Fernando Pessoa, uma conversa

Tarso de Melo – Vamos começar por uma questão mais geral: como surgiu a ideia de selecionar as frases e versos do Pessoa, na forma de aforismos, para o livro Eu Sou uma Antologia?
Carlos Felipe Moisés – O ponto de partida foi a constatação de que há um grande número de versos ou frases de Fernando Pessoa que todo mundo sabe de cor. Ninguém se lembra de tantas frases assim, por exemplo, de Machado de Assis ou de Guimarães Rosa, Drummond, Vinícius, João Cabral e tantos outros poetas e ficcionistas, embora todos tenham versos e ditos lapidares, admiráveis, de forma e teor semelhantes. Mas nesse quesito, parece que Pessoa é imbatível. De saída, suas frases têm um molho especial que as torna facilmente memorizáveis. Primeiro, óbvio, porque são curtas e incisivas, fáceis de decorar: “O mito é o nada que é tudo“, “Há metafísica bastante em não pensar em nada“, “Fingir é conhecer-se“, “Sou quem falhei ser“, “Triste de quem é feliz“, “Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir“, “Os deuses vendem quando dão“, etc. etc. Segundo: a maioria contém intrigantes paradoxos, aparentemente impenetráveis, cláusulas dúbias, que afirmam e negam ao mesmo tempo. Assim, apesar de taxativas (daí, aliás, sua afinidade com o aforismo, a máxima, o dogma, o postulado), elas sempre encerram um pensamento complexo, repleto de meandros e atalhos; são afirmações enigmáticas, de alta concentração ideativa e, por isso, atraem tanto o leitor.
Cada uma dessas frases breves daria margem a longas explanações, já não digo para interpretá-las, porque aí seria preciso um livro inteiro, mas apenas para explicitar ou parafrasear os sentidos aí entranhados. Exemplo: “Triste de quem é feliz“. Parece não fazer o menor sentido, é uma ofensa à nossa boa lógica, não é mesmo? No entanto, vejamos, começando pela segunda parte da afirmação. Uma pessoa “feliz” é uma pessoa satisfeita consigo mesma e com a vida, uma pessoa que se sente “realizada”, pois encontrou o que buscava. Logo, já não tem mais motivos para seguir buscando, o que a livra de toda inquietação, é verdade, mas a deixa acomodada. Vale dizer: uma pessoa feliz é uma pessoa parada, estagnada, centrada em si mesma. A conclusão é inevitável: triste de quem for assim ou triste de quem se iludir pensando que é feliz.
Uma vez explicado, o paradoxo revela conter em seu bojo uma afirmação óbvia, verdadeiro lugar comum: a felicidade não existe, é só uma ilusão, a falsa negação da infelicidade, do infortúnio e das decepções inerentes à condição humana. (É um pouco o Schopenhauer de As Dores do Mundo, mas parece que é verdade.) O que move o homem, “bicho da terra, tão vil e pequeno“, como diz Camões, é exatamente a consciência de não ser feliz e não se conformar com isso. Alguém feliz, logicamente, só pode ser alguém conformado, um desistente. O que pode levar um homem a se sentir vivo é exatamente a vontade de lutar, de se aperfeiçoar, no encalço dessa mesma felicidade que ele sabe ou desconfia que não existe. Mário de Andrade diz mais ou menos a mesma coisa: “A existência admirável que levo consagrei-a toda a procurar. Deus queira que não ache nunca… Porque seria então o descanso em vida, parar mais detestável que a morte“. Pessoa é mais conciso: “Triste de quem é feliz“.
Por outro lado, a forma dessas frases taxativas promete ou parece prometer verdades absolutas, mas o seu conteúdo explora a relatividade de todas as coisas. É como se o poeta dissesse (esta agora é minha, imitação das frases dele): “Jamais troque o incerto pelo certo“. Por quê? Porque “o certo” não existe, é só uma miragem. Trapacear com os outros é feio, mas trapacear com você mesmo é estupidez.
Agora, voltando à antologia, quando me dediquei, recentemente, à curadoria da exposição Fernando Pessoa: plural como o universo, e me impus a disciplina de revisitar, página por página, toda a obra dele, aproveitei a oportunidade para ir catando os versos e frases que me parecessem tão memoráveis como aquelas que todo mundo sabe de cor. Talvez eu encontre, pensei, frases em número suficiente para justificar um livrinho. Meses depois, eu tinha numa pasta mais de mil sentenças lapidares, memoráveis, só que na maior desordem, já que eu não tinha partido de plano algum. Eu tinha simplesmente anotado todas as frases que me chamavam a atenção, à medida que iam aparecendo, tomando apenas o cuidado de registrar a fonte.
O passo seguinte, diante daquele emaranhado de quase-aforismos, foi inventar um simulacro de ordem, uma sequência. Uma opção seria a ordem alfabética, outra, a cronológica, ou as frases poderiam ser agrupadas por “autoria”, heterônimo por heterônimo, e por aí vai. Mas achei melhor ordená-las por afinidade temática. Fui então juntando, lado a lado, as frases que incidissem mais ou menos sobre os mesmos tópicos, as frases que pareciam “responder” às sugestões contidas na anterior, independentemente da “autoria” ou da cronologia; as frases, em suma, que partilhassem algum interesse comum. O resultado foi esse pequeno volume Eu Sou uma Antologia (autodefinição do próprio Pessoa, claro), dividido em cinco seções ou núcleos temáticos, uma espécie de (risos) “o pensamento vivo de Fernando Pessoa”, em doses homeopáticas. É claro que isso não substitui o texto integral de onde as frases provêm, é só um aperitivo, uma via de acesso à multiplicidade e à heterogeneidade da literatura pessoana, para além ou aquém dos conhecidos esquemas interpretativos de tipo apriorístico. Outro axioma dele: “Sentir, sinta quem lê“, verdade aplicável ao caso, se admitirmos que a melhor maneira de interpretar é sentir.

