Donato essencial

À vontade - Bem-humorado, o pianista encara com prazer a extensa agenda de celebrações. Foto: Ekaterina Bashkirova
À VONTADE – Bem-humorado, o pianista encara com prazer a extensa agenda de celebrações. Foto: Ekaterina Bashkirova

“Donato foi a maior revelação da música brasileira nos últimos 40 anos. E na categoria artista jovem.” Quem dimensiona a importância do pianista e compositor acriano João Donato em depoimento à Brasileiros é o escritor Ruy Castro. Em Chega de Saudade e A Onda que se Ergueu no Mar, livros de Ruy dedicados à Bossa Nova, o biógrafo elevou Donato a um patamar equivalente ao de João Gilberto, como dedicado agente de modernização de nossa música popular e um dos artífices do novo gênero musical que conquistou o mundo.

Nascido em Rio Branco, no Acre, Donato foi com a família, aos 14 anos, para o Rio de Janeiro e pretendia se tornar aviador. Mas o daltonismo o obrigou a mudar de planos e se deixar seduzir pela música. Tornou-se exímio acordeonista, trombonista e pianista. E foi no manejo das teclas brancas e pretas do piano, com o toque de cadência irresistível e inconfundível, que ele seduziu ouvintes do mundo todo – primeiro com sua música instrumental de acento moderno, depois com seu canto sussurrado, expresso aos 39 anos, no álbum Quem é Quem – razão pela qual Ruy o chamou de “revelação” na abertura desta entrevista. 

Em 17 de agosto, Donato completará 80 anos, quase 70 deles dedicados à música. Antecipamos nossa homenagem com uma deliciosa entrevista, concedida por telefone, na qual ele relembrou os bastidores de álbuns fundamentais de sua trajetória, gravados nos Estados Unidos e no Brasil. Viva, João Donato!    

Brasileiros – Seus dois primeiros álbuns em formato LP foram gravado no Brasil em 1962, durante breve passagem. A Polydor não tentou manter você no País?
João Donato: Eu morava nos Estados Unidos e o Muito à Vontade (o primeiro deles) foi feito na Polydor, depois de apresentações que fiz com João Gilberto na Itália. Passamos seis semanas tocando juntos em um festival e, nessa breve passagem pelo Brasil, a gravadora resolveu fazer logo dois discos para comemorar meu retorno, o Muito à Vontade e o A Bossa Moderna de Donato e seu Trio. Mas eu não podia ficar, pois tinha vindo com minha filha Jodel, que era recém-nascida.

E como foi voltar a tocar com o baterista Milton Banana e o baixista Tião Neto nessas gravações?
Uma delícia. Éramos parceiros de longa data e isso facilitou as gravações, pois já tínhamos muita intimidade por tocarmos juntos nas madrugadas do Beco das Garrafas (reduto de grandes instrumentistas na Rua Duvivier, em Copacabana).

Você já havia composto os temas ou eles foram escritos durante as gravações?
Eu já tinha algumas ideias encaminhadas, mas a maioria dos temas surgiu no estúdio. Tanto que eles nem tinham nomes. A gente dizia: “Vamos Nessa?”, “Só se for agora!”, “Naquela Base!”. Eram comentários que a gente fazia enquanto ouvíamos as primeiras gravações e foram ficando esses nomes mesmo.

E como foi tocar nos Estados Unidos com ícones do jazz latino, como Cal Tjader, Mongo Santamaria e Tito Puente?
Tive muita influência deles. Meu maior aprendizado nos Estados Unidos foi de música latina e do jazz afro-cubano. Mas toquei por mais tempo com a Orquestra de Johnny Martinez, a mais popular de Los Angeles. Ele gostava muito de mim e permitia que eu saísse para fazer outras coisas. Depois de tocar com Johnny, fui diretor musical da Astrud Gilberto. Trabalhei com ela no primeiro disco (The Astrud Gilberto Album, lançado pela Verve, em 1965 – leia resenha no blog Quintessência) e também fiz a direção musical de vários shows dela que percorreram os Estados Unidos. Também fiz com Astrud alguns shows em Londres.

