Filha do médico Amílcar Lobo, Alessandra nasceu quando o pai já havia perdido o direito de clinicar, por seu envolvimento com a máquina da tortura. Aos 21 anos, ela ainda não consegue conciliar a imagem que tem do pai com os relatos de ex-presos políticos. E não aceita ver o nome dele na lista de torturadores.
Alessandra Lobo tinha apenas 5 anos quando perdeu o pai. Dias depois, ao retornar à pré-escola, a Bonequinho de Neve, em Madureira, no Rio de Janeiro, ela ouviu de um coleguinha que não deveria ficar triste. “Seu pai tinha de morrer mesmo. Minha mãe falou que ele matava, fazia mal às pessoas”, disse o menino. Semanas antes, quando o médico ainda convalescia, Alessandra já havia chegado em casa contando que outras crianças a evitavam, porque ela “era filha do Lobo Mau”. As explicações dadas por sua mãe, a pedagoga Maria Helena, só começaram a fazer sentido para a garota tempos depois. Ainda hoje, aos 21 anos, Alessandra desmorona se o nome Amílcar Lobo é associado ao adjetivo torturador: “Meu pai atendeu presos políticos, mas por trás da participação dele tinha um ser humano. Ele era um médico. Não torturava. E eu não era nem viva quando a ditadura aconteceu. Por que tenho de carregar essa culpa? Essa culpa não é realmente minha”.
Durante quatro anos, Lobo integrou a máquina da tortura instalada nos porões da ditadura. Em agosto de 1969, prestes a se formar em Medicina, ele foi convocado para prestar o serviço militar que não cumprira aos 18 anos. Seis meses depois, apresentou-se no Forte de Copacabana, onde passou por instruções convencionais, como atirar e cavar trincheiras. Em março de 1970, Lobo foi transferido para o 1o Batalhão de Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, 425, na Tijuca, para atuar como médico. O endereço abrigava um dos mais cruéis centros de tortura do Brasil. O primeiro “paciente” atendido por Lobo estava nu, deitado no chão molhado de uma cela, com fios enrolados nos dedos das mãos e dos pés. Daí em diante, foi só horror, incluindo passagens pela Casa da Morte, o centro clandestino de tortura e extermínio mantido pelo Exército, em Petrópolis. Alessandra conhece a sequência trágica. Já leu e releu o livro A Hora do Lobo, a Hora do Carneiro, que o pai publicou em 1989, oito anos antes de morrer devido a problemas cardíacos.
“Meu pai também vivia sob ameaça. Tanto que tentou se desligar do Exército várias vezes, mas não tinha essa opção. Ele conta isso no livro”, argumenta Alessandra. “Para quem ele iria denunciar? Como, se o Exército controlava tudo?” O fato é que, de 1970 a 1974, Lobo deu expediente de quatro horas no período da manhã, no centro de tortura. Depois, trabalhava em um hospital de psiquiatria infantil, de onde saía rumo a seu consultório de psicanálise, na sala 208 da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 1018. No mesmo andar, ficava o consultório do psicanalista Leão Cabernite, presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, com quem Lobo fazia análise, pois se preparava para ingressar na instituição. Às vezes, o médico era convocado pela repressão para atender emergências fora do horário de expediente. Foi o que aconteceu em uma madrugada de janeiro de 1971, quando ele examinou um homem também nu, coberto por equimoses, deitado na cama de uma cela, com os olhos fechados. Estava com o abdômen endurecido, “em tábua”, não conseguia se mexer, mas, por duas vezes, abriu os olhos e repetiu o próprio nome: Rubens Paiva.
Quarenta e três anos depois, Alessandra lembra que o pai foi a última pessoa a ver o ex-deputado vivo: “Ele também foi o único que deu informações sobre Rubens Paiva. Meu pai contou o que viu lá dentro”. Naquela madrugada, o médico diagnosticou uma hemorragia interna e indicou a imediata transferência de Rubens Paiva para um hospital, o que não foi feito. Até hoje não se sabe o destino do corpo do ex-deputado. Para justificar o desaparecimento, o Exército divulgou à época uma história rocambolesca: ele teria sido resgatado por “terroristas” durante um traslado. Pela versão, Rubens Paiva, que pesava quase 100 kg, havia saltado do banco traseiro de um Fusca ocupado por militares armados, atravessado um tiroteio e escapado ileso. Quinze anos depois de examiná-lo na cela, durante o primeiro governo civil pós-ditadura, Lobo revelou à imprensa a cena que presenciara no prédio da Rua Barão de Mesquita. Não soube explicar como sumiram com o corpo, mas tornou-se o primeiro integrante da máquina de repressão a testemunhar contra os porões.