T.M. – Pensando sobre os heterônimos, sempre imagino que eles são a solução encontrada pelo Fernando Pessoa para um “problema” comum dos grandes poetas modernos, na virada do século XIX para o XX, que podemos chamar de “fragmentação do sujeito”, da subjetividade. A grande diferença é que essa fragmentação, na imensa maioria dos autores, aparece na própria linguagem, é uma única voz fraturada, colocando para fora seus impasses – seja um Baudelaire, seja um Eliot. Já no caso do Pessoa, ele trata essa fratura antes de começar a falar, ou ainda, ele tenta flagrar cada uma das linhas das peças de que se compõe um sujeito fraturado e tratar aquela linha como íntegra, coerente, consistente em si mesma? Reformulando: em uma visão de conjunto, aquele é um sujeito fraturado, tensionado por seus impulsos contraditórios, mas, vistos isoladamente cada um dos heterônimos, eles parecem pacificados, até “equilibrados” se considerados um a um (e isso sempre de modo precário, porque a leitura atenta dos heterônimos mostrará muito mais entrecruzamentos do que talvez Pessoa quisesse). Neste sentido, o livro Eu Sou uma Antologia reconstrói o Pessoa perturbado ao aproximar e misturar as diversas feições que ele cuidadosamente separou? Não apenas pela aproximação entre as frases, mas dentro de cada frase, pela força que o paradoxo tem para romper quaisquer divisórias mais seguras entre as perspectivas?
C.F.M. – Concordo inteiramente, Tarso, você foi direto ao que considero um dos pontos-chave. Um dos aspectos que me deslumbrou já no primeiro contato com Pessoa, na adolescência (e o deslumbramento prossegue até hoje), foi justamente isso da multiplicação da personalidade, essa coisa do sujeito mutante, que pode ser Caeiro mas também é Reis, depois é Campos, mais tarde é Vicente Guedes, em seguida rebatizado para Bernardo Soares, e dá-lhe Barão de Teive e Alexander Search e António Mora e dezenas de outros “eus”, como se ele fosse não um poeta, mas um romancista que abdicou de escrever o seu romance, limitando-se a criar os protagonistas, todos escritores. E o cara ainda se reserva o direito de continuar a ser, cumulativamente, “Ele-mesmo”, não como autor, mas como outro personagem. Eu estava acostumado a encontrar, em cada poeta que lia (na altura, meus preferidos eram Mário, Drummond, Bandeira, Vinicius), um estilo, um timbre uma voz, uma personalidade própria, a marca inconfundível da identidade de cada um.
E isso me dava uma gostosa segurança. Ao me deparar com Fernando Pessoa, senti a terra tremer, as coisas perderam o rumo. Eu perguntava à poesia do Pessoa: “Quem é esse cara? Qual é o temperamento, o estilo, o jeito próprio e exclusivo dele?”, e não tinha resposta. Ou tinha várias, ao mesmo tempo. Eu procurava na obra do poeta a personalidade dele e essa mesma obra me remetia a diferentes personalidades, todas autênticas, persuasivas, perfeitamente convincentes. Quer dizer, fui atropelado por esse negócio maluco dos heterônimos, que até hoje, algumas décadas e um monte de explicações depois, eu ainda acho que é um negócio maluco, mesmo, ou seja, a lucidez levada a seu grau extremo.
