O combate ao doping reproduz, simbolicamente, toda competição: luta contra o tempo e capacidade de reação. Com uma diferença fundamental: a batalha dos “limpos” contra a dos “sujos” não termina jamais. No lado “sujo”, especialistas e técnicos sintetizam ou descobrem novas drogas e novos métodos para turbinar artificialmente o desempenho do atleta e camuflar as substâncias em seu organismo, driblando os meios existentes de identificação. A partir daí, a outra banda, a dos “limpos”, inicia uma corrida para diferenciar, o mais rápido possível, maneiras de detectar os aditivos vetados. Descoberta na curva, a turma do doping inventa outro caminho. E o grupo de combate desnuda… e assim vai.
Essa guerra eterna sempre atinge picos às vésperas e durante uma Olimpíada. Este ano, na Rio 2016, não será diferente – e o quartel-general dos Jogos do Rio no tema, o Laboratório Brasileiro de Controle de Dopagem (LBCD), está pronto, renovado e equipado para esse tipo de enfrentamento.
Coordenado pelo químico e professor carioca Francisco Radler, o LBCD faz parte do Laboratório de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico, o Ladetec, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2012, cinco anos após o Pan Rio, a Agência Mundial Antidopagem (Wada, na sigla em inglês) descredenciou o Ladetec e deixou o País sem um centro com habilitação internacional. A solução foi reconstruir a unidade.
Os ministérios do Esporte e da Educação investiram R$ 188 milhões no projeto. Desse total, R$ 54 milhões financiaram equipamentos e o restante foi investido no prédio-sede do Ladetec, no Instituto de Química da UFRJ, no campus da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Os primeiros testes foram feitos no segundo semestre de 2014. Em 13 de maio do ano passado, a Wada devolveu a credencial ao LBCD. A unidade brasileira é a 34ª credenciada pela Wada no mundo. E a segunda da América do Sul – a outra fica em Bogotá, na Colômbia.
A Wada não teve dificuldade no julgamento. A maioria de seus conselheiros reconheceu estar diante do mais atualizado centro de controle de dopagem do mundo no momento. Desde o novo credenciamento, o LBCD analisou mais de 2,6 mil amostras de urina e sangue – e no mínimo outras mil deverão ser manipuladas até o início dos Jogos, em 5 de agosto.
Cerca de seis mil amostras serão observadas durante as disputas. Esse total vai gerar cerca de 45 mil procedimentos na estrutura do LBCD, capaz de identificar dezenas de substâncias numa única amostra de sangue e centenas em urina.
“Em quatro semanas de trabalho nos Jogos deste ano, nós vamos analisar o volume semelhante ao de um ano”, compara Radler. “Entregaremos a maioria dos resultados em 24 horas, contra dez dias úteis na rotina normal. Alguns, no entanto, poderão levar um pouco mais de tempo, no máximo até 72 horas. Funcionaremos 24 horas por dia, sete dias por semana, em um espaço maior do que o atual, pois usaremos também outras partes do Ladetec. Temos hoje cerca de 150 profissionais. Mas esse número irá dobrar durante os Jogos porque vamos receber, inclusive, profissionais estrangeiros.”
Radler explica que hoje os testes de laboratório são capazes de identificar mais de 500 substâncias em uma única amostra de urina. Mais que isso: “Hoje, trabalhamos com sangue, o que não ocorreu, por exemplo, no Pan 2007. À época também não analisávamos hormônio de crescimento, insulinas e outros peptídeos e proteínas. O número de métodos de detecção triplicou nesse anos”. Segundo ele, dezenas de substâncias serão testadas em cada amostra de sangue.
O coordenador do laboratório detalha ainda como serão feitos os exames na Rio 2016. “Cada amostra de sangue ou urina é identificada com um código internacional. Ninguém sabe quem é o avaliado. A amostra é dividida em duas partes. A primeira segue para análise e a segunda ficará armazenada para, caso necessário, ser aberta diante do atleta ou de seu representante em outro teste. Além do código internacional, colocamos outro, interno. Estamos adotando a dupla blindagem.”
O carioca Marco Aurélio Klein, que ocupou nos últimos anos a Secretaria Nacional da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), criada em 2011 pelo governo federal, destaca outros pontos curiosos da corrida contra os aditivos. Quarenta e cinco por cento de todos os testes feitos, e também dos programados até os Jogos, serão surpresa, fora de disputa.
