A educação do sertão

Foto: Helio Campos Mello
Foto: Helio Campos Mello

Foi numa cidade chamada Esperança, no sertão da Paraíba, que os pais de Mauricelia Vidal decidiram virar comerciantes. Agricultores e filhos de agricultores, queriam que os filhos tivessem uma vida melhor do que a família levara até então.

Semianalfabetos, passaram a vender roupas na feira da cidade. Até os 12 anos, Mauricelia saía de casa às 5 horas da manhã para trabalhar com os pais. Dessa época, lembra-se das madrugadas geladas na cidade de brejo, o frio que fazia soltar fumaça pela boca. No período da tarde, ia à escola.

E assim foi a infância de Mauricelia, a mais velha de uma escadinha de sete filhos. A diferença entre ela e a mais nova é de nove anos, sendo que dois irmãos do meio têm a mesma idade durante dois meses do ano. “Acho que não tinha muita diversão nessa época”, ri.

A família toda vivia numa casa de cerca de 30 metros quadrados: uma sala pequena, o quarto dos pais com os filhos menores e o segundo dormitório com uma cama de casal e um colchão de palha no chão, com cobertura de chita, onde as quatro meninas dormiam. “Quando era criança, achava tudo tão grande. Voltei para lá adulta e vi como era pequeno. Eu só tenho duas filhas, moro numa casa de 100 metros quadrados e já acho apertado”, diz Mauricelia, que hoje é doutoranda em Administração e diretora regional na DeVry Educacional do Brasil – empresa norte-americana com 16 faculdades no País.

Os filhos e o pai, Genival Bezerra da Costa, aluno do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), aprenderam a ler na mesma época. A revista Nosso Amiguinho, criada nos anos 1950 pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, e assinada pelo pai, foi o primeiro contato de Mauricelia com a literatura, hábito que levaria dali em diante. “Devia ser uma fortuna para a gente naquela época”, diz ela. Tempos depois descobriu a biblioteca da escola, onde gastava o tempo que restava entre os estudos e a feira. “Ainda hoje sou assim, leio cinco, seis livros por mês. Não me pergunte como”, conta.

Em Esperança não tinha faculdade. Os filhos deixariam de ser agricultores para serem comerciantes, mas o pai queria que fossem além. A família então se mudou para Campina Grande, um polo educacional. Lá apareceu a oportunidade de abrir uma pequena padaria e vender salgadinhos para lanchonetes escolares.

Levando bandejas de coxinhas e pastéis, descobririam o universo das escolas de alto padrão. “Até o filho número 4 trabalhava. Os três últimos tiveram uma vidinha melhor”, diz Mauricelia, que ia com a “irmã número 2”, Marilene, fazer as entregas. “A gente estudava nas escolas públicas, aquilo que a gente via era um sonho distante.” Em determinado momento, um colégio tradicional da cidade aceitou trocar a compra de salgados pela matrícula de um filho. Mauricelia foi a escolhida e entrou no primeiro ano do ensino médio.

Aos 16 anos, foi aprovada na Universidade Federal de Campina Grande – a primeira da família a entrar na faculdade. Queria ser astronauta, mas cursou Administração. “Eu assistia muita tevê, lia muito sobre astronomia e física. Custa US$ 60 bilhões para ir a Marte, ainda tenho fé que alguém me pague essa viagem”, brinca.

Da feira à faculdade: Da esq. para a dir., as irmãs Gerlânia, Marlene, Mauricelia, com 8 anos, e Augusta. Foto: Arquivo Pessoal
Da feira à faculdade:
Da esq. para a dir., as irmãs Gerlânia, Marlene, Mauricelia, com 8 anos, e Augusta. Foto: Arquivo Pessoal

Quando entrou para o ensino superior, em meados dos anos 90, Mauricelia passou a fazer parte de um seleto grupo da população brasileira: apenas 5% cursava faculdade, diz ela. “Eu não tinha essa noção. Achei normal entrar. Mas quando vim trabalhar com educação, em 2000, ainda éramos 16% com ensino superior. Hoje chegamos a 30%, o que ainda é um número muito baixo.”
Os colegas de faculdade eram jovens ricos, filhos de políticos e de grandes comerciantes. Mauricelia, sem carro, precisava pegar dois ônibus para chegar. Trocava lanches e caronas por monitorias: “Ia para a casa das amigas, aquelas casas lindas. E eu morando num beco”.

Com 18 anos, Mauricelia conseguiu juntar dinheiro para assinar a revista Minha, que vinha com uma promoção de 24 clássicos da literatura mundial. O primeiro foi Romeu e Julieta, de William Shakespeare, depois O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Mauricelia comprou e leu até o volume 16. Depois voltava ao primeiro e relia tudo. “Minha mente fervilhava, era tímida na escola, afastada, meio autista. Enquanto eu lia Escola de Mulheres, de Molière, lembro que eu ria. Eu não era muito de sorrir. Minha mãe olhava e perguntava: ‘Você tem problema? Por que você está rindo?’.”