Em 1965 você gravou um disco com o saxofonista Bud Shank (Bud Shank and His Brazilian Friends), que poderia ter sido assinado em coautoria, pois há nele quatro temas seus…
Levei meu acetato (o LP Muito A Vontade) para os Estados Unidos e recomendado por amigos, como Clare Fischer e Victor Feldman, procurei algumas pequenas companhias de jazz. Tive a ideia de falar também com Richard Bock, diretor da Pacific Jazz, que gravava discos de artistas de quem eu era grande fã, como Gerry Mulligan e Chet Baker. Fui mostrar meu disco para ele ouvir, ele gostou e me disse: “Bud Shank vem aqui amanhã para combinarmos detalhes de um novo álbum e eu e ainda não pensei como ele será feito. Quem sabe vocês não fazem juntos”.

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Você e Bud já se conheciam?
Ainda não. Só conhecia suas gravações. Ele tinha lançado um disco com o Laurindo de Almeida chamado Brazilliance que eu gostava, pois era música brasileira com sotaque de jazz. O Richard me ligou logo após o encontro deles e disse: “Bud gostou da ideia e quer gravar suas músicas”. Convidei os músicos que, naquele ano, acompanhavam o Sergio Mendes nos Estados Unidos: Tião Neto (contrabaixo), Chico Batera (bateria) e a Rosinha de Valença (violão). No ano seguinte, o mesmo disco foi relançado lá com meu nome e o título Sambou Sambou. Foi o começo de minhas aventuras no mercado dos Estados Unidos.

Que depois culminaram em outros três álbuns, um deles, A Bad Donato, o mais experimental da sua carreira…
Exatamente. Antes de fazer o A Bad Donato fui convidado a gravar em Nova York com o maestro Claus Ogerman, o New Sound of Brazil: Piano Sound of João Donato. Pouco depois, viajei para o Japão com o conjunto Bossa Rio, do Pery Ribeiro e da Gracinha Leporace (mulher de Pery, à época). Eles estavam sem pianista para fazer os shows, pois o músico deles não conseguiu visto para viajar e eles me convidaram. Fizemos uma semana de shows e foi nessa viagem que conheci o Bob Krasnow, diretor da Blue Thumb (gravadora americana que lançou Alegria!, o segundo álbum do Bossa Rio). Fomos apresentados e ele falou para mim: “Donato, quando você toca, eu me arrepio todo. Assim que voltar para os Estados Unidos me procure, pois quero muito fazer um disco com você.Grave com quem você quiser, com os instrumentos que você quiser, do jeito e onde você quiser, mas grave”. Quando voltei, não dei muita importância, mas não deu uma semana e o Bob me procurou para fazer o tal disco que havíamos combinado. Ele disse: “Vá às lojas e alugue os instrumentos que você julgar necessários para o disco. Quando estiver tudo pronto, você me liga que a gente marca o estúdio e grava”. Fui a várias lojas, comprei e aluguei uma série de instrumentos, entre eles um Clavinet (teclado de timbre lisérgico, utilizado por Steve Wonder em Superstition), um sintetizador da RMI e outro da Yamaha. Reuni o que havia de mais moderno na época.

É verdade que em Lunar Tune, um dos temas do A Bad Donato, você gravou o solo sob efeito de LSD?
Sim, aconteceu, pois o pessoal da gravadora era muito doido. Foi Bob que insistiu para eu tomar LSD: “Não se preocupe, Donato. É só na hora de você fazer o solo”. Ele foi me cozinhando com esse papo, em banho-maria, até me convencer. Quando chegou a hora do solo, ele me deu uma coisa que parecia uma pedrinha de isqueiro. Rapaz! Tomei aquilo e fiquei doido. Saí metendo a mão em tudo que era botão do teclado. Eu via raios saindo das minhas mãos e do meu corpo. Era pra ser só para a gravação do solo, mas a loucura durou um tempão. Só passou no dia seguinte. Eu via raios luminosos saindo do meu corpo e jurava que todo mundo estava vendo.