Baque forte
Em Madureira, na casa simples que divide com a mãe e o cachorro Baudelaire, uma mistura de pastor alemão com vira-lata, Alessandra fala com a voz embargada sobre um passado que conhece por meio dos relatos de Maria Helena, dos depoimentos deixados por Lobo e pelos muitos livros sobre o período enfileirados na estante da sala. De vez em quando, chora baixinho. “Meu pai não foi torturador. Não acredito que ele examinava uma pessoa para dizer se ela aguentava mais sessões de tortura. Como médico, ele tinha de prestar socorro. Se aquela pessoa seria mais torturada ao melhorar, é uma questão dos militares.” Essa convicção, Alessandra começou a formar muito depois de ser apontada na pré-escola como “a filha do Lobo Mau”. Ela tinha entre 7 e 8 anos quando a mãe começou a explicar-lhe com mais detalhes a trajetória do pai. Aos 13, pediu para ler o livro que ele escrevera, embora alertada por Maria Helena de que “era pesado”: “Quis ler assim mesmo. Foi chocante, mas eu era muito nova. Acho que não entendi muito bem se tudo aquilo tinha realmente acontecido”.
“Na faculdade, o baque foi mais forte, porque tive muitos professores que foram presos políticos, atendidos por meu pai. Quando essa questão é levantada durante as aulas, fica muito difícil”, diz Alessandra, que começou aos 17 anos o curso de Jornalismo na PUC do Rio, onde tem bolsa de estudos integral. “Para mim, ele era o melhor pai do mundo. Até os 5 anos, eu passava o tempo todo com ele, porque minha mãe trabalhava o dia inteiro. Nós morávamos em um sítio, em Vassouras. Não tinha empregada. Ele cuidava de mim, cozinhava, fazia tudo. Eu me lembro da primeira vez que ralei o joelho. Tinha uns 4 anos. Meu pai passou a semana inteira me carregando no colo. Eu não ia nem ao banheiro sem ser no colo. Na faculdade, quando vi o nome do meu pai ser associado ao de torturador, eu não soube o que fazer.”
Durante uma aula prática de Redação em Jornalismo, a professora discorreu sobre a Comissão Nacional da Verdade, que estava prestes a ser instalada, e sobre os desaparecidos políticos. Em seguida, pediu para que pesquisassem na internet e escrevessem um texto sobre Rubens Paiva, cuja morte só foi reconhecida oficialmente em 1996. “Para falar do caso Rubens Paiva, tem de falar do meu pai. O primeiro link que eu cliquei tinha um artigo citando o torturador Amílcar Lobo. Eu comecei a chorar e saí da sala.” Suely Caldas, a professora, estranhou o comportamento da estudante: “Depois, conversamos. Quando ela disse que o pai tinha atendido Rubens Paiva, eu gelei. Passei até a dar uma atenção redobrada a ela. Cheguei a levar para ela o livro do meu ex-marido, Álvaro Caldas (Tirando o Capuz, sobre a luta armada e os cárceres do regime militar), mas ela já tinha lido.”
Na primeira conversa que tiveram, Suely contou a Alessandra que havia sido atendida três vezes por Lobo no prédio da Rua Barão de Mesquita, onde passou dois meses. Presa no final de fevereiro de 1970, por integrar os quadros do PCBR, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, ela estava com os seios empedrados e com febre, pois a amamentação de sua filha recém-nascida tinha sido interrompida de forma brusca. Primeiro, Suely pediu para consultar o seu próprio médico, fora das grades: “Não consegui. Veio o Amílcar Lobo. Por três dias seguidos, ele me aplicou uma injeção para secar o leite”. Ao saber a história da professora, Alessandra pensou em desistir da faculdade. Antes do choro na aula de redação, ela já havia contado sobre seu pai a três colegas. Não imaginava, no entanto, que o passado estaria tão presente na rotina acadêmica: “Faltei a algumas aulas, mas decidi continuar. Quando voltei, tive a impressão de que todo mundo me olhava diferente”.
