“Em uma democracia, a prioridade é dos pedestres e das bicicletas”

Peñalosa em uma das ciclorutas de Bogotá. Foto: Revista Brasileiros
Peñalosa em uma das ciclorutas de Bogotá. Foto: Revista Brasileiros

Enrique Peñalosa é um apaixonado por mobilidade urbana e – especialmente – pelo lugar das bicicletas nesta discussão. Tal sentimento é explícito nas palavras concedidas à Brasileiros em seu escritório, no centro de Bogotá, capital da Colômbia e cidade que governou por três anos (1997-2000). Da janela, uma das principais ciclovias da metrópole colombiana se enche de ciclistas cada vez que o semáforo abre passagem para os carros em outra avenida, esta também fechada para o trânsito e aberta para as bikes aos finais de semana. “Em uma sociedade democrática, a prioridade é dos pedestres, depois das bicicletas, depois do transporte público e só depois dos carros”, diz ele. Bogotá tem – muito por sua intervenção quando prefeito – cerca de 350 quilômetros de ciclorutas (as tradicionais ciclovias) e outros 120 quilômetros de ciclovías (o que chamamos, em São Paulo, de ciclofaixas) que abrem apenas aos sábados e domingos. Assim, nestes dois dias da semana a capital colombiana soma mais de 400 quilômetros de espaços exclusivos para usuários de bicicletas, o que lhe dá o rótulo de maior malha cicloviária da América Latina e uma das maiores do mundo.

Estadunidense de nascimento, Peñalosa entrou na política colombiana por influência do pai, Enrique Peñalosa Camargo, um intelectual de direita que chegou a ser Ministro da Agricultura da Colômbia, morto em 1998. Além de prefeito de Bogotá, foi parlamentar pela cidade (no país, a representação proporcional é diferente da brasileira) entre 1990 e 1992, quando iniciava sua carreira no poder público, pelo Partido Liberal. Apesar do relativo sucesso, Enrique perdeu as duas últimas eleições municipais, em 2007 e 2011, além de ser apenas o quarto candidato mais votado no pleito presidencial deste ano, já filiado ao Partido Verde, vencido por Juan Manuel Santos. Na Colômbia, os jornais o tratam como “grande administrador e péssimo político” e desta mesma forma as pessoas comuns o enxergam. “A cidade estava muito mais bem cuidada quando ele foi nosso prefeito, não tem comparação, mas ele não sabe lidar com as alianças e atender todos os interesses que a política colombiana precisa”, conta a recepcionista Verônica Jiménez. 

A entrevista completa com Peñalosa você lê abaixo:

Brasileiros – O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, está encontrando dificuldades para encontrar apoio relevante na implantação de ciclovias na cidade. Em Bogotá – durante sua gestão – aconteceu coisa igual. Por que essa reação?

Enrique Peñalosa: Eu estou seguro de que a Constituição do Brasil diz em seu primeiro artigo que todos os cidadãos são iguais. Então, é bom lembrar que todos têm o mesmo direito ao espaço da rua. Por isso, uma bicicleta tem o mesmo direito de usar as vias da cidade do que um carro. A questão é: como distribuir esse espaço entre os edifícios? Esse espaço entre os prédios é de todos, não pertence a alguém que possui um carro de 10 milhões de reais ou a alguém que tem uma bicicleta ou anda a pé. Em uma sociedade democrática, a prioridade é dos pedestres, depois das bicicletas, depois do transporte público e só depois dos carros. Neste mundo atual, as calçadas são um direito, não um detalhe arquitetônico agradável. A menos que achemos que os únicos que têm o direito de circular sem serem mortos são os que andam de carro. Ter ciclovias também é um direito. O que quero dizer com isso? Se um ciclista for atropelado em uma rua onde não há ciclovia, o Estado deve ser processado e deve pagar milhões de dólares para a vítima por não ter dado garantia mínima para a mobilidade e segurança. Uma ciclovia bem feita, bem protegida, bem demarcada, não só protege o ciclista, mas também aumenta o status social dele, mostra que um cidadão em uma bicicleta de 30 dólares é igualmente importante que um cidadão em um carro de 30 mil dólares.

