Futuro do pretérito

Patrícia Palumbo em seu apartamento, na zona oeste de São Paulo. De lá sairá a Rádio Vozes. Foto: Luiza Sigulem
Patrícia Palumbo em seu apartamento, na zona oeste de São Paulo. De lá sairá a Rádio Vozes. Foto: Luiza Sigulem

Quase no mesmo instante em que a reportagem de Brasileiros chega ao apartamento da jornalista Patrícia Palumbo, em Higienópolis, na zona oeste de São Paulo, o seu produtor, Vicente Negrão, surge com um presente inesperado: um pequeno aparelho de rádio a pilha que anos antes havia servido de companhia para as tardes do seu avô. A reação da tradicional apresentadora de rádios paulistanas – como se colocasse o objeto no colo – demonstra que talvez não exista nada melhor para agradá-la. Desde que seu pai, José Luiz Palumbo, lhe ensinou a ouvir rádio, nos anos 1970, ela coleciona aparelhos velhos e novos.

“É o futuro do pretérito, não é?”, questiona ela, quando o assunto descamba para o motivo de nossa visita. Em janeiro, Patrícia vai inaugurar, ao lado de um time de jornalistas e músicos, a primeira rádio em formato de aplicativo para celular do Brasil, a Vozes, que deve estar disponível logo de cara nos principais sistemas do mercado, iOS e Android, além de poder ser escutada pela internet. Mais do que música contemporânea brasileira e estrangeira, especialidade da jornalista, a programação vai incluir programas infantis, sessões de música clássica, reportagens sobre a cidade e encontros literários.

Entre os membros da nova rádio estarão o ator e músico Paulo Miklos, responsável por uma espécie de conversa diária com os ouvintes, a cicloativista Renata Falzoni, que vai fazer reportagens sobre a experiência de andar de bicicleta pela cidade, e Daniel Daibem, guitarrista da banda instrumental Hammond Grooves, que, além de Patrícia, vai apresentar conteúdo musical ao vivo todos os dias, no Programa das Seis às Sete, mais próximo do formato padrão das rádios paulistanas, com informações sobre trânsito, notícias e, claro, música.

O principal programa da Rádio Vozes, porém, será de Patrícia, todas as manhãs, direto do estúdio montado em seu próprio apartamento, onde costuma receber cantores e compositores da música brasileira. “Vou entrar com um bom-dia, explicando qual será a programação, lendo poemas, tocando música, conversando com o ouvinte. Enfim, começando o dia da melhor forma”, explica ela. “É como fazer a velha rádio, com tudo o que ela tinha de bom, inclusive correio elegante, mas em uma plataforma inovadora e moderna. Um lindo paradoxo.”

Ainda que sempre tivesse em mente coordenar uma estação de rádio, foi nos últimos meses que Patrícia Palumbo decidiu investir na ideia. Cansada dos modelos seguidos pelas principais transmissoras da cidade – com foco no chamado hard news ou notícias em tempo real –, ela deixou a Eldorado FM, onde trabalhou por 20 anos, no final do mês passado. Na emissora, apresentou dois programas que se tornaram tradicionais para quem acompanha as rádios de São Paulo: o Hora do Rush, pioneiro em transformar a formalidade dos radiojornais em uma comunicação descontraída, quase como uma conversa com o ouvinte, e o Vozes do Brasil, premiado em 2000 pela Associação Paulista de Críticos de Arte na categoria Melhor Programa de Música Brasileira. O Hora do Rush terminou há algum tempo, quando Patrícia migrou para o Vozes do Brasil, que desde novembro não é mais transmitido em São Paulo.

Além da Eldorado, Patrícia trabalhou em rádios de São Sebastião, sua cidade natal, no início dos anos 1990, no canal a cabo ESPN, onde foi repórter de esportes radicais, na Musical FM, hoje uma das principais rádios evangélicas paulistanas – emissora em que, aliás, criou o Vozes do Brasil –, e em rádios francesas, com as quais colaborou durante o ano do Brasil na França, em 2005, e de onde tirou boa parte da inspiração para o modelo que pretende implementar no novo projeto.

“É o fim das rádios como são feitas hoje. A Eldorado AM virou religiosa, a Musical FM também… O rádio como está sendo feito não me dá mais estímulo”, conta. “Tenho vontade de fazer algo que representa a minha personalidade e a de quem está envolvido nela também. A Eldorado foi importante na minha vida, mas não é mais o meu caminho”, acrescenta.

A Vozes, obviamente, trará muito do que foi o Vozes do Brasil nos últimos anos: ligado em música contemporânea e, especialmente, brasileira. Por meio dele, Patrícia ficou famosa no cenário cultural paulistano e esticou a ideia para diversos meios, como o Vozes ao Vivo, que reuniu shows de grandes compositores no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, e que até hoje serve como inspiração para um encontro semanal no Sesc Consolação, também na capital paulista, com novos instrumentistas do País, mediado por ela. O programa ainda “consagrou” o sofá listrado em vermelho e verde que mobilia o estúdio da jornalista, montado em um dos quartos do apartamento. Na parede acima dele, estão fotos de Maria Gadú, Lenine, Ana Cañas, Wanderléa, Chico César, Supla, Luiz Melodia e Tulipa Ruiz, entre outros. Todos sentados no mesmo cantinho e “observados” por retratos maiores de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Adoniran Barbosa e Tom Jobim.

“O Vozes do Brasil surgiu ainda na Musical FM, em 1999, quando saí da Eldorado. Era um contraponto ao Voz do Brasil (programa oficial do governo federal brasileiro obrigatório por lei a todas as rádios do País). A rádio lançava uma programação corrida com esse mote: ‘No lugar da Voz do Brasil, Vozes do Brasil’. Uma ironia, claro. Quando levei para a Eldorado, foi um dos pontos altos da audiência da rádio”, diz ela. Até novembro, o programa ia ao ar das 20h às 21h aos domingos, gravado anteriormente no estúdio de Patrícia. A Eldorado, assim como outras rádios
de São Paulo, vai enxugar a programação em dezembro para diminuir custos. Recentemente, a Rádio Bandeirantes e a Estadão seguiram o mesmo caminho.

“As rádios estão seguindo o mesmo modelo há anos e não querem mudar. Já viram que não dá mais certo, que os tempos são outros, mas permanecem engessadas. É justamente uma alternativa a isso que estou propondo”, finaliza Patrícia. Os ouvintes agradecem.


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