Você tem razão, é o grande drama da modernidade, o estigma da subjetividade em crise, a impossibilidade, para cada um de nós (não é preciso ser poeta), de afirmar “Eu sou…”, e acrescentar um predicado que não seja parcial, ou até mesmo falso, ou não vá ser desmentido mais adiante por outro predicado qualquer, igualmente falso e parcial, e assim até o infinito. Fernando Pessoa, claro, não é o inventor disso, mas ele me ajudou a ler melhor os demais poetas modernos. Esse drama e essa impossibilidade não são exclusivos do poeta dos heterônimos. Voltei ao meu Drummond, ao meu Vinicius, revisitei Camões e Gregório de Matos, fui a Baudelaire, Eliot, Rilke, Saint-John Perse, Alexandre e tantos outros, e verifiquei que todo poeta moderno é heteronímico, no sentido de que está à procura da sua identidade fragmentada, da sua ipseidade inencontrável, todos mergulhados no poço sem fundo da subjetividade plural, mutante, que caracteriza a consciência do homem moderno.
Mas Fernando Pessoa, até onde sei, é o único que primeiro sistematiza essa fragmentação interior, submetendo-a à disciplina de personalidades distintas, bem delineadas, inclusive e sobretudo no plano da linguagem; e, segundo, o único que abdica de uma personalidade “própria”, apesar da ironia transcendental desse ortônimo, que é como ele chamava o autor das coisas que assinava com seu nome de batismo. Esse falso “Ele-mesmo” é tão heterônimo e alheio, ou seja, tão fictício e ao mesmo tempo tão verdadeiro, quanto qualquer dos personagens ditos imaginários, que são os heterônimos propriamente ditos. Então, tudo bem, cada heterônimo é uma individualidade bem definida, cada um é dono de um temperamento, uma voz, um estilo, uma visão de mundo inconfundível, própria e exclusiva – e isso é o que nos inquieta e absorve no primeiro contato com o poeta. Mas ao mesmo tempo, tudo isso provém de um só sujeito, de um só indivíduo, esse cidadão português, que nasceu em 1888 e morreu em 1935. Não haverá, então, um denominador comum, uma unidade subjacente a toda essa diversidade, como propõe Jacinto do Prado Coelho? A resposta costuma ser afirmativa, todo leitor de Pessoa parece acreditar firmemente nessa tese. Só que até agora ninguém foi capaz de provar, ninguém foi capaz de descrever, satisfatoriamente, em que consiste esse denominador comum, essa unidade.
Por isso, Tarso, outra vez concordo inteiramente com a sua observação. Meu intuito, nesse Eu Sou uma Antologia, foi não só, mas também reforçar a ideia ou hipótese da unidade, forçando o leitor a ir lendo as frases sem o anteparo da “autoria”, sem o confortante recurso à compartimentação tipo “Ah, isso é Caeiro!”, “Oh, isso é Álvaro de Campos”, e por aí vai. Do modo como a antologia foi organizada, o leitor é convidado a esquecer um pouco, ou a colocar entre parênteses, essa história de heterônimos, para ler o poeta na base do “é tudo Fernando Pessoa”, independentemente das contradições, dos desmentidos e das réplicas que ele faz a si mesmo. Afinal, quem de nós não é contraditório ou não se desmente? Quem de nós nunca alimentou o secreto desejo de escrever uma réplica, a fim de negar frontalmente o artigo ou o poema, o conto ou a crônica que acabou de publicar, ou a declaração solene que acabou de fazer?