Terminado o curso de Administração, não conseguiu um emprego. O período coincidiu com a separação dos pais e o fim do negócio familiar. Os filhos então tiveram que garantir alguma fonte de renda.

A “irmã número 2” cursava Economia e contou para Mauricelia da existência de uma bolsa de mestrado, de R$ 724. “Para mim era uma fortuna. E só 5% dos mestres no Brasil eram desempregados. Aí fomos atrás, mas era de economia política: Marx, Weber, Rosa de Luxemburgo, de uma complexidade que só petista de esquerda sabe.”

Marlene já tinha lido a bibliografia necessária durante a faculdade, então fez um fichamento dos textos para Mauricelia. Escreveu também o projeto de mestrado que a irmã defenderia. Eram apenas cinco vagas.

Na hora da entrevista, Mauricelia foi dispensada após 20 minutos – muito menos tempo do que os outros candidatos. Saiu da sala e se deparou com o olhar preocupado da irmã: “Se lascasse”, lamentou.

O resultado saiu e ambas tinham passado. “Foi aquela alegria! Eu comprei um carro, um Chevette, com esse dinheiro. Era uma diferença estúpida de vida com a bolsa. Foram dois anos de estudos violentos.”

Mauricelia com 17 anos no primeiro semestre da faculdade de Administração. Foto: Arquivo Pessoal
Mauricelia com 17 anos no primeiro semestre da faculdade de Administração. Foto: Arquivo Pessoal

Ao se aproximar do fim do mestrado e, por- tanto, da bolsa de estudos, Mauricelia se deu conta de que o trabalho de um mestre era dar aula. Mas até abrir um concurso e começar a trabalhar de fato, como conseguiria dinheiro? Desesperada, foi procurar vaga de professora em faculdades privadas. Avisada de que seria aberta a Faculdade do Vale do Ipojuca, a Favip, em Caruaru (PE), Mauricelia e a irmã mandaram os currículos. “Meu mundo era muito limitado, nunca tinha ouvido falar em Caruaru, nem sabia onde ficava. Mandamos os currículos, e é onde estou até hoje, depois de 15 anos.”

Chegando lá, o corpo docente para o curso de Administração já estava completo. Mas o diretor, ao saber que Mauricelia era mestre, a convidou para ser coordenadora.
Voltou para casa, comprou uma mala “para não parecer uma retirante com saco na mão” e preparou a mudança para Caruaru. Quando chegou, descobriu que nenhum dos outros cursos tinha coordenador, então assumiu a coordenadoria geral. “Comecei a ler, ler e aprender. É a minha principal característica: aprender. Legislação, Ministério da Educação, fazer prova de vestibular”. Mauricelia colocou a faculdade para funcionar em seis meses. Alguns anos depois, foi chamada para assumir a direção.

Em 2012, a faculdade foi colocada à venda e comprada pelo grupo DeVry. A equipe da diretoria foi toda demitida – menos Mauricelia. “Acabei me destacando, conduzi bem a transição, e viramos uma estrela na DeVry”, diz. A faculdade, que começou com 300 alunos, hoje tem 10 mil. “Caruaru tem 300 mil habitantes. Até a gente existir, só havia outras duas instituições e paradas no tempo, com dois cursos cada. As pessoas saíam da cidade para estudar em Campina Grande ou João Pessoa e não voltavam mais. A cidade estava morrendo. A elite intelectual estava indo embora. Caruaru era conhecida só pela feira e pelo São João.”

Segundo Mauricelia, a Favip começou a atrair a população das 60 cidades no raio de 60 quilômetros de Caruaru. “Eram pessoas que não se viam com oportunidade de estudar e que agora tinham. E a gente teve a sorte de coincidir com o boom econômico do Brasil, a mudança da classe média, os financiamentos, o Prouni, o Fies. Teve toda uma conjuntura que ajudou. Quando eu olho para os nossos alunos, vejo que são pessoas como eu: filhos de agricultores, a primeira geração da família a fazer faculdade.”

Com o tempo, Mauricelia foi chamada a gerir outras quatro unidades, na Bahia, em Pernambuco e na Paraíba. Em 2014, foi eleita pela DeVry a melhor gestora do ano. No dia seguinte à premiação, nos Estados Unidos, recebeu a notícia da morte do pai, que sofria da doença de Chagas há anos. “A pobreza matou meu pai”, diz ela.“Um casal de semianalfabetos com três professores e doutores em casa. É assim que a gente muda o mundo. Por isso que eu gosto do trabalho com educação.”


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