Brasileiros – Em Bogotá já é possível notar essa mudança social?

Enrique Peñalosa: Na Colômbia, e em Bogotá especialmente, a importância de termos construído ciclovias é que notamos o aumento da condição social dos ciclistas. Antes delas, os cidadãos mais pobres ficavam envergonhados, as pessoas tinham pena por ver alguém andando de bike. Quando fizemos as ciclovias, há 15 anos, apenas os pobres as usavam. Os setores mais ricos não passavam por elas, e agora até essas camadas mais altas também estão usando as ciclovias. Houve uma grande mudança. Quando fizemos as ciclovias em Bogotá, apenas 0,2% da população se movia de bicicleta pela cidade. Hoje é cerca de 7% da população andando por toda Bogotá com esse meio de transporte, mais 20% em carros particulares. Ou seja: para cada três pessoas que andam de carro, uma anda de bicicleta. Claro que falta muito, falta muitíssimo, mas de novo: o grande debate ideológico é como distribuir esse espaço. Em São Paulo e em quase todas as grandes cidades do mundo se atribui mais espaço para os carros estacionados do que para os carros que estão andando ou para os pedestres. Quem decidiu isso? Como foi decidido? Esta não é uma decisão técnica. Vamos recordar que o estacionamento não é um direito, não há na constituição uma regra para os carros estacionados na rua. Outra coisa: quem anda de bicicleta em uma cidade como essa é um herói social. Deveriam ser premiados pela sociedade. Eles poluem menos, não emitem ruídos, não geram risco de morte para os outros, não ocupam tanto espaço. A sociedade deveria ser grata aos ciclistas. Deveria premiá-los, e não apenas com ciclovias protegidas. Mais: deveria criar formas para que os ciclistas entrem em edifícios, em elevadores, porque é muito curioso que os prédios permitam pessoas com seus cachorros molhados, que se sacodem e molham todo mundo, mas não permitam que suba alguém com uma bicicleta. Deveria criar formas que permitam que sejam feitos estacionamentos para bicicletas e não apenas para carros, que elas possam ter espaço em transporte público, etc.

Brasileiros – Uma das críticas contrárias às ciclovias em São Paulo é que não há muitos ciclistas na cidade. É um problema?

Enrique Peñalosa: É claramente o dilema do ovo e da galinha. Não há bicicletas porque não há ciclovias e não há ciclovias porque não há bicicletas. É necessário que surja uma liderança para mudar a sociedade, mudar o comportamento, a forma como as pessoas vivem. Por que Amsterdã é repleta de bicicletas? Porque foi a primeira cidade a construir uma infraestrutura para proteger os ciclistas. Quando fizemos ciclovias em Bogotá, há 15 anos, especialmente nas áreas mais ricas, ninguém usava. Aos poucos, as pessoas foram usando. Quanto maior a qualidade – e não apenas quantidade – das ciclovias, mais as pessoas vão utilizá-las.