TUDO VALE A PENA…

Algumas preciosidades do livro Eu Sou uma Antologia:
Frases de um Raciocinador
(Portal Editora), seleção e
organização de Carlos Felipe Moisés

“Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?”

“Ah, quem me salvará de existir!”

“A razão é a fé no que se pode compreender sem fé.”

“Deus é bom, mas o diabo também não é mau.”

“Pertenço a um gênero de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho.”

“O que é preciso é ter um pouco de Europa na alma.”

“Então a imprensa portuguesa
É que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
Que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem há puta que os parisse.”

“O cínico é apenas um pessimista jovial.”

“Toda vitória é uma grosseria.”

“Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar que Deus deu aos outros!”

“Vim aqui para repousar,
Mas esqueci-me de me deixar lá em casa.”

“Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão.”

“Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?”


T.M. –
Eu creio que o livro das frases pode ser um primeiro contato para muitos leitores, ou seja, a partir do contato com as frases de Eu Sou uma Antologia, o leitor pode buscar a poesia de Fernando Pessoa. Você acha que esse leitor, por ter iniciado seu contato por meio das frases, digamos, mais fortes da obra de Pessoa, é um contato diferente daquele iniciado por um ou outro poema? Desdobrando a questão: no caso do Pessoa, entrar pela porta de um Ricardo Reis é muito diferente da de um Alberto Caeiro, ou de um Bernardo Soares. O que significa entrar pela ampla janela das frases paradoxais?
C.F.M. – Meu primeiro intuito, ao imaginar a antologia, foi exatamente esse que você aponta: oferecer ao leitor pouco ou nada familiarizado com Fernando Pessoa um primeiro contato, uma porta de acesso – ou uma ampla janela, como você diz. É como conhecer uma casa enorme, onde você nunca esteve. Você pode começar pela sala da frente, os anfitriões ali perfilados para lhe dar as boas-vindas e acompanhá-lo em uma visita de reconhecimento, mas se você entrar de penetra pela janela dos fundos, ou se pular o muro do quintal, e for aparecendo de surpresa, mesmo sabendo dos perigos que corre, na cozinha, no banheiro, nos quartos, no sótão ou em qualquer outro dos muitos aposentos, aí já será uma visita de conhecimento propriamente dito, embora crivada de insegurança e incerteza.
O fato é que Pessoa é, há um bocado de tempo, uma unanimidade. Sua fama começou, ainda tímida, em Portugal, nos anos 1940, deslanchou com vigor no Brasil, nos idos de 1960 (é só pensar em Caetano, Gilberto Gil, Bethânia, os Jograis, Jô Soares, Tom Jobim e tantos outros admiradores de primeira hora); e, hoje, espalhou-se pelo mundo. Sua importância é incontestável, ninguém lhe ignora a existência e a genialidade. Quando isso acontece, o autor passa a ser estudado, investigado e esquadrinhado em larga escala, despejando-se sobre ele uma portentosa erudição que acaba por funcionar como obstáculo ao leitor comum. Este vai sentir-se inferiorizado, despreparado, incapaz de enfrentar a formidável maratona crítico-teórica que ele acredita ser, induzido pela malícia dos eruditos (os anfitriões da casa), a condição prévia que lhe facultará, mais adiante, a ler a obra propriamente dita. Ele acaba desistindo antes de começar, já que o obstáculo lhe parece intransponível.
Ao mesmo tempo (é um paradoxo, mas é verdade), como se trata de um poeta universalmente conhecido, como todo mundo já “sabe” tudo a seu respeito, as pessoas deduzem que nem é preciso ler. Não é o caso de Homero, Virgílio , Dante, Camões, Villon, Goethe e tantos outros? Você precisa ler esses caras para saber da importância deles? Melhor não ler, mesmo. Vai que você discorde da maioria, vai que você não encontre em suas obras o que todo mundo garante que iria encontrar… Apesar de ser um fenômeno recente (Pessoa morreu há pouco mais de 70 anos: compare com os séculos que nos separam dos poetas que acabei de mencionar), o caso do escritor português já está no panteão dos grandes mitos da literatura universal. Quer dizer, não está mais aqui, no meio da rua que todos nós pisamos todos os dias. Mas eu acho que é aqui mesmo que ele deve estar, para ser lido – e relido, sempre como se fosse pela primeira vez, a fim de que se produza no leitor de primeira viagem, e se reproduza em todos nós, o impacto da descoberta.
Daí então essa antologia meio inusitada, aparentemente sem pé nem cabeça, a forma que encontrei para dizer ao leitor comum: não se sinta inferiorizado coisa alguma, pare com isso! Você tem todo o preparo necessário para começar a se beneficiar do contato com um poeta genial, e empatizar com ele.
Claro que é só um primeiro contato. Depois de bisbilhotar aqui e ali, furtivamente, muitos dos pequenos e quase sempre escondidos meandros da casa toda, você voltará para uma visita mais demorada e abrangente. Entrar pela ampla janela dos paradoxos, como você diz Tarso, tem a vantagem de levar o leitor a percorrer essas páginas em estado de permanente sobressalto, sem correr o risco de uma leitura apaziguada, isto é, uma leitura dirigida por qualquer explicação prévia, que resolva todas as dúvidas… antes de ler. Eu acho muito saudável ler Fernando Pessoa, ou qualquer outro grande poeta, mergulhado em dúvidas. O pior que pode acontecer é a gente se livrar de toda ilusão.

