, levei guias sobre os locais e os bichos que vivam lá. Estudei muito nesse sentido. Didaticamente, fui ensinando e me tornei uma professora.” Quando viu a primeira palestra, Marina, com 30 anos de experiência como organizadora de eventos, pensou: “Isso vai dar muito certo”. Por coincidência, João Cordeiro, especialista em preparar palestrantes, procurou Amyr ao final de uma palestra e pediu a ele que o indicasse, caso alguém pedisse alguma sugestão de professor. Marina levou as filhas até ele, que as treinou em quatro sessões. Desde então, não tem uma semana que não se apresentem.

Hélio Campos Mello Orgulho de família – Marina e as filhas Laura, Marininha e Tamara: difusão em escolas públicas e privadas sobre conservação ambiental

Na metodologia nada ortodoxa que adotaram, Tamara explica que ela e as irmãs recorrem ao improviso no momento de ordenar as falas. Os textos, o trio traz na cabeça e conta com a ajuda das imagens projetadas durante a apresentação. “Quando percebemos que tem um assunto que elas não aquentam mais falar, vamos trocando”, ressalta. Marina recorda que, se uma delas lembra que tem uma coisa importante e que não está falando, interfere e muda o tema, mesmo que não tenha a ver com a Antártica. Como a ameaça de extinção de várias espécies de tartarugas. “Reduzimos as apresentações de uma hora e meia a apenas uma hora para não ficar chato”, acrescentou. Laura garante que as irmãs adoram falar sobre ecologia. “Se não, teríamos parado no começo.” O livro das Irmãs Klink, como são chamadas, foi adotado como referência de primeira leitura em 43 escolas de São Paulo. “É um trabalho paciente de levar para a direção da cada colégio, sugerir, argumentar sobre a importância da obra para conscientização ecológica”, observa Marina.

Marina conta que na adolescência queria ser bióloga ou oceanógrafa, mas o mercado na época era muito restrito. Por isso, fez Comunicação e se tornou uma bem-sucedida organizadora de eventos. “Sempre gostei de biologia, mas aquele não era o melhor momento do mercado de trabalho para esse profissional. Pela facilidade que sempre tive em fazer contatos com muitas pessoas, segui na área de Comunicação. Decidi trabalhar com eventos e percebi que ver os outros felizes me fazia muito feliz. Segui nesse mercado com sucesso por 30 anos.” Em sua essência, porém, ela era bióloga. “É incrível como na vida as conexões voltam a se fechar. Com o conhecimento que tenho de eventos e meu amor pela natureza, pela biologia, fiz uma coisa muito maior, transformar minhas filhas em multiplicadoras, que é muito mais do que ficar fechada em mim mesma. Eu transformei pré-adolescentes cruas em pequenas células multiplicadoras de conservação ambiental.”


Comments

4 respostas para “Desce daí, Marina!”

  1. Avatar de Antonio Rovare
    Antonio Rovare

    Eu não conhecia a revista até encontra-la num voo da Gol. Parabéns a todos pela profundidade e excelencia das reportagens. Uma revista assim, porém, merece mais cuidado com a revisão dos textos. A cauda da baleia não é com “l”, assim como a marca alemã de câmaras fotográficas não é Laica, essa é a cadela que foi ao espaço, a câmara é Leica.

  2. Sensacional, Marina… Belíssima história, belíssima vida… Voe, voe alto, sempre! Pessoas talentosas são aquelas que além de realizar têm a generosidade de dividir seus voos com aqueles que ainda estão deixando suas asas crescerem.

  3. ESTA FAMÍLIA É INCRÍVEL!!!!
    SUCESSO NO LANÇAMENTO MARINA.
    Abs,Aluisio

  4. Avatar de Miriam Chaudon
    Miriam Chaudon

    Olá! Sou fã! Do Amyr, depois da Marina e das meninas! Impossível não admirá-los! Como fazer para ter vocês aqui, na escola estadual onde trabalho, para conversarem com os alunos sobre Conservação Ambiental?

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