Fogo cruzado

No Largo do Machado, manifestantes ateiam fogo em boneco que simboliza o Governador Sergio Cabral

Como era previsto, a chegada do Papa Francisco ao Rio de Janeiro foi marcada por protestos, que tiveram início na tarde de ontem, 22 de julho, e atravessaram a madrugada de hoje, em diferentes pontos da capital. O saldo de mais uma noite de embates entre manifestantes, homens da Tropa de Choque da PM carioca, e do BOPE: 11 prisões – entre os detidos, dois repórteres do Mídia NINJA –, relatos de quatro manifestantes supostamente feridos por armas de fogo, e um policial atingido por coquetel molotov, que teve o corpo parcialmente queimado. A concentração dos manifestantes se deu no Largo do Machado, no bairro de Laranjeiras, a cerca de 500m do Palácio Guanabara, sede do governo estadual. Cerca de mil militares foram destacados para garantir a segurança no entorno. 

Por volta de 20h40, com a agressão sofrida pelo policial atingido pelo coquetel molotov, houve o início de violentos embates. Segundo relatos de manifestantes, a ação foi supostamente deflagrada por um “P2”, como estão sendo chamados os homens da PM, infiltrados, à paisana, em meio à multidão. Horas depois do incidente, um vídeo foi publicado no canal You Tube, no qual o suposto P2 deflagra o coquetel molotov e, depois, se insere em um grupo de policiais tirando a camiseta que vestia no momento em que foi flagrado atirando o explosivo (veja o vídeo clicando aqui)

Como tem sido frequente, desde o início de junho, o protesto teve cobertura ao vivo do Mídia NINJA (sigla para Narrativa Independentes, Jornalismo e Ação). Dois links de transmissão eram mantidos em diferentes pontos dos protestos até que, por volta das 21h, o repórter Filipe Peçanha foi abordado por um policial à paisana e conduzido ao 9ª DP, no vizinho bairro do Catete.

O repórter do Mídia NINJA, Filipe Peçanha, é conduzido à 9ª DP

Ao saber da rendição de Peçanha, o repórter que fazia a segunda cobertura, Filipe Gonçalves, seguiu imediatamente até o distrito policial para apurar os motivos da aparente prisão. Chegando ao local, por volta de 21h20, Gonçalves também foi abordado por um policial e conduzido para averiguação, sob a suspeita de incitar violência, e a acusação de desacato a autoridade, por ter ficado de costas para o policial que o rendeu – o militar se identificou como Tenente Puga. O momento da abordagem e condução à DP também foi flagrado em vídeo, confira abaixo:

A ação foi analisada e considerada arbitrária por membros do Advogados Ativistas. O grupo agrega profissionais que vem oferecendo apoio voluntário aos manifestantes (leia íntegra da nota do AA).

A prisão do segundo NINJA teve consequências imediatas. Em poucos minutos, um terceiro repórter foi ao local e o novo link, que passou a transmitir as negociações para liberação dos dois colegas, rapidamente chegou à audiência de quase 15 mil acessos. Uma multidão de centenas de manifestantes marchou até a frente da 9ª DP e passou a exigir a libertação dos repórteres. Além dos dois integrantes do NINJA, outros nove manifestantes foram detidos. Por volta de 22h15, Peçanha, o primeiro repórter conduzido à DP, foi libertado com a ajuda de integrantes da OAB e sem pagamento de fiança. Em relato publicado hoje na página do Mídia NINJA, na rede social Facebook (que em menos de uma semana saltou de 82 para quase 110 mil seguidores), Peçanha narrou sua detenção.

“Uma mão segura forte meu braço. Um homem alto, de óculos, com uma camisa clara fala: “Me dá uma entrevista? Quero pegar um depoimento seu. Achando estranho, pergunto: ‘Qual seu nome, pra que veículo?’ Ele não responde. Com a outra mão falava freneticamente ao celular com alguém que parecia coordenar sua ação. Eis que começo a ser levado a força pelo ‘entrevistador’ enquanto um policial fardado chega junto. Ele pede para que eu abra a mochila. Revista, pede meu documento. Não acha nada de suspeito ou ilegal. Ainda assim, me avisa que serei encaminhado para a Delegacia. Cheguei à delegacia, mas não cheguei sozinho. Três advogados da OAB esperavam para me defender. Dentro da delegacia a narrativa foi burocrática. Em poucos instantes surge mais um NINJA na sala de espera. Foi detido também. Porque estava ao vivo... Enquanto aguardava as providências, alguns rumores no ar. ‘A manifestação esta vindo pra cá’ comentam os oficiais entre si. Depois de 30 minutos já se ouve o grito nas ruas: ‘Ei polícia, solta a Midia NINJA!’. Sem acusação formal, dou meu depoimento e, finalmente, sou liberado. Ao sair senti milhares de pessoas vibrarem – ali, diante da 9ª DP, e diante de seus computadores, aonde quer que estivessem. A fusão entre a rede e a rua se mostrou mais clara. Eles tentaram derrubar nossa transmissão ao deter um, dois NINJAS, mas eles não entenderam que não é uma câmera, um repórter… é uma rede. Podem até derrubar um. E assim surgem outros mil.”

