A busca pelo Hélio Oiticica escritor levou Frederico Coelho ao encontro de um projeto de livro nunca materializado. Graças à liberação de documentos do artista plástico, permitidos pelo Projeto HO, o historiador pôde debruçar-se sobre os arquivos chamados Conglomerados, reunindo o que seria a estreia literária de Oiticica, batizada Newyorkaises. O resultado é Livro ou Livro-me – Os escritos babilônicos de Hélio Oiticica que acaba de ser lançado pela EdUERJ. Graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coelho especializou-se em história cultural brasileira, com principal atenção aos movimentos ligados à contracultura e a arte dita marginal. Recentemente, também publicou, pela Civilização Brasileira, Eu, Brasileiro, Confesso Minha Culpa e Meu Pecado – Cultura Marginal no Brasil das Décadas de 1960 e 1970, no qual analisa o movimento contracultural brasileiro com principal foco no poeta Torquato Neto e Hélio Oiticica. Seu contato com os escritos Babilônicos de Hélio Oiticica deu-se durante a preparação de sua tese de doutorado pela PUC-Rio. Em entrevista à Brasileiros, o autor conta que em posse do material escrito também viajou a Manhattan para entrevistar pessoas, pesquisar o ambiente cultural da fase babilônica do artista e descobrir o Hélio de carne e osso.
Brasileiros – Como foi seu primeiro contato com os Conglomerados/Newyorkaises de Hélio Oiticica e como surgiu a ideia do livro?
Frederico Coelho – O livro é decorrência do meu doutorado em Literatura na PUC-Rio. A ideia inicial era pesquisar os textos de Oiticica, a partir da liberação de boa parte de seu arquivo pelo Projeto HO. O acesso aos documentos me permitiu entrar em contato com uma série de registros até então inéditos. Entre seus milhares de textos, optei por trabalhar com o diálogo dele com o universo da leitura e da escrita – da literatura, enfim. Mesmo assim, o recorte ainda era amplo e tive de buscar um tema mais circunscrito para desenvolver a pesquisa. Foi então que percebi entre os seus documentos um fio condutor que organizava sua escrita durante o período em que ele viveu em Manhattan. Era as Newyorkaises, seu projeto de livro – que por fim tornou-se o grande arquivo de pastas e textos batizado de Conglomerado.
Brasileiros – Pode-se falar sobre a importância de Silviano Santiago, Waly Salomão e os irmãos Campos para este trabalho de Oiticica e a influência das obras Galáxias e Me Segura…?
F.C. – Tanto esses autores quanto seus livros foram fundamentais para que Oiticica formulasse um projeto de publicação. Além de seus textos, foram amigos pessoais, conversavam periodicamente com ele durante uma época de sua vida e, por isso, tiveram grande presença na vida e nas ideias de Hélio. Os livros que publicaram nessa época – Galáxias (Haroldo de Campos), Colideuscapo (Augusto de Campos), Salto (Silviano Santiago) e Me Segura que Eu Vou Dar um Troço (Waly Salomão) – foram fontes não só de leituras como também de reflexão sobre suas estratégias literárias, sua relação com a página em branco, seus formatos, etc. Ler os amigos – e outros livros -era, também, ter ideias para o seu próprio livro.
Brasileiros – Como foi feita a pesquisa e quais as principais dificuldades de escrever sobre uma obra que, se não pode ser chamada de inconclusa, está em aberto?
F.C. – O trabalho de pesquisa foi intenso, porém foi facilitado pelo acesso aos documentos escaneados de Oiticica que o Projeto HO realizou alguns anos atrás. Eu tinha em meu computador todos os documentos à disposição – cartas, cadernos, projetos, manuscritos, os textos da publicação, etc. – e podia manuseá-los com plena liberdade. A pesquisa, porém, não foi apenas com os textos de Oiticica. Passei oito meses em Manhattan estudando a cena cultural da cidade durante o período de estadia de Oiticica, lendo os livros que ele leu, as revistas da época, mapeando os locais onde ele circulou, entrevistando amigos próximos… Esse período foi fundamental para que eu criasse uma relação produtiva entre o personagem que escrevia nos documentos e o Oiticica de carne e osso que vivia o dia a dia por trás daqueles textos.
Sobre o livro em aberto, desde o princípio eu sabia que o fim da pesquisa seria inconclusa mesmo, de acordo com a natureza do meu objeto. Trabalhar com um livro que “não existiu” faz com que o processo de elaboração dele seja o principal tema e não a obra em si. Aliás, quase toda a obra de Oiticica, dependendo do ponto de vista, está em aberto, já que ele foi sempre um criador que acreditava na ideia de work in progress, ou seja, trabalhos sempre abertos para novas investidas experimentais.
Brasileiros – Como você mesmo diz em seu livro, até seus últimos dias, Hélio Oiticica manteve a promessa de publicar o material. Você acredita que, se em um primeiro momento, havia um desejo de publicar e materializar a obra em livro, com o tempo, o próprio Oiticica percebeu que seu grande valor estivesse na impossibilidade, deixando-o assim como uma herança ou última cartada para futuros estudiosos de sua obra como você?