Brasileiros – Já ouvi argumentos dizendo que as bicicletas são apenas um transporte prazeroso, que as pessoas usam no parque aos domingos, por exemplo. Ouviu algo do tipo em Bogotá quando implantou ciclovias?
Enrique Peñalosa: Quando fizemos as ciclovias em Bogotá, não havia nada parecido em Paris, Londres, Madrid ou Nova York. Hoje, fazer ciclovia está na moda em todo o mundo, porque chegamos a uma clareza de que as bicicletas podem ser um meio de transporte. Um instituto de pesquisa britânico publicou um estudo recentemente mostrando que – em um raio de cinco quilômetros – é mais rápido ir de bicicleta para o trabalho do que qualquer outro meio de locomoção. Mas é importante dizer o seguinte: São Paulo é uma cidade enorme, com 20 milhões de habitantes, e o que é interessante é que, em algumas cidades ainda mais populosas que São Paulo, como Cidade do México ou Mumbai, mais de metade da população vive neste raio de cinco quilômetros da escola ou do trabalho. Ou seja, tem gente que vive há 30 quilômetros do trabalho, mas também tem muita gente que vive perto e, para esse camada, andar cinco quilômetros de bike não é um problema. Aliás, até mesmo uma viagem de dez quilômetros em uma bicicleta é feita em meia hora, sem precisar ser um atleta. É muito importante compreender que quando é feita uma infraestrutura de bicicleta, obviamente não é para todo mundo andar. Se 10% da população andar apenas de bicicleta, seria maravilhoso para São Paulo. Uma cidade onde as pessoas se deslocam de bike não é bom apenas para a mobilidade e para o meio-ambiente, mas é bom para a saúde. Além disso, elas são mais sensuais, porque são saudáveis, não são gordas, são mais bonitas, há mais interação, a cidade se torna mais igualitária. Existe uma relação muito diferente dos seres humanos que andam de helicóptero para os que andam nos lotados transportes públicos. O metrô de São Paulo tem algumas linhas terrivelmente lotadas, realmente desagradáveis. Em vez disso, a pessoa que anda de bicicleta, vai ouvindo música, feliz, vendo outras pessoas andando de bike na ciclovia.

Brasileiros – O conflito de camadas sociais na sua gestão em Bogotá foi grande?
Enrique Peñalosa: Claro. Sempre há um conflito enorme. Eu acho que estamos vivendo dois conflitos sociais modernos e que não são os da esquerda tradicional, mas os que Karl Marx antecipou. Ele dizia que haveria uma concentração crescente de renda em alguns capitalistas e que os proletários ficariam cada vez mais pobres. Isso não aconteceu. Há muitos indivíduos que são simples trabalhadores bem qualificados e que, assim, estão ganhando muito dinheiro, vivendo bem. Eu diria que temos novos conflitos sociais. Em São Paulo, menos de 40% da população se locomove em carros, e essa faixa é justamente representada pelas camadas mais altas. Não importa que os pobres tenham carro, porque eles geralmente não têm estacionamento no local de trabalho. Nos edifícios do centro de São Paulo só existe estacionamento para os executivos de camadas mais altas. A pessoa que limpa o chão até pode ter carro, mas não tem onde estacionar. Temos aí uma questão ideológica profunda. Como distribuir o espaço viário? Em Bogotá tivemos muitos conflitos porque muitos cidadãos queriam todo o espaço viário para eles. Queriam que as calçadas fossem estreitas, queriam estacionar seus carros nas ruas. Há sempre um conflito, não contra bicicletas ou contra pedestres, mas dos que têm carro e querem todo o espaço da rua para eles. Este é um dos grandes conflitos ideológicos do nosso tempo. É uma luta ideológica e política. Ideológica porque não tem uma resposta verdadeira ou falsa, não tem uma resposta tecnicamente correta. O uso do espaço viário pertence a todos os cidadãos, igualmente de uma criança de quatro anos para um cidadão com um carro de 100 mil dólares. O cidadão com seu carro de 100 mil dólares não tem nenhum direito a mais do que o cidadão pobre que anda a pé ou de bicicleta. Assim, sempre que uma decisão é tomada e tira um centímetro de espaço para os carros, acontecem problemas. E esses carros são dos poderosos: os donos da televisão, os principais jornalistas, juízes, médicos, aqueles com mais renda, pois têm maior influência e poder político do que aqueles sem transporte, que são os cidadãos mais pobres. A democracia não é exatamente o que eles gostam.

Brasileiros – E esse conflito existe ainda?
Enrique Peñalosa: Não. O atual prefeito (Gustavo Petro, do partido esquerdista M-19) é muito ruim, mas ainda em alguns lugares com ciclovias vemos cidadãos se queixando porque estão perdendo o espaço dos seus carros. Em outros lugares foram construídas mais faixas exclusivas de ônibus e também surgiram reclamações do espaço reduzido de carros. Esta é uma luta da democracia moderna, da nova esquerda, da nova democracia. Ainda existem conflitos desse tipo em Bogotá.

