Gay, não: bicha!

Nesses dias estranhos, em que o deputado Jair Bolsonaro invade os meios de comunicação para bradar valores muito condenáveis, em que skinheads são flagrados aplaudindo a ação truculenta da Polícia Militar de São Paulo, e o cantor negro Ed Motta defende a supremacia ariana do Sul do País, a volta de um dos personagens mais irreverentes, mente aberta e defensor das liberdades individuais que a geração dos anos 1960 nos legou é motivo de festa. Sim, está novamente entre nós Edivaldo Souza, Edy Star, Edith Cooper – como definiu Gilberto Gil – ou simplesmente Bofélia, alcunha dada pelo amigo de adolescência Raul Seixas ao cantor, dançarino, ator, dramaturgo e artista plástico baiano. Nas palavras de Raulzito, Edy era a “bicha mais macho” que conheceu. Em sua própria definição: “O resultado de sete dias de trabalho de um Deus”.

Aos 72 anos, Edy Star vive em Madri há 19. É diretor artístico de um cabaré chamado Chelsea 2. No Brasil, desde o começo de maio, tenta emplacar uma pequena turnê de três espetáculos musicais diferentes e pensa em voltar a viver por aqui. Temporariamente, está hospedado em um hotel no Centro, entre a famosa Avenida São João e o Largo do Paissandu. Dono de um humor sagaz, em entrevistas recentes saiu-se com essa pérola: “Na internet, disseram que eu tinha virado travesti. Não é nada disso. Trabalho em um puteiro internacional, com 35 mulheres. Toda noite, acontecem 18 stripteases. Entre um número e outro, subo ao palco para os clientes descansarem os olhos de tanta xoxota!”. No programa do humorista Jô Soares, Edy observou que tinha a mesma idade de Jô e, ao ouvi-lo tecer o comentário de que estava muito deprimido com sua jovialidade, disparou sorrateiro: “Mas isso tem jeito Jô, solta a franga que você vai ver!”, automaticamente, fez-se ouvir as gargalhadas da plateia (naturalmente, acrescida do riso histriônico do contrabaixista Bira).

Nasce uma estrela, e a saída do armário na Fatos e Fotos
Nascido no interior da Bahia, em Juazeiro, soteropolitano, desde o primeiro ano de vida, Edy cresceu cercado de estímulos à sua fértil criatividade, brincando com o casal de irmãos, entre bananeiras e coqueiros do enorme quintal de casa. Leitor dedicado, devorou muitas revistas e gibis, para ainda muito jovem descobrir a paixão pela grande literatura. A compulsão por desenhos o levaria ao aprendizado da pintura e a uma bem-sucedida carreira de artista plástico. Mas o que mais seduzia Edy era a música. Era um ouvinte assíduo da Rádio Nacional e da Rádio Mayrink Veiga, onde acabaria trabalhando, depois de várias visitas aos bastidores do programa A Hora da Criança, com o pai, um escriturário e fotógrafo amador que também investia na faceta de juiz de futebol (exercia esse predicado, quando conheceu a mãe de Edy, em Juazeiro). Foi no A Hora da Criança, há exatos 60 anos, em 1951, que Edy iniciou sua carreira, cantando operetas.
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EXTRAVAGÂNCIA E RESPEITO
Até mesmo o Rei Roberto e o amigo Erasmo compuseram para Edy Star

