Elas tecem o futuro

Na Associação das Rendeiras de Morros da Mariana, cada telefonema é uma surpresa. Agora, a ligação é de Portugal. Gente interessada em fazer encomendas. Quem atende é Maria do Socorro Reis Galeno. Ela é a presidente e a porta-voz da trajetória do grupo criado em 1992 e sediado no ensolarado município de Parnaíba, no Piauí, à beira de um dos mais lindos deltas do mundo.

Nesse momento, dez artesãs estão espalhadas pelos dois pavimentos da Casa das Rendeiras, a 15 minutos do centro da cidade. O som varia entre a conversa animada das mulheres e o delicado toque dos bilros. São pequenas hastes de madeira com uma das extremidades maior e arredondada, que as rendeiras jogam de um lado para outro sobre uma almofada, em um balé de fios ritmado.
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Socorro tem 57 anos e sua história se confunde com a de outras mulheres da região. Ela carrega a tradição do artesanato têxtil dos bilros, que surgiu na Itália no século XV e chegou ao Brasil por intermédio dos portugueses. Socorro começou a participar de um grupo informal que gostava de ficar trançando os fios e jogando conversa fora. Da prosa, saíam panos de bandeja, palas para roupa e toalhas de mesa. Alguns moradores de Parnaíba enxergaram ali um potencial de lucro e passaram a vender “para as pessoas ricas”.

Um desses abonados compradores foi a então primeira-dama do Estado, Carlota Freitas, que, encantada com o trabalho, sugeriu que as rendeiras se unissem. Além disso, usou sua influência política para conseguir uma sede para a recém-formada associação. O Sebrae (Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa) local ajudou nos trâmites burocráticos. O futuro parecia promissor. Contudo, durante os oito primeiros anos, não havia clientes suficientes para justificar a produção. Socorro relembra: “Ninguém vinha até aqui. A turma foi se dispersando. Eu mesma arrumei outro emprego”. Apesar de tudo, ela continuou esperançosa no futuro da associação.

Quando tudo parecia perdido, um antigo catálogo do Sebrae caiu nas mãos do influente estilista paulista Walter Rodrigues. O grupo, que estava agonizando, ganhou o fôlego definitivo e em grande estilo. Socorro conta: “A gente não sabia o que era estilista, não sabia o que era São Paulo Fashion Week, mas tinha a certeza de que era coisa boa”. Ela bateu de porta em porta convocando as rendeiras para a grande empreitada.

O estilista renomado foi ao Piauí monitorar as encomendas. Depois de anos trabalhando praticamente às escondidas, as rendeiras começaram o milênio viajando pela primeira vez de avião. Socorro, acompanhada de duas colegas, foi ao desfile na festejada semana de moda paulistana. Viram de perto seu trabalho na coleção primavera-verão 2001/2002 da grife Walter Rodrigues.

O telefone toca novamente. Duas estilistas recém-formadas do interior de São Paulo acertam os últimos detalhes da estada no Morro da Mariana. “Elas têm conhecimento e podem trazer ideias novas para a gente”, anima-se a rendeira. Por enquanto, Socorro é a designer oficial das rendas. Ela faz os desenhos que servirão de base para um fino artesanato. As colegas de trabalho ainda não se aventuram. Dizem que não têm “o dom” do desenho.

Depois de Walter Rodrigues, três designers holandesas também trocaram conhecimento com as rendeiras e, assim, surgiram novos desenhos, fios, cores e utilidades para a renda. Além dos básicos panos de bandeja, as rendeiras passaram a fazer colares, brincos, blusas e vestidos. Também aprenderam a utilizar formatos de flor nos desenhos.

Essas flores cultivadas nos bilros de Parnaíba chegaram ao ponto mais alto do poder. A primeira-dama Marisa Letícia usou um vestido amarelo com as rendas piauienses na posse do segundo mandato do presidente Lula. A foto está pregada na parede da Associação e devidamente autografada.

Na era da renda como objeto de desejo dos estilistas e dos consumidores, as rendeiras receberam, no ano passado, o Prêmio Sebrae TOP 100, concedido às cem unidades de artesanato mais competitivas do País. Também conseguiram patrocínio da Petrobras para a reforma da sede e para a produção de um vídeo. O espaço ganhou mais um pavimento. Hoje, no térreo, há uma loja, o escritório e parte das vitrines horizontais com amostras de rendas antigas. No piso superior fica o restante da memória das rendeiras. Duas varandas arejadas são a defesa da casa contra o calor abrasador. As almofadas onde são feitas as rendas estão por toda a casa.

A memória da técnica estava em uma caixa de sapato de Dona Zezé, a guardiã do saber que norteia a nova geração de artesãs, tia de Socorro. “Ela separava uma amostra de cada renda que fazia e também do trabalho da minha avó e bisavó.”

A prática da renda está deixando, aos poucos, o âmbito familiar, em virtude dos cursos de capacitação. Hoje, são 120 rendeiras associadas. Cada uma contribui com R$ 5 por mês. Basta. O dinheiro da venda da renda é entregue integralmente a quem fez o trabalho.

O perfil das rendeiras da associação é eclético. Há gente dos 20 aos 60 anos. São poucas as que encaram a atividade como profissão. Menos da metade das associadas dedicam-se com afinco. Socorro explica: “Para ser rendeira, em primeiro lugar, é necessário muita paciência, muita força de vontade e gostar de trabalho”. Um simples pano de bandeja pode exigir duas semanas de lida. “Quem se aplica mesmo, consegue tirar um salário mínimo por mês.” Socorro lamenta que algumas mulheres ainda esbarram no preconceito dos maridos, que não as deixam trabalhar.

Hoje, as rendeiras piauienses pecam pelo excesso de fama. O número de artesãs ativas não é suficiente para atender a demanda. Melhor assim.

Neili Pereira do Prado, 34 anos é a funcionária modelo. Ela abre a Associação às seis da manhã, sai para fazer o almoço, volta à tarde. Mais uma vez, é Socorro quem comenta: “Tem dias que ela fica até as nove da noite. Todas deveriam ser assim, mas muitas não têm paciência”. Neili comemora a ajuda que dá no sustento da casa. “Compro roupa para minha filha, remédios e pago uma conta ou outra.”

Aiane Costa da Silva, 21 anos, representa um novo perfil de rendeiras. Ela aprendeu o ofício em cursos de capacitação. Aiane ajuda a família com uma média de R$ 150 por mês. E também aproveita a habilidade para enfeitar as próprias roupas. Uma raridade entre as artesãs. Elas adoram trabalhar para estilistas, mas acreditam que a moda não é para elas. “Eu acho bonito, mas não me vejo usando aquelas roupas que aparecem na televisão”, confessa Neili.

O telefone toca outra vez. Do outro lado da linha era alguém de Minas Gerais interessado em começar na arte dos bilros via cartilha. Socorro garante que não tem a vaga ideia do fato de tanta gente conseguir o número telefônico da Associação. Mas o baile dos bilros só se aprende ao vivo. “Quando você está na almofada, menino chora, panela queima, marido briga, você se esquece do mundo.” Ela vira o rosto e se concentra para terminar mais um ponto.

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