F.C. – Talvez sim. Inclusive uso no livro a ideia de “desejo de livro” e não propriamente um livro. O que ele deixou em suas cartas e documentos foram os rastros de que estava fazendo algo, e isso era o livro, as Newyorkaises. Ele narrou para muitos o passo a passo, o processo de feitura, as dificuldades de organizar tanto material, as traduções dos textos, tudo. Mas o que realmente importava para ele, na minha perspectiva, era ter um motivo concreto para produzir seus textos em série. A escrita era mais importante que o produto, eu diria. Publicar o livro era uma solução pragmática de viabilizar e dar visibilidade para o seu trabalho e suas ideias em um período de afastamento do meio artístico brasileiro. Quando ele volta ao Brasil, reativa sua energia criativa em relação a suas obras plásticas e ações coletivas e o assunto do livro cai no silêncio. Não sabemos se ele publicaria o material em partes, se tentaria fazer o livro todo, se ele deixaria no arquivo como algo “que já passou”. Infelizmente, ele morreu logo depois do seu retorno (1980) e o que ficou para nós foi isso: uma promessa de livro que nunca se cumpriu e nunca será cumprida.
Brasileiros – Seu primeiro livro, Eu, Brasileiro, Confesso…, versa sobre a contracultura/marginália brasileira dos anos 1960/70. Por que a escolha do tema?
F.C. – O livro é fruto da minha dissertação de mestrado escrita em 2001/2002. A ideia surgiu a partir do meu trabalho de pesquisador que sempre investiu no que chamamos na historiografia de História Cultural, isso é, a história dos movimentos artísticos e das grandes transformações no âmbito da cultura. Eu já trabalhava com o papel da música popular nos debates políticos dos anos 1960 e quando descobri a obra de Torquato Neto, Hélio Oiticica, Waly Salomão e outros dessa geração, eu decidi que dedicaria meu estudo não só a essas trajetórias como ao debate sobre o porquê desses nomes serem, até então, quase esquecidos quando a historiografia brasileira trabalhava com a produção cultural dos anos 1960 e 1970. Incomodavam-me certas certezas históricas e a repetição dos mesmos nomes para se falar sobre esse período cultural no País. Como historiador, meu objetivo era deslocar o debate crítico para novos temas, fontes e personagens que eram, sempre, reféns de categorias pouco claras e, às vezes, pejorativas, como desbundados, marginais, alternativos, etc.
Brasileiros – Você acha que a importância que os pesquisadores desse período dão ao Tropicalismo ou à contracultura musical acaba deixando de fora ou, pelo menos, em segundo plano, personagens fundamentais de outras frentes de atuação?
F.C. – Sem dúvida. Mas isso melhorou muito de alguns anos para cá. A renovação geracional de pesquisadores fez com que as novas análises, dissertações, teses e livros sobre o tema tragam novos olhares. Por não terem vivido o período, por não terem se relacionado subjetivamente com a época, ocorre naturalmente uma abertura de opiniões, uma busca por novas fontes que não as consagradas, etc. Mas, mesmo assim, ainda vemos muitas repetições de lugares comuns que nunca incluem novas abordagens. Por exemplo, nomes como Rogério Duarte, José Agripino de Paula, Waly Salomão, José Carlos Capinam, André Oliveira, os Novos Baianos, Jards Macalé e muitos outros ainda são pouquíssimo citados, estudados ou relacionados aos melhores momentos da nossa cultura recente. A questão não é substituir os heróis, mas sim ampliar a informação. O Tropicalismo foi o grande momento de despressurização da geração, mas não iniciou e nem terminou todo um processo de renovação do fazer cultural e da reflexão crítica no País (podemos dizer por alto que tal processo se iniciou em meados dos anos 1950 e terminou em meados dos anos 1980).
Brasileiros – Hélio Oiticica e Torquato Neto são personagens emblemáticos de nossa história cultural recente e, principalmente após a leitura de seus livros, quanto mais estudamos sobre suas vidas e obras, a impressão é que muito ainda está por ser descoberto. Ainda há muito que ser dito sobre os dois?
F.C. – Muito. Não falamos nada ainda. A obra de Torquato, pelo seu caráter trágico e romântico (o poeta suicida), já está bem mapeada e com trabalhos bons publicados sobre ele por aí. Mas ainda há muitos cruzamentos, registros, muitas possibilidades para se estudá-la. Já a obra de Hélio, para além de sua complexidade no meio das artes visuais, é um campo vasto que só começamos a explorar. Há inúmeros temas, inúmeras abordagens, caminhos, análises, há muito por ser feito caso queiram estudar seus escritos. Oiticica produziu em pouco mais de 20 anos uma massa impressionante de impressões, reflexões e criações. O trabalho ali é realmente gigantesco.
Brasileiros – Novo projeto em andamento? Pretende continuar mantendo o foco na cultura marginal dos anos 1960/70?
F.C. – Bem, após o doutorado, estou fazendo outras coisas que não sejam apenas pesquisas. Mas meu próximo projeto, se tudo der certo, será dar um passo além e estudar a virada das décadas seguintes: 1970/80. A ideia é mostrar como que a radicalidade estética dos anos 1960/70 possibilitaram de certa forma a constituição de um campo autônomo – e um mercado profissional – para o produtor cultural no Rio de Janeiro. Estudar e relacionar a produção e trajetórias ligadas a grupos e eventos como o Nuvem Cigana, Asdrúbal Trouxe o Trombone, a cena de artes visuais ao redor dos cursos do Parque Lage, o papel do MAM, o Circo Voador e o Rock carioca, etc. Mas ainda estou iniciando. Esse será, provavelmente, meu próximo projeto pessoal de pesquisa.
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