Um ano depois, a estudante entrou em pânico ao saber que integrantes da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro estariam na faculdade, para uma palestra seguida de debate: “Chamei a minha mãe, que estava trabalhando fora do Rio. Sozinha, eu não teria forças para defender meu pai”. Embora o nome de Amílcar Lobo esteja desde a década de 1980 na relação de 444 torturadores do projeto Brasil: Nunca Mais, organizado pela Arquidiocese de São Paulo, Alessandra acredita que a participação do pai na máquina de repressão ainda está por ser esclarecida. Sua mãe também defende essa ideia com ardor. E não faltou ao debate na PUC. Ao final da palestra, Maria Helena pediu a palavra e fez um desabafo: “Assumo a responsabilidade pelos atos do meu marido, mas somente pelos atos dele, pela parcela que me cabe nessa história suja do Brasil. Cabe a vocês, da Comissão da Verdade, investigarem isso a fundo. Ele teve medo. Foi omisso sim, como também foi a sociedade brasileira. Ele compactuou em silêncio. Quando denunciou, foi abandonado pela direita e massacrado pela esquerda.”
Passadas poucas semanas, Alessandra procurou o advogado e ex-deputado Modesto da Silveira, que tinha participado de uma aula do cineasta Silvio Tendler. “Chegou um momento que eu não podia mais me esconder, sair chorando da sala de aula. Tinha de defender, nas possibilidades reais, o meu pai”, diz Alessandra. “Modesto da Silveira ficou surpreso, mas me recebeu bem.” Famoso defensor dos direitos humanos, o advogado foi figura fundamental na identificação de Lobo como o médico que atendeu presos políticos na Casa da Morte, onde era chamado de doutor Carneiro. Em fevereiro de 1981, Modesto da Silveira estava ao lado da ex-presa política Inês Etienne Romeu quando ela localizou a casa de Petrópolis e, na sequência, denunciou a atuação de Lobo no centro de torturas clandestino. Único caso conhecido de sobrevivente da Casa da Morte, Inês Etienne confrontou Lobo no consultório de psicanálise, aquele da Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
Durante um reencontro tenso, Lobo confirmou suas passagens pela Casa da Morte, onde chegara a fazer uma cirurgia em Inês, que passou 96 dias sob sevícias. Ambos concordaram que o médico não torturara, mas divergiram quanto a uma possível aplicação de Pentotal, conhecido como soro da verdade. Lobo negou o procedimento. Admitiu que poderia ter aplicado glicose ou outro medicamento e o fato ter sido distorcido, de propósito, pelos torturadores. Com o artifício, acreditando-se sob efeito de Pentotal, o interrogado se sentiria ainda mais vulnerável. O certo é que, depois da identificação do “doutor Carneiro” da Casa da Morte, presos políticos atendidos por Lobo no prédio da Rua Barão de Mesquita também o denunciaram.
A partir daí, a vida do médico, que estava sete anos fora do esquema da repressão, passou por uma reviravolta. A ditadura ainda vigorava e Lobo começou a sofrer ameaças por parte de militares. Nos anos seguintes, ele relatou ter escapado de dois atentados, cuja autoria creditou aos antigos aliados. A Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro não tomou nenhuma atitude clara contra Lobo, mas criou mecanismos para que o médico não concluísse a formação. O Conselho Regional de Medicina, por sua vez, abriu um processo que culminou com a cassação de seu registro profissional, em 1988. Dois anos antes, por iniciativa própria, Lobo tinha desmontado junto à imprensa a farsa criada pelo Exército de que o ex-deputado Rubens Paiva desaparecera depois de ser resgatado por “terroristas”.