O cerco para garantir disputas justas não termina aí. Com base no programa Bolsa Atleta, a ABCD listou 260 atletas brasileiros com alguma chance de subir ao pódio. Todos estão sendo acompanhados com lupa. Até o início dos Jogos, serão testados pelo menos 15 vezes. Não é um absurdo: estrelas olímpicas norte-americanas são testadas até 30 vezes no ano anterior a uma Olimpíada.
Outro elemento de combate importante é o Anti-Doping Administration and Management System (ADAMS), um cadastro mundial de competidores na internet coordenado pela Wada. Agências antidopagem, comitês e federações exigem que seus atletas se cadastrem na página da ADAMS na rede. O competidor é obrigado a colocar endereço principal, determinar um período de uma hora (das 18h às 19h, por exemplo) em que estará diariamente à disposição do antidoping e atualizar essas informações a cada 90 dias.
Se for selecionado e no seu cadastro não estiver preenchido o endereço, recebe falta. Se mudou de endereço, mas não atualizou o cadastro e foi procurado, leva outra falta. Se tudo estiver certinho na ficha, mas o atleta não for encontrado no endereço indicado quando procurado no dia e hora citados, mais uma falta. “E aí é o seguinte: três punições em um ano, iguais ou diferentes, são consideradas um caso de doping – e o atleta responderá por ele como se tivesse testado positivo. O objetivo é doping zero para o Time Brasil. Não apenas para medalhistas, mas para todos”, afirma Klein. Muitos especialistas consideram não ser mais possível separar recordes limpos de contaminados, seja por doping, seja pelo uso de equipamentos banidos logo depois de seu lançamento ou pelas duas coisas juntas.
Mas, com tantas armas, os Jogos do Rio serão os mais limpos da história? “Não dá para afirmar isso. Mas hoje a estrutura é capaz de guardar uma amostra por até dez anos. Se o atleta com doping levar uma medalha e não testar positivo agora, em algum momento da próxima década sua amostra poderá ser novamente analisada, provavelmente com métodos até mais evoluídos. No caso de cair na rede, pode perder a medalha, afirma Klein”. A ordem é, mais do que nunca, apertar os buracos da grande tarrafa.
Casos de dopagem
Atletas e aditivos proibidos
Maria Sharapova Tenista russa caiu em março por uso de Meldonium, que tomava há dez anos. Disse que não soube da proibição.
Ana Cláudia Lemos Principal velocista do Brasil, recordista dos 200 metros rasos, testou positivo de Oxandrolona em fevereiro de 2016. Foi punida por cinco meses e demitida da equipe BM&F Bovespa.
Ben Johnson Velocista canadense perdeu ouro nos 100 metros rasos em Seul 1988 por uso de esteroide. Suspenso por dois anos, voltou sem bons resultados e caiu novamente na tarrafa em 1993. Foi banido.
Waterford Crystal Com o cavalo, o irlandês Cian O’Connor levou ouro em Atenas 2004. Mas descobriu-se que o animal tinha sido “acalmado”. O’Connor entregou o ouro, que foi repassado ao brasileiro Rodrigo Pessoa e seu Baloubet du Roet, que haviam levado a prata.
Marion Jones A velocista e saltadora admitiu ter usado esteroides para disputar Sydney 2000. Punida, devolveu os três ouros e dois bronzes. Encerrou a carreira.
Florence Griffith-Joyner A velocista americana nunca caiu no antidoping, mas sua história desperta suspeita. Flo-Jo morreu em 1998, aos 38 anos, de asfixia acidental num ataque epilético. Dez anos antes, conquistou ouro nos 100 e 200 metros rasos em Seul 1988. Seus recordes mundiais nas duas provas permanecem até hoje. Todas as conquistas ocorreram entre 1987 e 1988, aos 28 anos, longe do auge físico.
Maurren Maggi A saltadora foi suspensa em 2003 por uso de Clostebol. O gancho de dois anos impediu-a de disputar Atenas 2004, mas ela voltou quatro anos depois, em Pequim, com um salto de 7,04 metros e a medalha de ouro.
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