Domingos Sodré, o patrono da contradição

O livro Domingos Sodré Um Sacerdote Africano – Escravidão, Liberdade e Candomblé na Bahia do Século XIX, lançado pela Companhia das Letras (491 págs. R$ 58,), do historiador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), João José Reis, revela novos ângulos sobre a complexidade social baiana no século XIX. Para isso, ele conta a história de Domingos Sodré, africano que veio para o Brasil, precisamente para Salvador, Bahia, e aqui conseguiu liberdade e ascensão social ao tornar-se curandeiro e adivinho. Em entrevista para Brasileiros, J. J. Reis fala sobre seu personagem, sobre o estudo da micro-história* e como o conhecimento sobre nossa herança escravagista pode ajudar na diminuição do preconceito racial.

Brasileiros – No Dossiê Bahia de Todas as Áfricas, sobre a trajetória dos líderes e devotos do candomblé do século XIX, há uma citação sobre Domingos Sodré. Por que você interessou-se pela vida dele?
João José Reis –
Quando escrevi sobre candomblé naquele dossiê eu já estava escrevendo o livro. Antes do livro já tinha escrito artigos sobre Domingos, que seriam publicados em revistas acadêmicas, de pouca circulação. A pesquisa prosseguiu, novos documentos foram encontrados e o livro aconteceu. Encontrei nesse personagem um bom guia para entender o mundo do candomblé em suas relações com a sociedade baiana da época, e, num sentido mais amplo, um guia para entender a dinâmica da escravidão e da liberdade num ambiente muito mais complexo do que as pessoas normalmente imaginam.

Brasileiros – Há algumas décadas aumentou o interesse pela micro-história. O que levou os pesquisadores e historiadores a se interessarem por ela e pelos personagens anônimos da história brasileira?
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J. J. R. -O método que usei para escrever esse livro não é micro-história, ou melhor, é micro-história acidental. Foi um método já testado no livro sobre a revolta dos malês, em 1835, e no livro sobre a revolta contra o cemitério, em 1836. Parto de um episódio e o cerco de perguntas para chegar à compreensão da sociedade em que ele aconteceu. Ao entender essa sociedade, eu termino entendendo o episódio. É coisa velha, método dialético, com perdão da palavra, um pouco fora de moda. Foi o que fiz com Domingos: parto dele pra entender a Bahia do século XIX e depois volto a ele para entendê-lo a partir dessa Bahia. Quanto à escolha pela biografia dos anônimos, em muitos casos, são os anônimos que a reivindicam. Surgem do meio dos papéis velhos e gritam “eu estou aqui, me tirem daqui”. São mortos que não querem ficar enterrados, que preferem sair das folhas frias dos arquivos para vagar de mão em mão nas páginas de livros. Eu atendi à voz de Domingos.

Brasileiros – Os poucos negros que conseguiram liberdade e ascensão social no Brasil, na sua maioria, adquiriam escravos. Domingos Sodré foi um deles. Mas você diz que ele não era zelador da classe senhorial nem libertador da classe servil por ser africano. Essas contradições podem gerar conclusões errôneas sobre a questão do flagelo da escravidão no Brasil e da conduta de negros e crioulos libertos?
J. J. R. –
Uma correção importante: a maioria dos libertos não tinha condições de adquirir escravos. Eu dou números no livro. Um censo de meados do século XIX sugere que apenas cerca de 20% dos africanos libertos eram senhores, proporção que caiu muito após o final do tráfico, em 1850, quando o preço do escravo aumentou vertiginosamente. Antes disso, o braço escravo era barato, representava o melhor investimento, sobretudo para o pequeno investidor. Falando friamente, o tráfico, o chamado infame comércio, democratizou a escravidão. Até escravo possuía escravo, era raro, mas acontecia. Tem um personagem assim no meu livro. Contudo, a esmagadora maioria dos africanos aqui chegados como escravos morreu na escravidão. Eles tinham uma vida geralmente curta, de sete a dez anos, quando empregados nas ocupações mais estafantes, como no trabalho do engenho. A alforria, embora existisse no campo, dizia mais respeito à cidade, onde os escravizados trabalhavam na rua e embolsavam parte do ganho que, poupado ao longo de muitos anos, pagava a liberdade. E era assim, comprada, a maioria das cartas de alforria. Portanto, o liberto era, mais do que um sobrevivente da escravidão, uma espécie de elite da população africana, e o liberto escravista constituía uma elite ainda menor. Eu realmente não sei como isso possa prejudicar, hoje, a condenação moral e a responsabilidade européia pela escravidão moderna. Vai ter gente que dirá, já diz, aliás, que uma vez que existiam negros escravistas e que africanos participaram do tráfico do lado de lá do Atlântico, a escravidão não teria uma dimensão racial. A escravidão moderna, que veio com a primeira globalização e a criação do mundo moderno no século XVI, tem uma dimensão racial evidente. Pelo menos 12 milhões de africanos foram embarcados em negreiros para servir nas plantações das colônias européias, algumas das quais, como o Brasil, continuaram traficando depois da independência. Foi o homem branco que montou a máquina da escravidão em sua dimensão atlântica, ele foi o ator principal, os demais foram coadjuvantes. Por conseqüência, os países escravistas devem sim reparação à África, inclusive o Brasil, que foi o maior consumidor da “carne negra” nas Américas. Que forma vai ter essa reparação, não sei, mas deve ser tal que beneficie o povo africano, não suas elites. Parece radicalismo meu, mas essas coisas são discutidas seriamente em fóruns internacionais, tem professores de direito de universidades importantes buscando caminhos legais para instruir o litígio. Há pouco tempo a Universidade de Yale foi pressionada a adotar uma política de ação afirmativa mais ativa porque se descobriu que a doação para sua fundação veio de dinheiro do tráfico de escravos. No Brasil também tivemos negreiros filantropos, na Bahia o conde Pereira Marinho, por exemplo, que beneficiou a Santa Casa. Não chega a ser a nossa Yale, é claro.