17 pontos sem anestesia
Alessandra fala sobre esses episódios com base no que soube nos anos seguintes à morte do pai, em agosto de 1997. Ela é filha do terceiro casamento de Lobo. Na época em que se envolveu com a repressão política, o médico estava em sua primeira união e tinha quatro filhos. “O meu irmão mais velho sofreu um sequestro em uma das vezes que meu pai tentou se desligar do Exército”, diz Alessandra. Sua mãe, Maria Helena, conheceu Lobo em 1973, aos 14 anos, quando começou a trabalhar como secretária no consultório dele. Em uma tarde do ano seguinte, Maria Helena chegou ao trabalho na hora que um general desembarcava de uma comitiva militar, com batedores e carros de segurança. “Achei aquilo lindo!”, recorda Maria Helena. “Fiquei eufórica ao ver o general Sylvio Frota entrando no consultório. Mas depois eu o ouvi dizer ‘Lobo, em outra situação, eu teria mandado prender você’. Naquele dia, Amílcar mandou suspender todas as consultas da tarde e ficou trancado na sala dele. Naqueles tempos, não percebi que ele estava sendo pressionado a continuar no Exército”.
Maria Helena se uniu a Lobo quando o médico já havia perdido o registro profissional. Por causa da relação, ela se considera uma perseguida política. Em 2002, até entrou com um pedido de indenização na Comissão de Anistia: “Perdi muitos empregos por ser viúva de Amílcar Lobo”. A requisição de Maria Helena – que ainda não teve resposta – é considerada como uma afronta pela maioria dos antigos “pacientes” de seu marido. E eles podem ser contados às dezenas. Alguns inclusive testemunharam contra Lobo no processo do Conselho Regional de Medicina. É o caso do jornalista Cid Benjamin. Localizado pela repressão em abril de 1970, aos 21 anos, o então militante do MR-8, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, havia participado do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick e tentou resistir à prisão. Acabou levando uma série de coronhadas de fuzil na cabeça. “Quando cheguei na Barão de Mesquita, o Amílcar Lobo deu 17 pontos na minha cabeça. A frio. Anos depois, escreveu que eu me debati, recusando a anestesia, pensando que era Pentotal, o soro da verdade. Mas ele confundiu dois episódios. Eu só tentei me debater mais tarde, amarrado em uma cadeira, quando ele me aplicou o Pentotal.”
Benjamin afirma que, várias vezes, durante as sessões de tortura, Lobo surgia para auscultar o coração, medir a pressão e definir se havia risco de morte: “Ele sustentava a tese de que era só um médico do quartel, mas não concordo. Ele era um peão daquela engrenagem. Inocente ele não era.” Por outro lado, Benjamin acredita que Lobo passou, de fato, por um processo de arrependimento. Na sequência, tornou-se alvo dos militares envolvidos com a tortura e também dos que atuaram na resistência à ditadura: “Na verdade, ele ficou entre os dois fogos. Era uma pessoa muito atormentada. E nós, da esquerda, fomos intolerantes com ele. Faço uma autocrítica. Lobo deu um depoimento importantíssimo, sobre o Rubens Paiva. Poderíamos ter extraído mais informações dele”. Para Alessandra, Benjamin é a primeira pessoa comprometida com a resistência à ditadura que procura ver Lobo como ser humano.
Na casa de Madureira, que clama por uma reforma, a estudante conta que já se encontrou com o ex-preso político, quando sua mãe prestou depoimento à Comissão da Verdade do Rio: “Ele é uma pessoa muito querida”. Na tentativa de entender as próprias raízes e defender o pai, “nas possibilidades reais”, Alessandra parece cada vez mais envolvida com personagens e fatos da história recente do Brasil. Como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo, ela planeja comparar a cobertura fotojornalística das manifestações de 1968 com as de junho de 2013. Pretende ainda estudar Cinema durante mais um ano e terminar a faculdade com dupla habilitação. Tudo isso, é claro, se mantiver a bolsa de estudos. Além do salário de Maria Helena, as duas só contam com uma pensão de cerca de um salário mínimo deixada por Lobo. O sítio de Vassouras, onde Alessandra começou a ser criada, foi vendido para pagar advogados, ainda nos anos 1990. A casa de Madureira – na qual Lobo morou nos últimos anos de vida – é a mesma onde Maria Helena nasceu. Em nenhum momento, porém, Alessandra reclama de dificuldades econômicas ou do pesado legado deixado por Lobo: “Eu não trocaria ter vivido cinco anos com o meu pai por nenhuma outra vida tranquila”.
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