T.M. – Você fala em uma distinção entre o aforismo propriamente dito (a frase autossuficiente, que não depende de contextualização) e o “protoaforismo” (a frase originalmente contextualizada que é deslocada e assume, no geral, um sentido diverso). A que você atribui, em termos estilísticos, o grande número de frases da obra de Fernando Pessoa que são capazes de sobreviver para além do seu contexto?
C.F.M. – A distinção que eu proponho é bem essa. Pessoa produziu alguns aforismos, ou seja, frases soltas, independentes, às vezes largadas em retalhos de papel. Mas eu recolhi também uma quantidade ainda maior de frases que fazem parte de textos bem desenvolvidos ou até de livros inteiros. E misturei tudo. O resultado, paradoxal, é que estas últimas também se tornam independentes, como se fossem legítimos aforismos, e ao mesmo tempo todas passam a depender de um novo contexto (falso, claro está), que é a sequência lógico-temática sugerida pela ordenação que eu escolhi.
A primeira razão que me ocorre, em termos estilísticos, para o fato de essas frases sobreviverem para além do seu contexto é sua extraordinária concisão, sua notável condensação, o laconismo, a enorme quantidade de sentidos embutidos em meia dúzia de palavras, às vezes menos, como a gente viu no exemplo do “Triste de quem é feliz“. O poder dessas frases é fulminante, o leitor minimamente perceptivo fica imantado, em estado de choque, e ao mesmo tempo excitado pelo desafio. O resultado é ele experimentar aquele entusiasmo (ter um deus dentro de si, não é o que diz a etimologia?) que os antigos afirmavam estar na origem de toda filosofia, isto é, de toda atividade efetivamente pensante.
Outra marca forte, ainda em termos estilísticos, é a simplicidade da construção sintática: são sempre afirmações diretas, sem rodeios nem hesitações, passando a impressão de um pensamento que vai direto ao ponto, com invejável firmeza, jamais se dispersa em atalhos ou evasivas. Não é assim mesmo que nós gostaríamos que fossem todas as nossas afirmações, a manifestação de certezas inabaláveis? Por isso, as frases do Pessoa se caracterizam invariavelmente pela enunciação taxativa, dando a impressão de que estamos perante uma enxurrada de dogmas, axiomas, postulados. Claro que é só um truque. Basta o leitor começar a refletir no que essas frases dizem para se dar conta de que nada aí é categórico ou dogmático, não existe aí nenhuma certeza, nenhuma verdade absoluta. Então, já não é o que nós gostaríamos, mas é esse mesmo o destino reservado a todas as nossas afirmações. Pessoa não nos deixa apelar para a trapaça das cláusulas pétreas, das explicações definitivas, das decisões irrecorríveis.

T.M. – Proponho uma polêmica a partir de uma passagem da crítica Leyla Perrone-Moisés, no artigo Pessoa de todos (os) nós, de 1988:

Em nosso mundo lusófono, Pessoa já é, há anos, lugar-comum. Citá-lo é colocar um brilhareco literário em qualquer conversa, discurso político, espetáculo musical ou novela de televisão. Do presidente ao cantor popular, todos têm seu verso pessoano na algibeira, pronto para ser recitado em qualquer ocasião. Isoladas de seu contexto, as frases-versos de Pessoa podem servir para tudo. Ética otimista: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Coragem vital: “Navegar é preciso”. Patriotismo: “Minha pátria é a língua portuguesa”. Religião: “Deus, a grande ogiva ao fim de tudo”. Sentimentalismo: “O amor é que é essencial”. Pessoa tem servido à cultura oficial e à contracultura, à defesa dos valores tradicionais (grandeza de alma, persistência nos grandes propósitos), tanto como à defesa de causas “rebeldes” (elogio da loucura, da droga, do homossexualismo).