Em 1963, Edy ingressou profissionalmente na CBC, a Companhia Baiana de Comédias e, entre 1968 e 1971, migrou do rádio para a TV atuando por duas vezes como diretor artístico: uma na TV Jornal do Commércio, em Recife, e outra na TV Itapoã, em Salvador. Em 1970, quando o amigo Raulzito assumiu o posto de produtor musical da gravadora Columbia-CBS, o levou a tiracolo. Foi lá que Edy – ainda sem Star no nome artístico – lançou seu primeiro compacto, com as canções Matilda e Aqui é Quente, Bicho, especialmente composta por Raul. No ano seguinte, encabeçou, ainda ao lado de Raul, do genial compositor capixaba Sérgio Sampaio, e de Miriam Batucada, o álbum Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10. Rezava a lenda de que o álbum teria sido feito às escondidas, durante uma viagem do diretor artístico João Araújo, e que essa suposta peça teria custado o cargo de Raulzito, mas o fato foi desmentido por Edy, que garante que tudo foi feito às claras e ainda se lembra de que, apesar do fracasso comercial de Sessão das 10, o Maluco Beleza continuou assumindo o posto na CBS, produzindo, inclusive, em 1972, o compacto Diabo no Corpo, da kavernista Miriam Batucada.

Em uma temporada de dois anos, entre 1973 e 1974, quando adotou o sobrenome Star e se apresentou nos cabarés da Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro, Edy despertou a curiosidade de muita gente e atraiu intelectuais e jornalistas para seu show. Caiu nas graças do pessoal de O Pasquim e logo se apresentaria nas tresloucadas noites da sofisticada boate Number One, na Zona Sul. Em 1974, contratado pela Som Livre, lançou Sweet Edy, único LP de sua irreverente carreira, recheado de pequenas pérolas de autoria insuspeita – Jorge Mautner, Galvão e Moraes Moreira, Caetano Veloso, Gilberto Gil e até Erasmo e Roberto Carlos. Anárquico como seu intérprete, Sweet Edy promove uma livre mistura de gêneros, como um bem resolvido mosaico tropicalista. Seja no surpreendente hard baião de Claustrofobia, do Rei Roberto e de Erasmo, seja na malandragem de Conteúdo, da célebre frase “cria fama e deita-te na cama”, de Caetano Veloso, ou no tango-rock Coração Embalsamado, de Getúlio Cortes, a liberdade tão cara a Edy impregna cada faixa do álbum que, apesar de suas qualidades e a recomendação de Roberto estampada na contracapa: “Me amarrei na de Edy, bicho!”, a exemplo de Sessão das 10, não teve grande êxito de vendas.

Em 1975, a convite do produtor Guilherme Araújo, Edy integrou o elenco da peça Rocky Horror Show, encarnando o cientista transexual Frank-n-Furter. Casado e pai de um filho, assumiu sua homossexualidade em uma matéria na revista Fatos e Fotos. No teatro, Edy foi produtor, dramaturgo e diretor. Em 1992, sua adaptação de O Belo Indiferente, de Jean Cocteau, o levou a Madri, para participar do Festival de Teatro de Primavera, e ele foi convidado para se apresentar na abertura dos Jogos Olímpicos, sediados em Barcelona. Como pintor, fez mais de 30 exposições na Europa e nos Estados Unidos. Ao chegar ao Brasil, Edy deu a seguinte declaração à coluna de Mônica Bergamo para o jornal Folha de S.Paulo: “Sempre fui chamado de veado e nunca me ofendi. A palavra gay é uma merda. É muito boa para descrever esses saradinhos que se vestem com a última moda. Mas o que faço não é coisa de gay. É bichice, mesmo!”. Sessão das 10 completou 40 anos, em 2011, e é um dos três espetáculos que Edy pretende apresentar por aqui. Um show dedicado ao compositor Assis Valente, ao lado de sua alucinada prima Maria Alcina, chamado Salve o Prazer, e outro, com as canções de Sweet Edy, engrossam o repertório Edy Star 2011. Há três anos, Edy mantém um blog (staredy.blogspot.com), onde relembra histórias e mantém intensa troca de informações com os fãs. Diz-se tentado a escrever uma autobiografia, o provável nome? Me Atirei no Pau do Gato! Bolsonaro, certamente, sairá em praça pública pedindo a sua proibição.


Comentários

Uma resposta para “Gay, não: bicha!”

  1. Avatar de Arla Ribeiro
    Arla Ribeiro

    Hola! Felicidades por todo o sempre! Beijos.

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