Brasileiros – Você conhece Fernando Haddad?
Enrique Peñalosa: Sim. Estive com Haddad há um ano. Pareceu-me muito dinâmico e gostei bastante.

Brasileiros – Falaram de ciclovias?
Enrique Peñalosa: Sim. Falamos de ciclovias e de faixas exclusivas para ônibus. Esses são alguns dos principais temas de discussão da política moderna. As discussões da velha esquerda eram sobre os monopólios, os sindicatos, o retorno das empresas estatais. São discussões de 1950. O debate da política moderna sobre a desigualdade social tem a ver com essas discussões urbanas. Uma vez que 90% da população vive em cidades, se torna uma das discussões políticas do nosso tempo. Pode parecer menor, sem importância, mas para mim parece muito mais importante a discussão política de como se distribui o espaço viário entre pedestres, ciclistas, transporte público e carros do que o debate sobre se as empresas devem ser estatais ou privadas.

Brasileiros – Quase todas as cidades do mundo foram pensadas para carros. Em Buenos Aires, por exemplo, o principal ponto turístico é um Obelisco no centro de uma avenida repleta de automóveis. Em São Paulo, todo mundo quer conhecer a Avenida Paulista, obviamente congestionada. Esta mudança de pensamento precisa de que para acontecer?
Enrique Peñalosa: Quando eu construí ciclovias em Bogotá não tive apoio político de nenhum setor, mas agora surgiram muitas organizações de jovens em favor das bicicletas. Por que na Holanda, Suécia e Dinamarca existem mais bikes do que na Espanha ou na Itália, onde o clima é até melhor? Porque a Holanda tem uma sociedade mais igualitária. Sempre foi assim. Lá, uma pessoa que tem um milhão de dólares na conta bancária anda de transporte público ou de bicicleta. Na Espanha e Itália os ricos se sentem muito importantes para esse tipo de transporte, assim como os ricos de São Paulo. Percebemos, então, que as ciclovias estão refletindo uma visão da sociedade. A cidade reflete os valores da sociedade. Em uma sociedade igualitária se constrói mais ciclovias, mais calçadas e se dá mais espaço para o transporte público.

Brasileiros – Há alguma cidade na América Latina avançando neste processo?
Enrique Peñalosa: Realmente é muito pouco o que está sendo feito na América Latina Mesmo em Bogotá é muito pouco, apesar de termos 650 quilômetros de ciclovias. Está acontecendo algo na Cidade do México, em Buenos Aires, mas na verdade é muito pouco o que está sendo feito, porque as nossas sociedades são muito desiguais. Deveríamos ter mais ciclovias porque nosso clima é muito melhor do que o da Holanda. Mesmo na Colômbia eu vejo muitas cidades pequenas, de no máximo 100 mil habitantes, em locais tropicais, e que mesmo assim os cidadãos preferem andar em um carro grande, com ar condicionado, e ir ao centro comercial.

Brasileiros – Em São Paulo há ainda o problema dos morros: a população mais pobre não vive apenas longe do centro, mas vive em morros que dificultariam a subida ou até mesmo a construção de ciclovias. Aqui percebi algo parecido. Como resolver isso?
Enrique Peñalosa: É a mesma coisa que Bogotá. Aqui também temos o problema de que as zonas pobres estão em morros, você pode ver (mostra um morro da cidade no horizonte) e, assim mesmo, as pessoas usam suas bicicletas. É lógico que as pessoas pobres que vivem em áreas planas usam mais, porém, há uma grande quantidade de viagens que são muito curtas ou então viagens que têm como destino o transporte público. É assim no Japão, onde 30% das pessoas que usam o sistema de trens vão para as estações de bicicleta. Na China, que não há democracia, as motocicletas foram proibidas, então não as pessoas usam são bicicletas elétricas. Elas são maravilhosas, porque usam parte da força humana e parte do motor elétrico. Essa é outra maneira de usar ciclovias, com bicicletas elétricas, que são baratas.


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