 

Ouvindo a gravação é perceptível que há algo de desconexo, não só no solo, mas no tema…
Sim, foi bem maluco. Eu tinha a sensação de que havia uma fitazinha que deslizava no teclado do piano e fazia “uuuuulll, uuuuull”, e continuava apertando as teclas. E a confusão ficou ainda mais doida, pois eu havia colocado um wah-wah (pedal de efeito que tem a sonoridade do nome) no teclado. Mas valeu como experiência. Por aqui o disco só foi sair quase 40 anos depois. É um álbum estranho, mas lá fora causou grande impacto no meio musical. O que fizemos ali acabou virando moda, mas tudo aconteceu por acaso. Eu estava procurando, experimentando.

No final de 1972, você voltou para o Brasil e foi fazer outro clássico de sua discografia, o Quem é Quem, que só agora em 2014 teve o privilégio de tocar ao vivo pela primeira vez.
Antes de fazer o Quem é Quem, fiz outro disco instrumental com o Eumir Deodato, o Donato/Deodato, que saiu pela Muse Records. Depois disso é que voltei de vez para o Brasil. Deixei o disco incompleto e pedi a ele para finalizar. Das seis faixas, deixei apenas três gravadas. Ele acrescentou alguns instrumentos, fez a mixagem e ficou um disquinho bastante simpático.

É também um álbum muito cultuado, porém, li em algumas matérias que vocês romperam a partir de então, por conta de problemas durante a gravação. Isso procede?
Não, não houve nada disso. Sou muito amigo do Eumir e gosto muito dele. É até bom que fique claro que não houve problema algum entre nós, apenas estamos distantes (Deodato mora nos Estados Unidos desde 1967). Admiro e sou muito fã do Eumir, desde que nos conhecemos no final dos anos 1950, no Rio de Janeiro.

OITO EM 80 Ordenadas cronologicamente, as capas dos oito álbuns – quatro brasileiros, quatro feitos nos EUA – comentados por Donato

 

Voltemos então ao Quem é Quem, que além de marcar sua volta ao Brasil é seu primeiro álbum cantado.
Eu gravava pela Odeon e assim que voltei fui encontrar o Marcos Valle na casa dele, pois combinei de gravar um disco sob orientação e produção dele, que também era da gravadora. Até então, eu só tinha gravado música instrumental, mas o Agostinho dos Santos também estava na casa do Marcos, ensaiando uma música que ele iria interpretar em um festival, daí ele disse para mim: “Pô, João, mas você vai gravar um disco tocando piano de novo?! Se eu fosse você gravaria cantando. Você tem músicas lindas, mas que ninguém canta. Coloque letras e cante”. A coisa surgiu como ideia do Agostinho e funcionou, pois depois disso comecei a cantar, e o disco é considerado, hoje, muito importante pela crítica musical brasileira. Já entrou em várias listas de discos mais importantes do Brasil.

Mas à época ninguém deu muita atenção, tanto que você não chegou a fazer shows dele…
O disco não teve nem lançamento oficial. Foi para as lojas sem ninguém dar a mínima e resolvi fazer um “lançamento” maluco na Igreja do Outeiro da Glória. Chamei a Paula Saldanha, que era repórter da Rede Globo, levei uma caixa de discos e, do topo da escadaria, lancei vários LP’s no ar. A turma correndo atrás para tentar pegá-los e o pessoal da Globo filmando. Depois que fiz os shows do Quem é Quem, há alguns meses, lembrei essa história e estão agora tentando recuperar as imagens.

Por que só então você passou a compor em parceria com seu irmão (o poeta Lysias Enio)?
Eu fui morar nos Estados Unidos, em 1959, e ele ficou por aqui. Eventualmente, ele escrevia alguma coisa para mim, mas nos encontrávamos muito pouco, até que voltei no final de 1972 e surgiu a ideia do disco cantado. As gravações estavam marcadas para a semana seguinte, ainda não havia letras e foi uma correria danada. Pedimos letras para Marcos Valle, Dorival Caymmi, Paulo César Pinheiro, Paulo Sérgio Valle, João Carlos Pádua e meu irmão. Nessa correria, lá pelas tantas, perceberam que a mesma música acabou indo para mais de um letrista e Lysias ficou todo contente porque também havia entrado letras dele.