Os citadores contumazes parecem não se perturbar com o fato de, para cada citação de Pessoa, haver outra que diz exatamente o contrário. O poeta diz que “tudo vale a pena”; mas tem centenas de versos que exprimem um pessimismo absoluto e recomendam a indiferença, a desistência, a abdicação. […] O problema é que, cada vez que Pessoa é citado, é em nome de uma verdade; ora, suas verdades são tantas e tão contraditórias que, no conjunto, negam a existência de qualquer verdade. Exceto a verdade fingida da arte, da literatura, do mito. Ignorando, porém, essa única verdade defendida constantemente por Pessoa, os que o citam tomam-no por um conselheiro filosófico-existencial, um guia de quem se ouve o que se quer e se esquece tudo o que não se quer ouvir. Quaisquer que sejam os usos e abusos do texto pessoano, ele continua na praça, provocando sempre maiores paixões” (Inútil Poesia, pp. 145-6).

A questão que faço, perante essas afirmações, é: as frases de Pessoa, por mais repletas de poesia que possam ser, reforçam antes essa ideia de um “guru” do que a do poeta?
C.F.M. – Polêmica? Sei não, não é muito do meu temperamento, sempre que posso evito entrar em polêmicas, se bem que essa, Tarso, eu até toparia. Afinal, seria uma honra terçar armas com você ou com a nossa querida Leyla, uma das mais competentes intérpretes do Pessoa. Mas acontece que não é o caso: não vejo divergência alguma entre, de um lado, o que eu tenho dito a respeito do Pessoa, incluindo essa antologia recente, e, de outro, as colocações da Leyla ou a questão que você propõe em torno de guru x poeta.
Tendo virado a unanimidade que virou, era natural que o poeta atraísse não só a atenção de leitores fiéis e críticos honestamente interessados em decifrar os enigmas de sua obra, mas também uma quantidade de oportunistas e arrivistas, despreparados ou mal-intencionados, ansiosos por tirar algum proveito da unanimidade. É fato incontestável (antes da Leyla, vários já insistiram no mesmo ponto) que, em termos de doutrina, Pessoa se presta muito bem a quase tudo, da extrema direita à extrema esquerda, passando por todas as nuanças do espectro ideológico, seja o clássico ou o moderno e até o pós-moderno, que ele anteviu há mais de 70 anos. É que ele seguiu à risca, no conjunto da obra, o princípio exposto por Álvaro de Campos no Ultimatum: o homem verdadeiramente moderno deve mudar de filosofia como quem troca de camisa.
Então, o falso intérprete só tem o trabalho de colocar ênfase em alguns ditos pessoanos, para em seguida afirmar deslavadamente que isso é tudo, que o resto não existe ou não conta. Só mesmo a falta de escrúpulo tem a desfaçatez de proclamar: este é o verdadeiro Pessoa. Os bons intérpretes sabem que não há um só, há vários, todos “verdadeiros” ou todos “fingidos”, tanto faz. Essa é uma leitura que não oferece grande dificuldade. Difícil, para o sujeito inescrupuloso (o argumento da Leyla o demonstra muito bem), é resistir à tentação de “alinhar” Fernando Pessoa. O cara que tenha uma crença ou uma convicção muito, mas muito firme, fanática, a respeito de qualquer coisa, dificilmente abrirá mão da magnífica oportunidade de incluir o grande poeta, endeusado por todo mundo, entre os adeptos ou pelo menos os precursores da boa causa, seja esta qual for. Com um endosso desses, quem ousará contrariá-lo? Nenhum fundamentalismo consegue se sustentar apenas em fatos, argumentos e raciocínios: depende sempre do endosso fetichista de mitos incontestáveis, como esse que certa tradição desvirtuada erigiu em torno do poeta dos heterônimos. Para esse leitor unilateral, fanático, denunciado no artigo da Leyla, o mesmo leitor que eu já havia denunciado em 1985, com esses e outros argumentos, em um artigo intitulado Quem tem medo de Fernando Pessoa? (está lá na abertura do meu Fernando Pessoa: Almoxarifado de Mitos); para esse leitor, eu dizia, Eu Sou uma Antologia é uma mão na roda: ele tem aí, prontinhas, isoladas, todas as frases de que precisa. Ele escolherá as que lhe forem mais convenientes e as colocará a serviço do fanatismo que quiser, fingindo ignorar que todos os seus adversários, de todas as correntes possíveis, poderão fazer o mesmo, com outras frases.
