Vou Tirar Você Desse Lugar, o novo documentário de Helena Tassara vai tratar da patrulha ideológica, moral e estética que perseguiu grandes artistas populares da música brasileira durante os anos 1970. As filmagens tiveram início com a entrevista de Odair José – retratada na edição de julho de 2010, que celebrou os três anos de Brasileiros – e foram interrompidas por uma nobre causa. Helena teve a ideia de produzir uma série de shows, intitulada Salve o Compositor Popular, realizada em março no SESC Pompeia, em São Paulo. Marcio Greyck, Benito Di Paula, Vanusa, Luiz Ayrão e Agnaldo Timóteo elencaram o projeto que, a exemplo do documentário, teve direção artística de Zeca Baleiro. As gravações foram retomadas no domingo em que Greyck e Ayrão se apresentaram para um teatro lotado de fãs passionais. Brasileiros cobrirá todas as etapas de produção do filme, e o segundo personagem entrevistado por Helena foi o cantor e compositor carioca Luiz Ayrão, autor do estrondoso sucesso A Saudade que Ficou (O Lencinho).

Samba, beca e toga
Nascido em 1942, no bairro Lins de Vasconcelos, zona norte do Rio, Luiz Gonzaga Kedi Ayrão, chegou ao mundo em berço musical. O pai, Darcy, um militar de cabeça aberta, entusiasta de Voltaire e do Iluminismo, foi um apaixonado por música. Herança genética? Muito provavelmente. Basta dizer que o bisavô de Luiz também foi músico e o avô, Artur da Silva Ayrão, compositor e maestro. Na casa de Juca, um dos tios de seu pai, ainda menino ele testemunhou visitas ilustres de João da Baiana e Pixinguinha, que vez ou outra executava com o tio, também saxofonista, temas do avô Artur. O pai faleceu quando Ayrão entrou na adolescência. Filho único, trabalhou como engraxate, vendedor de frutas e até de guia de cegos para ajudar a mãe. Começou a desvendar os segredos do violão aos cinco anos, mas, na condição de arrimo de família, suspeitava que o ofício de músico não renderia garantias de um futuro estável e foi à luta. Conseguiu uma bolsa de estudos de Direito, formou-se, exerceu a carreira de advogado e chegou a ser procurador do Banco Geral da Guanabara.

Em paralelo, Ayrão ensaiva os primeiros êxitos como compositor. Em 1963, o amigo da zona norte, Roberto Carlos, gravou de sua autoria Só Por Amor. Três anos mais tarde, Nossa Canção se tornaria o primeiro grande sucesso romântico do Rei. Entre festivais, compactos na RCA Victor, e mais um arrasa-quarteirão na voz de Roberto – o clássico Ciúme de Você – a gravadora Odeon deu carta branca para Ayrão gravar seu primeiro álbum. Lançado em 1974, teve como destaques No Silêncio da Madrugada e Porta Aberta, uma homenagem à Portela, onde ele é um dos diretores e membro cativo da ala de compositores, há mais de 30 anos.
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Partindo desse início tardio, mas consistente, Ayrão defendeu com afinco a causa da música de acento mais popular em baladas românticas e sambas de fina ironia, como Bola Dividida, que versa sobre um sujeito leal, que ignora os flertes da namorada de um amigo, mas corre o risco de ser interpretado como alguém que “se androginou”. Como Odair José, Ayrão ultrapassou mais de uma vez a casa de milhões de cópias vendidas. Hoje, tem mais de 20 títulos lançados e ainda defende a faceta de escritor. Publicou, em 2004, o romance O País dos Meus Anjos: da Descrença à Fé – Coincidências, Sinais, Evidências, e, no final de 2010, lançou Meus Ídolos e Eu, compilação de histórias inusitadas vividas ao lado de estrelas, como Roberto Carlos, Elis Regina, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Tim Maia e outros. Desde 1975, abandonou a carreira de advogado e vive com a família em São Paulo, onde também se aventurou como empresário da noite, sendo sócio das casas Canecão Anhembi, Sinhá Moça e Modelo da Liberdade.

Samba e subversão
O primeiro contato com Ayrão, horas antes de sua participação em Salve o Compositor Popular, deu-se logo em nossa chegada. Sentado em um dos bancos laterais da área externa do teatro projetado por Lina Bo Bardi, ele autografou dezenas de vinis trazidos por um fã obcecado – uma espécie de Karl Marx em versão hippie, de cabelos e barbas ainda mais longos – que beijou as maçãs do rosto do cantor, despediu-se emocionado e partiu “flutuando”. Ayrão nos encarou, sorridente, suspeitando que também pretendíamos falar com ele, intercedeu, solícito, e nos levou ao interior do teatro. Os instrumentos repousados – saxofone, piano de cauda, sintetizador, percussão, bateria, contrabaixo, violão e o cavaquinho de Luiz – sugerem arranjos especiais. Três ou quatro temas ensaiados, e Helena, sem tempo a perder, articula sua equipe para o corredor do vão central do SESC e inicia as filmagens do dia. Sentado em um banco rubro de madeira e vestindo uma camisa cinza de cetim que refletia os raios finais do sol do domingo, Ayrão começa seu depoimento e fala sobre censura.

Como ele mesmo atesta, teve a bronca amenizada por parte dos censores, mas quando causou, causou muito. A gota d’água veio com a canção Treze Anos, que depois ganharia o nome de O Divórcio: “Essa foi minha música mais contundente. Os militares resolveram fazer uma festa para os 13 anos da ‘revolução’, em 1977, defendendo aquele papo do Zagallo, de que o 13 era o número da sorte, mas bem sabíamos que aqueles 13 anos não eram de sorte alguma. Tem um trecho da letra que diz ‘…vou fazer as leis com meus critérios/vou para o xadrez ou o cemitério/mas findo de uma vez com seu império’”, diverte-se. A canção já havia sido registrada em vinis produzidos aos milhares, foi censurada e Luiz teve uma sacada genial. Mandou substituir o selo dos LP’s com o crédito O Divórcio (Treze Anos). Mesmo com toda a virulência da letra, a canção passou impune pelos censores, pois na época a lei do divórcio estava prestes a ser sancionada pelo general Geisel e era assunto caro à opinião pública. Ayrão se diverte ao lembrar que Fernando Belfort Bethlem, também general e então ministro da Guerra, ficou furioso com a descoberta, mas enfatiza que não sofreu maiores problemas. Eram outros tempos. Nos anos mais sombrios, no auge da era Médici, com família e carreira estabelecida, jamais cometeria tal sandice, pois tinha mais era que dar conta da própria vida: “Havia gente de esquerda que, de fato, veio de classes mais humildes, mas a grande maioria vinha de meios importantes. O pai empresário, governador, deputado, o tio senador. A barra pesava e o camarada se exilava na Itália ou na França. Eu me exilava em Marechal Hermes, Bangu I, na casa da minha avó”, conclui, sábio.

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