 
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A letra do Caymmi é, na verdade, uma música baiana de domínio popular, não?
Cala Boca, Menino era apenas um riff, um loop que eu inventei no estúdio e ia dar a ele o nome de Vietnam e Coca-Cola. Mas aí a Nana (filha de Dorival, que participou de Quem é Quem) começou a cantar em cima “Cala boca, menino / seu pai logo vem / ele foi pro cabula / foi comer jaca mole, da cabeça dura”. Eu falei: “Pô, que música é essa Nana?”. Ela disse: “É do meu pai”. Liguei na hora para o Caymmi, pedi a ele autorização para gravar a música, e ele disse: “Não é minha, mas eu assumo. Põe meu nome aí!”.

Depois disso, você  emplacou outro grande álbum com Gilberto Gil. Como foi feito o Lugar Comum?
Nessa época eu estava tocando com a Gal Costa. Fiz com ela o Cantar (álbum da cantora, de 1974), e o Gal Canta Caymmi (sucessor de Cantar, de 1976). Passei a ter muitos encontros com o Gil e o Caetano, que era diretor artístico dos shows da Gal. Eu ia muito à casa do Caetano e estavam sempre por lá o Gil, a Bethânia. O pessoal da Odeon me deixou ir embora porque meu disco não tinha atingido um índice satisfatório de vendas, mas depois o Mariozinho Rocha (um dos diretores da Odeon) tentou me chamar de volta: “Nós pensamos melhor e não tem problema algum se o seu disco não vendeu tanto, porque aqui na Odeon tem outros artistas que também não vendem muito e nem por isso saíram da gravadora. Se eles continuam na companhia é porque são nomes de prestígio, como você”. Mas aí já era tarde. Eu estava trabalhando com a Gal e a turma dos baianos, que era empresariada pelo Guilherme Araújo, toda ela gravava pela Philips. Disse ao Mariozinho que não podia voltar, pois já havia me comprometido com Guilherme e a Philips. Foi então que nesses encontros com Caetano para o show da Gal ele acabou fazendo a letra de a , que ela gravou no Cantar. Pouco depois, o Gil fez um monte de letras para mim e gravamos o Lugar Comum.

De sua extensa discografia, tem alguma preferência?
Dos discos recentes, gosto muito de um que gravei em 2010, o Sambolero que, inclusive, ganhou o Grammy Latino.

E como está a agenda comemorativa dos 80 anos? No ano passado, você mencionou em entrevistas um novo projeto que envolveria bossa e música erudita…
No início de julho vou gravar um novo disco instrumental, mas logo sairão dois ao vivo – Live Jazz in Rio vol. I e II, pela Discobertas, gravados em dezembro do ano passado. Marcelo Fróes (dono do selo) vai também lançar uma caixa com três álbuns inéditos dos anos 1970 e 80. Também estou preparando essa peça sinfônica baseada em temas de Ravel e Debussy, mas que será tocada com piano, baixo e bateria, para fazer algo mais pop. A bossa, o jazz, a música de cinema, têm muita influência do Debussy e do Ravel. Também fui convidado a fazer dois discos no Japão e ainda tenho uma pendência com meu filho Donatinho, pois quero gravar com ele. O ano vai ser de muito trabalho.

Olhando em retrospectiva, que balanço você faz desses 80 anos de vida e quase 70 de carreira?
Sinto-me realizado, satisfeito e muito contente com o rumo que minha vida levou. A música foi a arte que resolvi abraçar quando fui reprovado como piloto de avião, por causa do meu daltonismo, e desde muito cedo me voltei totalmente para a música. Não me arrependo de nada e faria tudo de novo – claro, com alguma melhora aqui e ali. I

Ouça a íntegra, disponível na internet, de três dos oito álbuns comentados na entrevista:

Muito à Vontade (1962); A Bad Donato (1970); Quem é Quem (1973) 


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