Reconheço que uma antologia como essa facilita a vida dos “citadores contumazes”, como diz a Leyla. Agora, eles não precisam mais vasculhar milhares de páginas para garimpar a frase de efeito com que irão abrilhantar a sua tagarelice afetada. Mas será que é preciso acusá-los, de dedo em riste, como se estivessem cometendo um crime lesa-majestade? Apesar da leviandade e da afetação, eles não acabam por render evidente homenagem ao poeta? Melhor que eles decorem uma boa frase pessoana que outra qualquer, que fatalmente iriam buscar sabe-se lá onde.
O risco existe, claro, mas é o mesmo enfrentado por qualquer edição de qualquer grande escritor. Como evitar que as pessoas façam mau uso do que lhe caia às mãos? Quanto a isso de privilegiar o “guru” em detrimento do poeta… Sei não. A gente precisa conversar, esclarecer um pouco as coisas. Primeiro: “guru”, na sua pergunta, assim como “conselheiro” e “guia”, no artigo da Leyla, são termos carregados de conotação pejorativa, não é mesmo? Remetem a charlatanismo, falsos ídolos, os iluminados, messianismo, salvacionismo, o fim do milênio, as seitas redentoras, a Era disso, a Era daquilo… Nesse sentido, concordo com você: seria uma pena se essa inocente antologia fosse utilizada na base do “Ah, Fernando Pessoa é o nosso guru, o deus que faltava”. Você, Tarso, acha que isso é possível? Eu acho que esse risco extremo está fora de cogitação. Se bem que a abundância de paradoxos e o relativismo radical, marcas registradas do jeito pessoano de ser e de escrever podem de fato servir de estímulo a toda sorte de maluquice. Vai daí, como existe maluco pra tudo… Mesmo assim, continuo achando que é exagero a gente se preocupar com essa possibilidade.
Agora, se der para encarar “guru” sem a conotação pejorativa, ficando apenas com a ideia de que o poeta é o sujeito especialmente afinado com o seu tempo, com as pulsões coletivas sempre latentes, subterrâneas, e que por isso passam despercebidas da maioria, acho que dá para concluir, sim, que Fernando Pessoa (para evitar os termos “conselheiro”, “guia” ou “guru”, que vocês empregam pejorativamente), é uma espécie de “vate”, aquele que vaticina, como acreditavam os antigos. Quer dizer, Pessoa é uma daquelas “antenas da raça”, de que fala Ezra Pound, no sentido de que todos nós temos, em sua obra, um espelho ou um retrato da realidade que somos e que nos cerca; é a nossa verdade, ali revelada impiedosamente, chamando-nos à consciência, questionando nossas certezas, mexendo com nossos brios. Mas, no fim das contas, não dá para negar que todo honesto esforço crítico será inútil: cada leitor tem o Pessoa, e o guru, que merece. E isso, é claro, vai além da experiência estético-literária em sentido estrito, ultrapassa o que seria o âmbito específico do “poeta”. Essa forma de poesia, como a do Pessoa, extravasa para a esfera mais ampla dos valores morais, políticos, religiosos, etc., adentrando o largo território geral, que seria da alçada do guru, do profeta, do guia, do conselheiro, com a má e a boa conotação. Mas acho que dá para abrir mão do sentido estrito e aceitar que poesia e realidade se interpenetram, deixando-se impregnar mutuamente; dá para admitir que poeta e cidadão sejam uma coisa só e não dois modos de ser condenados à dissociação ou à esquizofrenia imposta pelo mundo moderno, desde que um poeta do gênio do Pessoa nos mostre isso.