Brasileiros – No livro você mostra que uma das maneiras do negro negociar com brancos era tornar-se adivinho ou curandeiro, adquirindo respeito e ascensão social. Quais eram as outras formas dele ascender numa sociedade escravocrata?
J. J. R. –
Muito trabalho e esperteza comercial. Esse é o caminho convencional. Mas mesmo o liberto rico não tinha o céu como limite. Ele continuava a ser vítima de preconceitos racial, social e étnico. Não podia circular por todos os ambientes abertos aos livres. E se era africano a barra pesava ainda mais. Eu discuto no livro os obstáculos legais e outros que dificultavam a vida dos africanos libertos na Bahia. Eram barrados até no mesmo teatro onde Castro Alves declamava poemas abolicionistas.

Brasileiros – Como o estudo sobre nosso passado no tocante à escravidão pode ajudar na questão do preconceito racial que impera na sociedade brasileira?
J. J. R. –
Conhecer o passado ajuda a gente a se livrar dele, uma máxima banal, já batida, mas ainda útil. Conhecer a genealogia da escravidão é descobrir um aspecto fundamental do processo de constituição do racismo no mundo moderno e essa descoberta deve em alguma medida servir para combatê-lo. Foi com esse espírito que se passou a lei que obriga o ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas brasileiras. Antes disso, era como se o negro não tivesse um passado e por isso se lhe negava um presente. Nossos currículos escolares incluem muitas horas de Europa antiga, medieval, moderna e contemporânea e a África só entra, quando muito, na hora do tráfico e da colonização européia. Por que estudar a Revolução Francesa e não a Revolução Haitiana? Tem alguma coisa errada aí. Felizmente está mudando.

Brasileiros – O que você pensa sobre cotas para negros nas universidades e faculdades adotadas no Brasil?
J. J. R. –
Sou favorável às cotas. Defendi as cotas na minha universidade, a Federal da Bahia. Hoje temos o sistema instalado, com estudantes cotistas se desempenhando bem. Em certos cursos, como medicina, em que a presença negra era historicamente mínima, hoje ela já é visível. Mas adotamos aqui um sistema que combina classe e raça, raça no sentido antropológico e não biológico. Funciona assim: negros e brancos que cursaram os últimos três anos do segundo grau em escola pública estão habilitados a competir pelo sistema de cotas, mas a reserva de vagas para cotistas negros atinge 80%, que é a representação negra na população de Salvador. Tem vagas também para índios. As cotas não resolverão de uma vez a profunda desigualdade entre nós, mas vai amenizar estatísticas que causam vergonha ao Brasil diante do mundo. As cotas azeitam consideravelmente a máquina da mobilidade social, porque educação universitária permanece fator fundamental de ascensão no Brasil. É uma pequena revolução pacífica, não obstante a agressividade verbal que às vezes se percebe nos dois lados do debate, e que vejo como absolutamente normal. Ao contrário dos que acreditam que o racismo vai aumentar com as cotas e outras ações afirmativas, eu aposto no seu declínio. Ademais, o racismo já é grande, se aumentar devido à ascensão do negro, paciência, o negro estará em melhor posição para defender-se.

Brasileiros – Ao estudar a trajetória dos líderes e devotos do candomblé do século XIX, você revelou não só uma mistura entre religiões afro-brasileiras, mas também uma mistura étnica e social.
J. J. R. –
Em trabalhos publicados desde a década de 1980 tenho argumentado que a estratégia de sobrevivência do candomblé não foi o isolamento no interior da comunidade negra, mas o recrutamento de clientes e acólitos fora dela. Brancos e mestiços, embora escondessem, tinham uma mentalidade próxima aos africanos no sentido de que acreditavam, por exemplo, na capacidade de outras pessoas prejudicá-los por meio de feitiço. A feitiçaria, lembro, era importante fenômeno da Europa moderna. Aquelas pessoas da Bahia acreditavam que os africanos eram feiticeiros poderosos. E os procuravam para proteger-se. Muitos deles passaram a proteger esses africanos quando perseguidos pela polícia. Mas a eficácia dessa negociação tinha limites, que eram estabelecidos por um subdelegado ou um chefe de polícia mais intolerante. Narro no livro a história de africanos que, acusados de feitiçaria, foram expulsos do País, e um país onde a feitiçaria nem crime era. Domingos Sodré também foi ameaçado de expulsão e, para evitá-la, foi obrigado a se comprometer junto à polícia a abandonar a vida de adivinho e curandeiro. Creio que ele não foi deportado porque alguém o protegeu.

* Gênero da historiografia que contempla temáticas ligadas ao cotidiano das comunidades, biografias de personagens, na sua maioria anônimos, e que visa observar a História por meio desses assuntos específicos.


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