Minutos antes de liberação de Filipe Gonçalves, por volta das 23h15, um manifestante deu ao terceiro NINJA um depoimento que sintetiza parte da indignação que levou a multidão às ruas: “O Estado brasileiro é laico e não tem que gastar R$ 180 milhões do nosso dinheiro para trazer o Papa ao País”.

Com a liberação de Gonçalves a multidão permaneceu em frente à 9ª DP até que todos os manifestantes fossem libertados. O grupo dispersou do local somente após às 3h da madrugada desta terça-feira. Um manifestante permaneceu preso, Bruno Ferreira Telles, acusado de portar explosivos, mas um habeas corpus acaba de ser expedido para sua libertação. Telles seria conduzido para o presídio Bangu I.


Acompanhado de represente da OAB, Filipe Gonçalves é libertado na 9ª DP

Por volta de 23h30 o terceiro link do Mídia NINJA anunciou que iria até o hospital Souza Aguiar, apurar a informação de que quatro vítimas atingidas por arma de fogo haviam dado entrada para serem socorridas. Neste momento, a primeira vítima, o manifestante Rafael Caruso, supostamente atingido pela Tropa de Choque com um disparo de arma de fogo na panturrilha esquerda, saiu do 9° DP e foi flagrado pelo repórter do Mídia NINJA. Mesmo escoltado por um policial que o conduziria ao IML para realizar exame de corpo delito, Caruso deu um depoimento onde minimizou a agressão que sofreu: “O que aconteceu aqui não é nada, é uma piada, perto do que a polícia faz nas favelas”, provocou ele. Os instantes que sucederam a agressão sofrida por Caruso também foram flagrados em vídeo, publicado no canal You Tube


O manifestante Rafael Caruso, supostamente atingido por arma de fogo na panturrilha, é conduzido ao IML

As prisões, ou as “conduções para averiguação”, reverberam decreto-lei aprovado, como medida emergencial, em 19 de julho pelo governador Sergio Cabral, publicado ontem no Diário Oficial do Rio de Janeiro, que institui a CEIV (Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas), e dá a polícia o poder de deter manifestantes sem provas – além de afrontar o direito ao sigilo de dados pessoais. Entre medidas administrativas, o decreto prevê em seu artigo 2°: “Caberá à CEIV tomar todas as providências necessárias à realização da investigação da prática de atos de vandalismo, podendo requisitar informações, realizar diligências e praticar quaisquer atos necessários à instrução de procedimentos criminais com a finalidade de punição de atos ilícitos praticados no âmbito de manifestações públicas”.

O polêmico artigo 3° “legitima” a quebra de sigilo telefônico e virtual: “As solicitações e determinações da CEIV, encaminhadas a todos os órgãos públicos e privados no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, terão prioridade absoluta em relação a quaisquer outras atividades da sua competência ou atribuição. As empresas Operadoras de Telefonia e Provedores de Internet terão prazo máximo de 24 horas para atendimento dos pedidos de informações da CEIV”.

Novas manifestações estão previstas para hoje. Entre palavras de ordem e frases provocativas, como “essa história eu já conheço: é só mais um inocente preso”, “Choque covarde, não tem identidade”, “hei, Beltrame sua polícia é um vexame”, um coro de peso fez se ouvir no Largo do Machado e advertiu: “amanhã vai ser maior!”.

Após ser libertado, municiado de um megafone cedido pelos manifestantes, e carregado nos ombros da multidão, Peçanha fez um breve discurso. Uma frase expressa por ele deixa outra dica para os governantes repensarem suas estratégias de repressão, visto que a trégua aparentemente não virá tão cedo. “Todos que estão nas ruas vão fazer este País ter uma democracia de verdade. Nosso trabalho é mostrar a verdade da informação, sem manipulação e esse não é o comportamento de um governo democrático, está longe de ser. Somos um grupo de imprensa livre e não existe crime de imprensa livre em um País que se diz democrático. Temos o direito de cobrir as manifestações.”


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