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  1. Avatar de maria jose barbosa
    maria jose barbosa

    É verdade, cada um de nós, pode pensar Fernando Pessoa de uma forma diferente, há sempre outra maneira de compreender, ler Pessoa, assusta quando temos tantos trabalhos de gente importante no mercado, nos sentimos pequeninos se temos a tentação de convidar Pessoa para uma viagem, assim, num devaneio bom, mas há um grito cá dentro, um chamamento, até parece que é Pessoa, lá do fim do Mundo, a empurrar-nos, que pois claro, atira-te, fala comigo, vamos dar um passeio e falar, falar de nós, quem somos? E acabei por me lançar nesta viagem, que é assim um delírio… os heterónimos… fala-se tanto dos heterónimos, tantas filosofias, isso da busca da unidade, na multiplicidade dos eus, que existe em nós… às vezes, penso que sou demasiadamente simplista, penso que Fernando António nunca pensou nisso da unidade do ser, essa mania de tudo queremos classificar, nos perdemos, aliás Caeiro fala disso dessa mania de pormos nomes às coisas e depois de querermos sempre a síntesse, para resolver o quê, para descansarmos e sermos felizes? Penso que o ser é lindo nesta multiplicidade, nesta fragmentação, neste msitério que cada um é, que náusea se o ser fosse assim todo muito lógico, arrumadinho, certinho, um compêndio de sabedoria… ele, um amante da astrologia, teve logo ali a resposta, Eu, por exemplo nasci com o sol em Capricórnio, a lua em Peixes, o ascendente em Aquário… e durante muito tempo eu não me entendia, e foi ao examinar e estudar o meu mapa astral que eu comecei a perceber-me… Por um lado, eu tinha este anseio sempre da procura, mas de uma forma linda, é uam ânsia do diferente, do novo, de rasgar o instituído, de fugir do hábito, que me castra, me cansa, me faz triste… mas depois o meu capricórnio me agarra à terra, me prende, me obriga a pensar antes de decidir, é bom, porque depois não me deixa parar, um projecto que eu tenha na minha mente, ai tenho de o trabalhar, e que importa o tempo para o acabar, é o processo que me encanta e me faz feliz, e se não me obrigam a terminá-lo, ai eu nunca o acabaria, há tanto sempre para fazer, para mudar, para melhorar… o que me irrita e me descontrola e me deixa a “raivar”, é a minha lua, já nem sei se é a lua ou outro planeta, em Peixes, que eu tenho tanta força, tanta segurança naquilo que quero, que isso me custou caro, na minha vida profissional e não só; quando me vejo encurralada, porque não nos podemos esquecer que nunca temos nada na mão, se dependermos dos outros, e isso é uma frustração, e, por vezes, ao lutar pelo meu projecto, o outro pode meter-me um pé no coração, na garganta e apertar, e eu em vez de lutar e continuar a mostrar que não quebro, posso desatar a chorar, e fico furiosa, fragilizei, e o outro ganhou, ficou mais forte, sentiu que me podia abater… isto para falar assim de uam forma mais crua e dura, que as coisas não são assim também, mas por vezes, é quase assim que nos sentimos traídos, abocanhados… e o projecto até pode ir à vida e é pena, podia ser lindo e mudar tanta coisa… Onde está a unidade em mim? Eu gosto de ser assim, anjo ou demónio? A vida é dura, mas eu adoro a vida! E ao dizer que sou feliz, isso não quer dizer que enfie as pantufas e fique à lareia sossegadinha, nada disso… para mim, ser feliz é assim olhar e termos prazer nas pequeninas coisas, uma andorinha do mar, que parece um andarilho e como se afasta da água e se defende… e é linda, um pardal, que nos passa rente… e emsmo que tenha problemas, situações difíceis para gerir, eu nunca esqueço o outro lado bom, que faz parte da minha vida… é nesta dialéctica que me sinto viver, sempre neste jogo, por vezes labiríntico, mesmo encurralada, eu sinto que posso sair, sai-se sempre, depende de nós, do caminho a seguir, não diz Fernando Pessoa, que todos os caminhos estão em nós? Digamos que eu estou a lidar com a obra de Pessoa neste sentido de sentir o que ele me quer dizer, ele me dá chaves para eu abrir portas, que se mantinham algumas fechadas, me ensina a viver, me ensina a ver as coisas, por vezes, de outra forma, me convida a pensar de uma forma diferente, se calhar, através do absurdo, do paradoxo, que afinal nos podem abrir caminhos… e eu não tenho essa ânsia da verdade, acho que a verdade existe, sempre à frente, achava a verdade e depois, fechava a mão e ficava contente, acho que neste caminhar vamos aprendendo, vamos tentando buscar o que é bom para nós, às vezes, nem sabemos o que quermos, que nem “almejamos”, e neste buscar sentimos prazer, me faz felizes, e ha sempre surpreza, encantamento…as lágrimas por vezes, mas temos sempre o aldo bom, que fomos construindo, amealhando, na nossa alma e que ninguém nos tira…me identifico tanto com Pessoa, quase o amo, me falo de coisas que ele sente e que eu sentia também e que nunca falei para ninguém, me chamariam de anormal, me fala numa linguagem nova, diferente… me sinto num delírio encantado, quando me sento ao ao computador e entro nele, entro em mim… é pura fascinação…

    Bem tenho de acabar… senão não me páro… maria

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